Defesa intransigente do Eixo 9 “Enfrentamento do Racismo, Sexismo e Lesbofobia” na III CNPM

A Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras propõe, neste documento1, uma introdução ao debate sobre as desigualdades sociais vivenciadas pelas mulheres em suas diferentes identidades de gênero, tendo em vista a III Conferências de Política para as Mulheres.

As Conferências são instrumentos legítimos de construção de políticas públicas e os gestores são os responsáveis por programar e implementar essas políticas. Nesse sentido, buscamos contribuir para o fortalecimento das mulheres negras na garantia de seus direitos e de uma sociedade mais justa exigindo o cumprimento das políticas aprovadas no Eixo 9, da II Conferência de Política para as Mulheres.

Contextualizando

Dados disponibilizados pelo IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística revelam que, em 2010, o Brasil é um país habitado por uma população de 191 milhões de habitantes, sendo que a população negra soma 97 milhões de pessoas e, pela primeira vez, são maioria no Brasil.

Entretanto…

Levantamento feito pelo governo federal, com base em dados preliminares do Censo Demográfico de 2010, do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), e estudos do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), revelam que 16,2 milhões brasileiros, o equivalente a 8,5 % da população do país vivem em situação de extrema pobreza, com uma renda per capita de até R$ 70,00 por mês, ou pouco mais de R$ 2,00 por dia. Desse total, 70,8% são afrodescendentes e 50,9% têm, no máximo, 19 anos de idade.

A análise dos dados revela também que, além da renda baixa, a parcela da população em extrema pobreza não tem acesso a serviços públicos, como água encanada, coleta de esgoto e energia elétrica.

Estima-se, por exemplo, que mais de 300 mil casas não estão ligadas à rede de energia elétrica.

Nós mulheres negras somos 49 milhões de brasileiras

Ser mulher negra significa muitas coisas diferentes,porém tendo em comum fortes marcas decorrentes da existência do racismo, que cria um conceito e uma hierarquia de raça. E há também a marca da desqualificação do sexo feminino estabelecida pelo sexismo, que traz também a noção de heterossexualidade compulsória, condenando comportamentos sexuais diferentes. O que pode provocar outras formas de violência e discriminação que, quando voltadas para mulheres homossexuais, são denominadas lesbofobia.

As mulheres negras contribuíram de forma inquestionável para a construção socioeconômica e cultural do país e têm participação decisiva nas conquistas de direitos das brasileiras. Sua luta contra o racismo e o desmascaramento do mito da democracia racial tem conquistado o envolvimento e o comprometimento de outros setores da sociedade civil organizada.

As mulheres negras estão entre os contingentes de maior pobreza e indigência do país. Possuem uma menor escolaridade, com uma taxa de analfabetismo três vezes maior que as mulheres brancas, além de uma menor expectativa de vida. São trabalhadoras informais sem acesso à previdência, residentes em ambientes insalubres e responsáveis pelo cuidado e sustento do grupo familiar.

Há muito tempo a mobilização política das mulheres negras tem apontado para o reconhecimento do papel do Estado na produção de ações capazes de reduzir o impacto que o racismo, o sexismo e a lesbofobia têm em suas vidas. Uma vez que reconhecem que, sem a colaboração do Estado, que tem atuado principalmente na defesa dos interesses de uma minoria, o racismo, o sexismo, a lesbofobia e as demais iniquidades não teriam ido tão longe.

Vem desta perspectiva a crescente demanda pela elaboração de políticas públicas inclusivas, democráticas, anti-racistas, anti-sexistas e anti-lesbofóbicas. Demandas que têm resultado em iniciativas estatais, principalmente a partir do governo federal, mas que se estendem também aos demais níveis de governo e os poderes legislativo e judiciário que, de maneiras diferentes, têm a responsabilidade constitucional de responder às nossas reivindicações e propostas.

No entanto, os avanços atuais ainda não têm sido suficientes para produzir alterações significativas e imediatas na vida das mulheres negras. Isto se deve principalmente às deficiências e limitações das políticas em curso, resultantes das resistências interpostas por representantes de interesses contrários, mas também pelas inconsistências técnicas e políticas que estas ações experimentam.

Eixos de subordinação

A força do racismo no Brasil é o principal fator de produção de desigualdades seja entre mulheres e homens, seja entre mulheres, como os diferentes dados de diferentes centros de pesquisa e fontes de informação à disposição demonstram. Assim, para a melhoria das condições de vida das mulheres negras, o enfrentamento ao racismo é fundamental e prioritário. Por outro lado, não reconhecer o papel que o sexismo tem pode fazer com que se reforcem desigualdades seja entre negros, seja entre outros grupos identitários.

Assim, ações, políticas e programas voltados para as mulheres negras devem necessariamente considerar a necessidade de enfrentar não apenas o racismo e o sexismo, como também as iniquidades decorrentes da pobreza, da baixa escolaridade, das condições precárias de saúde, da distância dos grandes centros e das dificuldades de acesso a transportes coletivos, das diferenças culturais, das diferentes orientações sexuais e da lesbofobia, das necessidades específicas de cada pessoa, e demais fatores que interagem na vida destas mulheres específicas.

