Da ridicularização à apropriação

Até 1975, ano em que comecei a frequentar o primeiro ano escolar, eu nem sabia que era considerada “diferente” ou “estranha” aos olhos das outras pessoas. Meu cabelo era um campo de batalha, incomodando todos que não faziam parte do meu núcleo familiar. A partir daquele momento, a violência foi gratuita e intensa. Além da minha pele, meu cabelo era a principal vítima. Não importava como ele estivesse: preso, era “bandido”; solto, era “bombril”; trançado, era “troço”; e com as tranças soltas, era “corda”. Os insultos eram incessantes, ora de alunos, ora de professores. Como criança, eu não sabia me defender daquilo, nem sabia que era errado. Na escola, nos programas de TV, nas revistas e livros, meu cabelo não era aceito. Isso durou por longos anos, até que a pressão se tornou insuportável. A violência de mudar a estrutura dos meus fios de cabelo 4B e 4C tornou-se inevitável, assim como aconteceu com minhas tias, minha mãe e minhas primas, algo que nunca tinha percebido.

Primeiro veio o pente quente, queimando minhas raízes. Depois, a chapinha, combinada com Hene Maru, seguida por pastas químicas que ardiam no meu couro cabeludo. Tudo isso para me aproximar de um padrão imposto por uma sociedade que me rejeitava como eu era – com meu cabelo natural, com minhas tranças, fosse como fosse.

Mas o tempo passou, e a maturidade trouxe uma nova consciência. Deixei para trás aquela dor e abracei a liberdade de ser quem sou. Permiti que meu cabelo voltasse a ser livre, natural, autêntico. E essa libertação foi transformadora.

Hoje, vejo algo intrigante: as mesmas pessoas que antes me ridicularizavam agora desfilam com as tranças que antes chamavam de “cordas” ou “troços”. Alguém pode dizer: “Ah, mas não eram elas!” Eu respondo que, direta ou indiretamente, eram sim, pois muitos têm a minha faixa de idade, e as mais novas são filhas, netas ou sobrinhas desse grupo que ofendia, e ainda ofende, pessoas com a mesma estética que a minha.  

Quem usa os cabelos trançados já deve ter ouvido: “Você lava isso?” ou “Como você faz para lavar?” 

 Absurdo, mas fato.

Quando pessoas de ascendência não africana usam dreadlocks ou tranças afro (como box braids) sem reconhecer seu significado cultural e histórico para as comunidades negras, reafirmam preconceitos enraizados. Esses estilos não são meramente estéticos; carregam significados históricos profundos e foram utilizados como formas de resistência cultural.

Chamamos isso de apropriação cultural – o uso de elementos de uma cultura por membros de outra, especialmente quando esse uso ignora o contexto cultural original, muitas vezes perpetuando estereótipos e desigualdades de poder entre as culturas.

É importante lembrar que as imagens que hoje vemos na TV e nas revistas, com muitas pessoas pretas em quase todos os campos de atuação, não refletem a realidade do pós-abolição até pelo menos o início dos anos 2010. 

Além disso, enquanto pessoas negras frequentemente enfrentam discriminação por usar esses mesmos estilos, outras etnias são elogiadas e muitas vezes lucram com eles. Um exemplo claro é o segmento musical do Axé, um estilo genuinamente preto, onde as principais figuras desse gênero não são mulheres pretas, revelando um preconceito subjacente e doloroso.

E, mesmo assim, contrariando todas as expectativas, seguimos sendo “as mais belas das belas”.


Mônica Faria – Historiadora, geógrafa, especialista em Relações Étnico-Raciais, palestrante e fundadora da Iroko, empresa que visa propagar informações que sejam, sobretudo, descolonizadoras. Conselheira da Revista Raça Brasil, Integrante do Comitê Raça Alicerce Educacional. Para saber mais sobre o trabalho de Mônica, seus projetos e inspirações, acesse os perfis @monicafaria68/ e @irokoeducacional.


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