Declaração Feminista Negra dos EUA sobre o assassinato de Marielle

FONTEDo  #AgoraÉQueSãoElas
Manifestantes acendem luzes em protesto contra o assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes, na Cinelândia – Rio de Janeiro. (Foto: Imagem retirada do site Folha de S. Paulo)

“Aquelas de nós que estão fora do círculo da sociedade que define mulheres aceitáveis; aquelas de nós que foram forjadas no calvário da diferença – aquelas de nós que são pobres, que são lésbicas, que são negras, que são mais velhas – sabem que a sobrevivência não é uma habilidade acadêmica. É aprender a estar sozinha, impopular e às vezes insultada, e como construir uma causa comum com os outros identificados como fora das estruturas, a fim de definir e buscar um mundo no qual possamos todos florescer. É aprender a pegar nossas diferenças e transformá-las em força. Pois as ferramentas do Senhor da casa grande nunca desmantelarão a casa grande. Eles podem nos permitir vencê-lo temporariamente em seu próprio jogo, mas nunca nos permitirão realizar uma mudança genuína. E este fato é uma ameaça apenas para as mulheres que ainda identificam a casa grande como sua única fonte de apoio.”
– Audre Lorde

Em 13 de março de 2018, Marielle Franco, uma mulher negra queer, mãe, socióloga, socialista, defensora dos direitos humanos, vereadora da favela da Maré, tuitou sobre Matheus Melo de Castro, 23 anos, que foi baleado no Rio: “Mais um homicídio de um jovem que pode estar entrando para a conta da PM. Matheus Melo estava saindo da igreja. Quantos mais vão precisar morrer para que esta guerra acabe?” No dia seguinte, ao sair de um evento, “Jovens Negras Movendo as Estruturas”, no bairro da Lapa, no Rio de Janeiro, ela foi executada. Por volta das 21h30, um carro não identificado estacionou ao lado do dela e o assassino disparou treze tiros no carro, matando Marielle e seu motorista Anderson Pedro Gomes, deixando sua assistente viva. As balas de 9mm que atingiram Marielle na cabeça e no pescoço vieram de um lote de munição que a Polícia Federal havia comprado em Brasília em 2006. A Polícia Militar usou balas desse mesmo lote para massacrar 17 pessoas em Barueri e Osasco (região metropolitana de São Paulo) em 2015.

Como acadêmicas feministas negras dos Estados Unidos cujo trabalho está enfocado no racismo, no sexismo e na violência anti-negra no Brasil, nós nos solidarizamos com mulheres negras e comunidades negras no Brasil que estão de luto pelo assassinato político de Marielle Franco. Reconhecemos a morte de Marielle como parte de um padrão estrutural de assassinato, terrorismo e silenciamento das comunidades negras brasileiras patrocinado pelo Estado. Sabemos que ela foi morta porque identificou e denunciou a violência anti-negra do Estado, particularmente aquela ligada à atual ocupação militar do Rio de Janeiro apoiada pelo governo federal. Nós também sabemos que ela foi morta não apenas devido a sua raça, ou gênero, ou sexualidade, ou classe ou crenças políticas, mas por causa de todas essas coisas combinadas. Sua morte é um ato político alarmante e descarado de violência. Marielle era uma mulher negra que defendia o feminismo negro, denunciava a violência policial, falava corajosa e ousadamente sobre racismo e classismo, e defendia e investia fortemente em sua comunidade (uma favela). Como tal, ela era uma ameaça à ordem social global, que é caracterizada por supremacia branca, patriarcado, capitalismo e imperialismo. Mas a morte dela não é um sinal da força dessa ordem. Pelo contrário, é um sinal de sua fraqueza cada vez mais em expansão.

Marielle nasceu e cresceu no Complexo da Maré e morreu representando essa comunidade. A Maré e outras comunidades semelhantes há muito tempo funcionam como um laboratório para políticas brutais de austeridade, policiamento violento e ocupação militar. A dissertação de mestrado em sociologia de Marielle explorou longamente essa brutalidade, particularmente sua vinculação à militarização das forças policiais brasileiras e à ocupação das favelas, majoritariamente negras e pobres, de sua cidade, o Rio de Janeiro. Como militante ativa do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), Marielle desafiou o status quo de negligência e abuso de pessoas pobres e negras no Brasil patrocinado por tantos partidos políticos. Não é por acaso que, poucos dias antes de seu assassinato, ela ela havia sido nomeada para ser a relatora da Comissão Especial para investigar a recente intervenção federal e ocupação militar das favelas no Rio de Janeiro.

