Cultura do estupro silenciou minha família

Anteontem o Profissão Repórter foi sobre estupro. Foi curtinho o programa, e nem deu conta de mostrar os inúmeros casos de violência sexual que assolam o Brasil (e o mundo).

O programa citou que, no Rio, 50% dos estupradores são conhecidos da vítima. Não é aquele clichê do estranho numa rua escura e deserta. Quem estupra é amigo, pai, marido, colega, pastor, sabe, homens de confiança. E pode apostar que essa estatística dos 50% só não é muito maior porque a maior parte dos casos não é denunciada.

Gostei que a reportagem foi atrás do grupo New Hit, por exemplo. E confirmou aquele negócio que a gente já tinha denunciado: enquanto os integrantes do grupo estão livres e soltos, dando shows por todo o país, as duas vítimas (menores de idade), estão presas em casa, foragidas, com medo das ameaças.

Isso é um exemplo da cultura de estupro: os estupradores são admirados (mesmo diante de tantas evidências de que houve estupro), e as vítimas são criticadas e demonizadas. A “piada” tão verdadeira contada pela Feminista Cansada continua real: qual a diferença entre um assaltante e um estuprador? É que ninguém defende o estuprador.
O relato da M., aterrador, serve pra contradizer aqueles que pensam que cultura de estupro é uma ficção feminista.

O que me aconteceu é um ponto controverso pra mim e hoje ensaio uma compreensão sobre o quanto isso reflete na minha vida adulta. Nos últimos dois anos tenho lido acerca de estupro e isso fez com que eu percebesse que fui vítima não só do ato e do estuprador, como da cultura do estupro que tanto falamos hoje nos termos do(s) feminismo(s).

Muitas de nós achamos que os casos de estupro acontecem longe, por desconhecidos, na rua. Esse não foi o meu caso. O estupro aconteceu dentro da minha casa, com a conivência de todos os meus familiares. A cultura do estupro silenciou a mim e a minha família — até hoje. A decisão de falar sobre isso vem da minha revolta por ver continuamente as vítimas de estupro serem culpadas pela violência e os estupradores seguirem por aí, livres, limpos.

Minha história desenrolou-se quando eu tinha entre 11 e 12 anos. Minha mãe trabalhava muito, meus pais são separados praticamente desde o meu nascimento. Meu pai nunca se responsabilizou pela minha criação e minha mãe foi morar em outra cidade a trabalho. Eu, que na época morava sozinha com ela, fui legada a um primo de 19 anos. Ele é meu primo de segundo grau da parte paterna da minha família, que reside em outro estado.

cultura-do-estupro

Ele foi chamado por ela para morar comigo. E ele era o responsável por cuidar de mim: levar no colégio, levar ao dentista, levar e buscar em festinhas… Enfim, ele era meu novo “tutor”. Ao longo dos meses ele, que sempre foi um parente querido, tornou-se o pior dos algozes. A casa em que eu morava com ele ficava num lugar afastado. Eu não tinha como me locomover de lá sem ele e essa foi a pior arma dele contra mim. Fiquei um ano morando com ele, sozinha, visitando minha mãe um ou outro fim de semana por mês em São Paulo.

No restante da semana eu era encurralada pelo meu “tutor”. Fui abusada por ele em silêncio por meses. Eu sentia ódio, mágoa, por ninguém perceber o que estava acontecendo comigo. Contei apenas para duas amigas do colégio, que prometeram nunca contar a ninguém. A empregada desconfiava; mas não se metia, afinal, podia sobrar pra ela.
Até que um dia minha mãe começou a estranhar minha rejeição pelo primo que eu tanto gostava antes da mudança dele para a minha casa, e resolveu sentar comigo, com ele e com meu pai para tentar esclarecer a situação. Durante mais de uma hora eu, pressionada a dizer porque o tratava tão mal, chorei muito e não tive coragem de dizer, senti vergonha e disse que ele sabia o porquê. Ele se calou, disse que não sabia, da maneira mais cínica do mundo, e tudo acabou por isso mesmo.

Poucas horas depois, na hora de deitar pra dormir minha mãe perguntou se ele havia feito algo comigo e eu disse que sim. Ela perguntou o quê e eu disse que ele vinha me encurralando, me agarrando, me beijando, passando a mão em mim há meses. Ela ficou mal, comprou uma passagem e o mandou de volta pra cidade dele. Meu pai deu ataque, toda minha família ficou sabendo. Mas sabe o que todos fizeram sobre o assunto? Nada.

Com o passar do tempo percebi que todos começaram a tratar o assunto como se fosse apenas um casinho entre primos. Minha mãe chegou a dizer com todas as letras que eu havia “dado mole, provocado ele, porque ele era um menino bom, trabalhador”. Por volta dos 14 anos fui passar férias na cidade dele. Fui obrigada a aturá-lo por perto e ele voltou a me aliciar, a me encurralar, e também me aliciou por emails. Depois dessa viagem todos da minha família, e principalmente a minha mãe, o haviam perdoado. Agora a culpa pelo “mal-entendido” era minha.

Somente agora por volta dos 20 anos fui me dar conta do que aconteceu. Aceitei que fui abusada, percebi que não fui culpada, que não preciso sentir vergonha, e comecei a me lembrar de coisas que eu havia bloqueado desde então. Depois dos 16, 17 anos, todas as vezes que estive solteira minha mãe fazia questão de dizer que meu primo era um bom partido, que ainda estava solteiro e que eu deveria considerar, já que ela fazia muito gosto de um casamento como esse.
Isso tudo aconteceu numa família de classe média alta, num meio de pessoas com alguma escolaridade. Isso acontece mais do que parece, nas famílias mais improváveis, a todo momento. A cultura do estupro não permite que esses casos sejam denunciados: a vítima é culpabilizada, a família se cala.

Ano passado nasceu mais uma menina na minha família, minha primeira irmã. Espero que ela não passe pelo que passei dentro da mesma família, espero que os tempos sejam novos para mulheres. Precisamos gritar bem alto que não vamos mais ser culpadas pela violência que sofremos. Que minha irmã encontre um mundo mais crítico e mais humano do que eu encontrei.

Fonte: Escreva Lola Escreva 

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