De migrante à empreendedora, ex-executiva impactou a vida de 10 mi de mulheres

Ana Fontes está à frente da Rede Mulher Empreendedora, finalista do Empreendedor Social na categoria Inclusão Social e Produtiva, como maior plataforma de empoderamento feminino

Em abril de 1970, dona Maria Laudice dos Santos partiu com seis filhos, com idades que variavam de seis meses a oito anos, para uma viagem de três dias de ônibus, de Igreja Nova, no sertão de Alagoas, para São Paulo.

Entre os menores estava Ana Fontes, com quatro anos. “Minha mãe só tinha dinheiro para comprar quatro poltronas no ônibus”, relata ela, aos 57, sobre a saga da família de retirantes nordestinos.

Eles fugiam da seca, que já havia ceifado a vida de dois dos dez filhos de dona Maria e seu Josino dos Santos, vítimas de doenças da pobreza, como diarreia.

O pai partira antes com os dois mais velhos para arrumar um lugar para abrigar o restante da família em Diadema, na Grande SP.

Mulheres têm aulas de empreendedorismo na sede da Rede Mulher Empreendedora, em São Paulo –  Renato Stockler/Folhapress

Cinco décadas depois, Ana passa em revista essa trajetória, à frente da maior plataforma de empoderamento feminino do Brasil, como fundadora da Rede Mulher Empreendedora e do Instituto Rede Mulher Empreendedora.

Com os dois cartões de visita, a brasileira embarcou para Nova York em 12 de setembro para o “SDGs in Brasil”, evento realizado pelo Pacto Global, na sede das Nações Unidas.

Discutiu os avanços na implementação dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Por terra ou a jato, percorrer essas distâncias tem um mesmo significado para essa mulher negra, de pele clara, cabelos crespos e olhos verdes.

“O que me move é o profundo senso de justiça e o desejo de criar uma sociedade melhor para minhas filhas e honrar minha mãe e minha avó”, diz Ana, que tem duas herdeiras. Daniele, 21, do casamento com Luciano Fontes, e Evelyn, 15, adotada pelo casal.

A primogênita está no segundo ano de medicina em uma faculdade privada. A futura médica fala da trajetória da mãe com a admiração de quem enxerga a medicina como forma de mudar vidas.

“A história de superação dela me faz acreditar num mundo melhor. E a melhora vai vir pelas nossas mãos”, diz a universitária, que quer exercer uma medicina “mais social”.

Garantir o primeiro diploma em publicidade e propaganda exigiu da mãe de Daniele a superação de uma série de obstáculos.

Entre eles, pegar dinheiro emprestado com uma vizinha para a matrícula e fazer malabarismos para pagar a mensalidade, que correspondia a dois meses de seu salário de auxiliar de vendas.

“Nos viramos aos trancos e barrancos”, diz Ana, que começou a trabalhar aos 10 anos, como babá e fazendo faxina nas casas de vizinhos. Relata episódios de assédio ao longo da trajetória profissional, de recepcionista e auxiliar a vice-presidente de multinacional.

“Sofri microviolências por ser mulher e nordestina. Alisei meu cabelo para fazer parte do ambiente corporativo.”

Episódios que acionaram aquele senso de justiça, “ou de injustiça”, pontua. As marcas a fizeram se movimentar, mudar a própria realidade e também a de outras mulheres.

Em 2007, ela se despediu do emprego formal de executiva na Volkswagen, abrindo mão de benefícios, estabilidade e status. “Quando você vem da extrema pobreza, é difícil e contraditório abrir mão de conquistas, como carro, plano de saúde e salário bacana.”

Quando você vem da extrema pobreza, é difícil e contraditório abrir mão de conquistas, como carro, plano de saúde e salário bacanaAna Fontes

Fundadora do IRME e da RME

Repensou a vida e fundou o Elogia Aqui, plataforma de análise de produtos e serviços e criou um espaço de co-working.

“Abri a primeira empresa com dois amigos, uma das grandes bobagens que fiz e que muitos empreendedores fazem, que é sociedade por amizade”, avalia.

Sentiu na pele as dores de empreender. Em 2010 foi uma das 35 mulheres selecionadas para um curso gratuito de três meses na FGV para ajudá-las na gestão de seus pequenos negócios.

“Sintam-se privilegiadas porque tivemos 1.100 inscrições”, disse o coordenador, no primeiro dia de aula.

O sentimento de Ana foi de desconforto com o fato de outras empreendedoras tão necessitadas quanto ela ficarem de fora. Criou um blog para compartilhar os conteúdos que recebia em sala de aula.

Era o embrião da Rede Mulher Empreendedora, com dicas para o público feminino em linguagem acessível. “O blog explodiu. Aquelas mil mulheres começaram a divulgar para outras. Foi uma loucura. Em seis meses, tinha 100 mil pessoas acompanhando.”

Em janeiro deste ano, Ana Fontes foi convidada a integrar o Conselhão do presidente Lula (PT) para compartilhar ideias sobre geração de renda a mulheres em vulnerabilidade – Renato Stockler/Folhapress

O sucesso do canal chamou a atenção do Sebrae (Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas). “Um consultor falou para mim que empreender é igual para homens e mulheres”, recorda. “Fui mostrando que tem diferença gigantesca. Esse é o nosso pioneirismo”.

Antes de formalizar a Rede Mulher Empreendedora, Ana fez bate-papos para entender as dores do futuro público.

“Parecia que as histórias se repetiam. Eram falas como: ‘meu companheiro não me apoia’, ‘quero ter independência’, ‘quero estar próxima dos meus filhos’’, diz. “As mulheres são tratadas como cidadãs de segunda classe, como se não tivessem os mesmos direitos.”

A RME produz conteúdos voltados à autoestima e ao bem-estar, além de programas de fomento ao empreendedorismo feminino e geração de renda para mulheres em situação de vulnerabilidade, marcadores sociais que vivenciou na pele.

Criado em 2017, o instituto qualificar mulheres negras, trans, as que moram em comunidades e aquelas com mais de 50 anos.

O programa Ela Pode vai injetar como capital-semente mais de R$ 40 milhões até 2025 como microdoações para fazer os negócios dessas mulheres prosperar.

Com a potência de uma rede que conecta 1,5 milhão de mulheres e já impactou a vida de 10 milhões de brasileiras, Ana foi convidada esse ano para integrar o Conselho de Desenvolvimento Econômico, Social e Sustentável, o “Conselhão” do governo Lula (PT).

No grupo, ela compartilha projetos de geração de renda com eficácia comprovada no RME para possível replicação.

“Não se muda a desigualdade no Brasil sem política pública”, diz. “A gente vai levar um século e meio para que as mulheres tenham as mesmas oportunidades e direitos que os homens. Vou trabalhar para que esse tempo seja menor.”

INSTITUTO REDE MULHER EMPREENDEDORA EM NÚMEROS

  • Mais de 11 milhões de mulheres beneficiadas desde a fundação do instituto, sendo 381 mil só em 2022
  • R$ 40 milhões repassados em microdoações para empreendedoras e ONGs
  • 15 mil mulheres receberam recursos e pelo menos 15% de incremento de renda
  • 2.500 mulheres atuam como voluntárias, multiplicadoras, mentoras e embaixadoras
  • 329 vítimas de violência foram encaminhadas a projetos do IRME em 2022

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