Estamos cientes do significado transnacional do assassinato de Marielle e suas ligações com práticas globais de genocídio anti-negro. A população negra do Brasil é a segunda maior população de descendentes de africanos no mundo, e tem sido alvo de práticas policiais brutais e violentas por décadas. A crise da violência policial no Brasil não pode ser separada do contexto do policiamento anti-negro nos Estados Unidos que motivou três mulheres negras a fundarem o Movimento Black Lives Matter, em 2013, e o expandiram para o Movimento pelas Vidas Negras (M4BL). No entanto, é importante reconhecer que os negros e negras brasileiros e o povo brasileiro como um todo também estão se manifestando e se organizando contra a letalidade e a brutalidade da polícia contra a população negra por gerações. A resistência negra pode ser rastreada até as guerras entre as comunidades quilombolas e as forças militares portuguesas. Isso é importante ser lembrado, especialmente se considerarmos que aparatos policiais contemporâneos surgiram nas Américas em resposta direta à ameaça de revolta negra durante a escravidão. Como tal, os negros e negras têm resistido ao policiamento violento e racializado desde a época da escravidão em toda a região das Américas.

Assim, nós fechamos um círculo completo. Embora existam conexões explícitas e implícitas entre o Movimento pelas Vidas Negras dos EUA e o Brasil, o atual movimento contra o genocídio anti-negro no Brasil é uma extensão orgânica de gerações de resistência contra a violência anti-negra do Estado no Brasil. Marielle era parte de um grupo de mulheres negras que lideravam a luta global para acabar com o terror anti-negro patrocinado pelo Estado. Ela até se comprometera a aprender inglês através de leituras intensivas das obras de estudiosas feministas negras como Audre Lorde, bell hooks, Angela Davis, entre outras, como uma forma concreta de ligar movimentos brasileiros a ideias e lutas por liberdade e justiça, ao redor do mundo. Se reconhecermos o Movimento pela Vidas Negras como uma coalizão global para lutar contra a violência anti-negra do Estado, Marielle Franco é mais uma mártir desse movimento global.

Nos sentimos compelidas a contextualizar a vida, o ativismo e a morte prematura de Marielle na tradição histórica brasileira, de 500 anos, de oprimir os povos descendentes de africanos e indígenas, e nas contínuas lutas pela cidadania e democracia inclusivas no contexto do crescente autoritarismo. Segundo a Human Rights Watch, em 2016 a polícia matou 4.224 pessoas no Brasil. Não é nenhuma surpresa que a maioria dos mortos sejam pessoas negras. Se as experiências recentes de assassinatos de pessoas negras por policiais no Brasil nos dizem alguma coisa, elas nos dizem que a polícia geralmente age com impunidade. Não esqueçamos o caso de Claudia Ferreira da Silva, uma negra brasileira morta por policiais no Rio de Janeiro em 16 de março de 2014 – quase quatro anos antes de Marielle ser morta. Claudia foi baleada pela polícia durante um tiroteio com supostos traficantes de drogas em sua vizinhança. Depois que ela foi ferida, ela foi colocada no porta-malas da viatura policial e seu corpo foi arrastado por aproximadamente 250 metros antes dos dois policiais pararem a viatura e colocarem o corpo de Claudia sem vida de volta para dentro. Ela estava morta quando chegou ao hospital. Os policiais acusados ​​de sua morte nunca foram condenados, e até se envolveram em mais oito assassinatos nos últimos quatro anos. A história de Marielle também nos lembra da morte de Luana Barbosa dos Reis – uma mulher negra de 34 anos de São Paulo que foi espancada e morta por policiais em Ribeirão Preto. O que precipitou o espancamento dela é significativo: uma mulher lésbica que se vestia de forma masculina, Luana protestou quando policiais a pararam e insistiram em revistá-la como se ela fosse um homem. Quando ela se recusou a obedecê-los, os policiais a espancaram tanto que ela sofreu uma hemorragia interna e acabou morrendo de derrame.

O brutal assassinato de Marielle Franco destaca as práticas perturbadoras da violência e repressão do Estado no Brasil, uma vez que afetam a população negra e particularmente a população negra pobre. Essa contínua opressão há muito tem sido negligenciada pela mídia internacional e por muitos estudos acadêmicos. Como parlamentar da Assembleia Legislativa e militante no Rio de Janeiro, Marielle defendeu os direitos das mulheres negras, dos moradores das favelas e da comunidade LGBT em uma cidade altamente desigual e segregada. Embora o Rio de Janeiro estivesse no centro das atenções internacionais há apenas dois anos como anfitrião das Olimpíadas de 2016, a ocupação policial e militar das favelas majoritariamente negras da cidade foi acobertada pelo discurso público brasileiro convencional. Políticas de genocídio e extermínio contra comunidades negras nas principais cidades do Brasil foram postas em prática desde sua fundação, e só aumentaram nos últimos anos. Nesse sentido, o assassinato de Marielle é uma continuação de uma prática antiga do Estado de matar pessoas negras.

