Daniel Blake é como nós: apenas mais um cidadão no neoliberalismo

Nunca é tarde para comentar sobre filmes, mesmo os que já saíram dos cinemas. Principalmente quando suscitam tantas reflexões, bem como nos possibilitam enxergar sobre novas lentes de perspectiva acerca de problemas e questões que vemos comumente nos jornais, livros ou debates.

Por Tulio Custódio Do Justificando

O filme “I, Daniel Blake“, de Ken Loach, é uma peça excepcional para isso. A narrativa do longa é trajetória de Daniel em busca de um emprego, diante de uma doença cardíaca que o impede de, oficialmente, conseguir trabalho. Ao mesmo tempo, ele percebe sua vida se despedaçar, com aumento das dívidas, falta de renda para subsistir, ainda que tente ajudar outras pessoas, como a mãe solo de duas crianças Katie, que também vê sua situação social se deteriorar ao longo do filme.

Claro e evidente, o mote principal desse filme é a pobreza, a dependência dos estratos mais baixos da sociedade à assistência governamental, e a burocracia imposta pelo Estado – o que dificulta mais as coisas para os necessitados.

No entanto, “I, Daniel Blake” nos permite olhar para outras dimensões instaladas na realidade das pessoas pauperizadas no atual capitalismo. Uma delas é a natureza diversa dos excluídos, dos precarizados. O personagem principal, estrelado por Dave Johns, é um homem branco, carpinteiro (ou seja, com habilidades manuais para trabalho) e velho. Em seu círculo social, temos mulheres (mães solos), negros e outros brancos pobres. A natureza do grupo de pauperizados dá o tom sobre marcas de pertença e estado de existência que, interseccionadas com variáveis de formação cultural, origem de classe, status, entre outros, conformam um caldo de pessoas em uma situação de precarizados.

Quem são os precarizados? Uma população, um grupo oriundo da classe trabalhadora, que se encontra à margem do mundo produtivo, com completa insegurança financeira, dependente da assistência do Estado e buscando, nas formas mais violentas e desesperadas, uma maneira de sobreviver. O precariado.

Outra dimensão, para olharmos mais detidamente o que representado como “vilão” na história, é o Estado. Com um aparato burocrático impessoal e intransigente, o Estado aparece como aquele que poderia prover assistência; no entanto, é cheio de problemas, obstáculos e limitações. Mas, e essa é uma das coisas que o filme nos permite refletir, não podemos esquecer que esse é o Estado que, desde os anos 1970 com advento e desenvolvimento do neoliberalismo, vem sendo desmantelado em suas políticas de bem estar e assistência social e de oferecimento de serviços básicos.

Um Estado que vem promovendo, na sua própria burocratização, o aprofundamento da situação de indignidade dos mais necessitados. Um Estado administrador das condições sociais que servem e atendem unicamente interesses de um grupo, as elites financeiras. E veja: não estamos aqui nem olhando para a classe de pessoas totalmente fora do mercado produtivo, aqueles das ruas, em situação de mendicância e perda total da inserção social. Os necessitados são os próprios trabalhadores precarizados, aqueles que com condição mais instáveis e inseguras, cada vez têm menos condições de fazerem o mínimo para subsistência.

Vale falar um pouco desse grupo de precarizados. Tema que vem sendo tratado não só na teoria sociológica, mas vem ganhando espaço em matérias de jornais e revistas, assim como dá base para personagens marcantes da produção cultural atual (geralmente independente) como Atlanta (de Donald Glover, com personagem Earnest “Earn” Marks) ou o próprio Daniel Blake. Segundo o economista britânico Guy Standing, uma das referências no debate, o precariado (termo que surge da junção de “proletariado + precarizados”, ou precariat) é formado por 3 grupos distintos, ambos em processo ladeira abaixo de pauperização e instabilidade.

O grupo das minorias específicas, sempre à margem no mercado de trabalho; o de pessoas qualificadas (geralmente mais jovens) que não encontram emprego diante das atuais condições de mercado; e o “velho proletariado” em situação de decadência, que ocorre por inúmeros motivos (tecnologias implantadas no processo produtivo, globalização das etapas produtivas, entre outros), no qual podendo enquadrar o personagem de Daniel Blake.