O fato da atual situação política do Brasil ser assustadoramente similar à ditadura militar do país (1964-1985) é motivo de alarme e ação internacional. O golpe que forçou a saída do cargo da presidenta eleita do Brasil, Dilma Rousseff, em agosto de 2016, acelerou a espiral política descendente do país e a rápida reversão de políticas democráticas e inclusivas que foram duramente conquistadas por militantes negros – e mulheres militantes negras em particular. O giro à direita do país exacerbou um clima político no qual militantes, mesmo aqueles tão proeminentes como Marielle, podem ser mortos. Estamos particularmente preocupadas com o impacto da atual crise democrática no Brasil sobre as comunidades negras e sua relação com o aumento das taxas de violência anti-negra e mortes patrocinada pelo Estado. Enquanto comunidades progressistas em todo o mundo lamentam a morte de Marielle Franco e seu motorista, Anderson Pedro Gomes, devemos também perceber que estes trágicos assassinatos são apenas dois dos milhares que são cometidos contra mulheres negras, homens negros e crianças negras no Brasil todos os anos. Estima-se que uma pessoa negra é morta no Brasil a cada 23 minutos.

A notoriedade do assassinato de uma vereadora eleita mobilizou pessoas em todo o Brasil e em todo o mundo. Precisamos manter essa energia se quisermos garantir a segurança e o bem estar das mulheres negras, como Marielle, e  das comunidades como a Maré. Por mais trágico e chocante que tenha sido, infelizmente, o assassinato de Marielle não foi uma anomalia. No Brasil, pelo menos 194 políticos e militantes foram mortos nos últimos cinco anos. Muitos deles foram mortos por ousar questionar as estruturas sociais hegemônicas entrelaçadas com os interesses dos EUA. Não podemos lamentar sua morte trágica ignorando a cumplicidade e envolvimento de nosso próprio governo em sua morte. As forças policiais brasileiras responsáveis ​​pela brutalidade foram treinadas pelo FBI e pelo Departamento de Polícia de Nova York. Oligarquias agrícolas ligadas a corporações multinacionais e políticos estadunidenses matam rotineiramente indígenas em disputas fundiárias. E não podemos esquecer que Marielle denunciou corajosamente o golpe que derrubou a Presidenta democraticamente eleita do Brasil e que teve o apoio do Departamento de Estado dos EUA. Dadas as dimensões globais da anti-negritude e a circulação transnacional de práticas de violência estatal e policiamento militarizado, acreditamos profundamente que devemos nos organizar em nível hemisférico e global.

Marielle será para sempre lembrada por aqueles e aquelas que ela representou e inspirou, por reconhecer sua humanidade, enquanto outros apenas os viam como alvos a serem marginalizados ou aniquilados. Na noite de sua morte, Marielle citou Audre Lorde dizendo: “Eu não sou livre enquanto toda mulher não é livre, mesmo quando seus grilhões sejam muito diferentes dos meus” (1981, “Os Usos da Raiva”). Como negros e negras nas Américas, devemos nos comprometer a continuar o trabalho pelo qual Marielle morreu. Devemos afirmar a necessidade de centrar nossas lutas pela libertação na vida e a na experiência das mulheres negras, não às custas da diversidade de gênero de nossas comunidades, mais amplas, mas precisamente porque “Se as mulheres negras fossem livres, isso significaria que todo mundo teria que ser livre, já que nossa liberdade exigiria a destruição de todos os sistemas de opressão” (Declaração do Coletivo do Rio Combahee).

A visão coletiva para a liberação é necessariamente transnacional – nossas lutas são inerentemente conectadas. Estamos emocionadas que o mundo se comoveu com a morte de Marielle. Essa demonstração de solidariedade internacional sinaliza um momento de virada. Mas pedimos a todos e todas nós que mantenham esse olhar atento para os meses e anos vindouros. O assassinato de Marielle não foi o primeiro e, infelizmente, não será o último ato belicoso nessa luta global. A luta pela vida negra exige que permaneçamos vigilantes em casa e no exterior. Justiça para Marielle significa justiça para todos e todas nós.

Marielle, presente! Avante pretas! A luta é de todas e todos nós!

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Kia L. Caldwell, Estudos Africanos, Afro-Americanos e da Diáspora, University of North Carolina – Chapel Hill
Wendi Muse, História, New York University
Tianna S. Paschel, Estudos Afro-Americanos, University of California – Berkeley
Keisha-Khan Y. Perry, Estudos da Diáspora Africana, Brown University
Christen A. Smith, Estudos Africanos e da Diáspora Africana e Antropologia, University of Texas – Austin
Erica L. Williams, Sociologia e Antropologia, Spelman College

Foto em destaque: Reprodução/ Folha de S. Paulo

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