É muito nítido que se trata de um homem não qualificado culturalmente – ou seja, com títulos e educação superior, assim como letramento tecnológico (algo tão importante quanto nos tempos atuais) – é nesse sentido, domada sua condição física (provavelmente gestada pelas condições de vida anterior), se torna um não elegível para o trabalho.

Ao mesmo tempo, isso aprofunda sua pauperização a medida em que Estado não lhe garante formas dignas de sobrevivência e assistência. E a palavra dignas diz muito sobre o filme. Mesmo diante da situação de extrema dificuldade, na qual a sequência de acontecimentos só nos leva a perceber que o protagonismo perde a esperança e sua dignidade, a solução – oferecida pelo Estado – não parece desconectada do veneno que o adoece socialmente. O uso da perspectiva lógica da competição e distinção individuais, como ocorre na cena do “workshop de CV”, mostra que a moralidade do sistema se impõe àqueles que, sem dúvida, são tidos, vistos e tratados como uma grande massa. Amorfa, sem qualificações. Uma massa de precários, de precarizados.

A última dimensão que gostaria de ressaltar é sobre a dignidade. Ou melhor, os sentimentos, a subjetividade de quem vive esses processos de precarização. Blake ilustra bem tudo isso. É quase impossível não assistir percebendo o olhar dos atores e figurantes em cena. Para além da situação material apontada e a burocracia para conseguir trabalho, que será mal remunerado e de pouca qualificação, o olhar triste, baixo, quase sem nenhum brilho ilustra um horizonte de subjetividade de incertezas e da falta de laços e significado que o sistema impõem a essa massa, diante das inseguranças que a vida precária determina.

É esse olhar e sensação de um futuro incerto, de baixas ou quase nenhuma perspectiva e expectativa, que me chamou tanta atenção nesse filme. E é exatamente essa falta de perspectiva frente ao instável que mais acendem naqueles rostos. E isso é sobre dignidade, ou melhor dizendo, o desprivilégio de não ter acesso a ela…

As cenas mais dramáticas, a meu ver, por mais tristes cinematograficamente que são, espelham e representam uma realidade mais amarga e que não é romantizada: a destruição dos padrões de humanidade promovida pelo sistema contra os mais marginalizados. Uma frase é crucial no filme é quando ele diz:

Quando se perde respeito por si mesmo, você está acabado.

O movimento incessante de empurrar pessoas para pauperização, fantasiado de flexibilidade e uma burocracia grotesca e impessoal faz isso com as pessoas pertencentes às classes mais baixas da sociedade. A perda do respeito, dignidade e segurança, que atingem não só as condições materiais, mas o âmago das subjetividades dessas pessoas.

A lembrar o que o grande filósofo Herbert Marcuse nos ensinou quando falava sobre como o capitalismo tomará as diversas esferas da vida dos indivíduos, tornando-nos seres unidimensionais, o que acontece quando essa única dimensão não vale nada? Quando essa única dimensão de existência, material e psicológica – de estima e pertencimento – não é considerada satisfatória?

Essas questões me remetem a mais cenas do filme. As cenas de limpeza protagonizadas por Katie (personagem da atriz Hayley Squires) se tornam uma analogia a constante tentativa de “limpar” e arrumar a vida, marcada pela instabilidade, pelo amanhã incerto e insegurança.

A sujeira sai aos poucos, mas nunca é resolvida plenamente. Esse é o capitalismo neoliberal para os pobres. Sempre sujo, instável, indigno.

E para quem assistiu ao filme – ou vai buscar para ver: talvez precisemos pensar mais em latas de spray do que em buchas. Ele, Daniel Blake, e nós. Todos cidadãos, nem mais nem menos.

Tulio Custódio é Sociólogo, curador de conhecimento Inesplorato, criador do Pitacodemia, membro do Coletivo Sistema Negro.

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