Racismo institucional

Outro aspecto importante a ser considerado é o racismo institucional. Também chamado de racismo sistêmico, é um conceito criado para assinalar a forma como o racismo penetra as instituições,  esultando na adoção dos interesses, ações e mecanismos de exclusão perpetrados pelos grupos dominantes através de seus modos de funcionamento e da definição de prioridades e metas de realização.

Assim, para que os interesses das mulheres negras possam ser atendidos através de políticas públicas, é preciso modificar as formas de funcionamento das instituições responsáveis pela formulação, xecução e monitoramento destas políticas. Ou seja, o Estado brasileiro como um todo e cada uma de suas parte e diferentes poderes (legislativo, judiciário e executivo) precisam ser alterados para afastar os mecanismos discriminatórios já em curso que tem resultado no privilégio dos brancos, tanto nas posições de gestão quanto nas ações e políticas desenvolvidas.

Por que Políticas para as mulheres negras¿

Para que as mulheres negras tenham suas demandas e necessidades atendidas, não são suficientes as políticas chamadas universais, ou seja, voltadas para grupos maiores, como por exemplo, as mulheres em geral ou a população negra. Ao contrário, a experiência brasileira e os dados apontam que as políticas universais para mulheres, por não considerar especificidades e desigualdades entre elas, têm privilegiado as mulheres brancas, especialmente aquelas residentes nos grandes centros urbanos.

Dito de outra forma, a presença do racismo e outras desigualdades têm resultado no privilégio de um grupo minoritário de mulheres no acesso às conquistas da luta feminista.

A inclusão do eixo 9 sobre Racismo, sexismo no Plano Nacional de Políticas para as Mulheres foi uma elaboração vitoriosa de diferentes segmentos do movimento de mulheres, sob a iniciativa das mulheres negras. Esta deve ser vista como uma forma de facilitar os processos de compreensão e de elaboração de gestora/es e formuladora/es de políticas públicas, acerca da dimensão das desigualdades entre as mulheres e entre estas e os diferentes segmentos de homens; bem como das formas mais eficazes e eficientes de endereçar ações para os diferentes segmentos de mulheres que compõem a sociedade brasileira.

Este eixo destaca as duas perspectivas fundamentais que as políticas para as mulheres devem ter para execução de seus objetivos de equidade, quais sejam:

1. a dimensão ideológica e; 2. a dimensão operacional.

Em ambas o eixo 09 reivindica a individualização – particularização de cenários, demandas e necessidades – das mulheres, como modo de produção de diagnósticos e de respostas, ações, programas e políticas.

A dimensão ideológica significa produzir iniciativas capazes de confrontar o status quo racista, sexista e lesbofóbico. A dimensão ideológica não se realiza automaticamente a partir do recurso às palavras raça ou etnia ao lado da palavra mulher. Na verdade, mulheres negras NÃO SÃO a somatória de gênero+raça. São “tipos”, grupos, coletivos e populações de mulheres marcadas pela experiência cultural comum e pela vivência cotidiana do racismo e seus efeitos.

A dimensão operacional requer a centralidade de cada grupo ou população de mulheres na proposição de políticas públicas. Isto significa diferentes níveis de ações afirmativas que incluem: sua  participação na formulação e na gestão em posição de igualdade em relação às outras mulheres e a proposição de ações que priorizem a alteração de suas condições de vida.

Isto implica a priorização da perspectiva e das demandas das mulheres específicas, o que NÃO É o mesmo que prever um percentual de mulheres “diversas” nas propostas gerais.

Assim, para que os interesses das mulheres negras possam ser atendidos através de políticas públicas, é preciso modificar as formas de funcionamento das instituições responsáveis pela formulação, execução e monitoramento destas políticas.

Estas modificações devem, sem abandonar as medidas de enfrentamento do heterossexismo institucionalizado, incluir ações que permitam um real avanço na formulação, implementação e monitoramento de políticas públicas específicas:

* desenvolvimento de ações afirmativas que possibilitem a participação de mulheres negras nas diferentes etapas e posições de gestão e execução das políticas públicas, o que inclui estímulos à  capacitação deste grupo quando necessário;

* promoção do treinamento das equipes para superação dos preconceitos; desenvolvimento e  adoção de medidas de estímulo às ações e condutas anti-racistas, anti-sexistas e anti-lesbofóbicas;

* desenvolvimento e adoção de medidas punitivas para os casos de discriminação e preconceito, bem como de descumprimento de metas específicas;

* promoção e divulgação de dados e adoção de indicadores de acompanhamento e avaliação segundo cor e sexo de indivíduos e grupos atendidos;

* garantia da demonstração cotidiana do compromisso de gestores com o desenvolvimento de políticas de equidade, de superação do racismo, do sexismo, da lesbofobia e dos preconceitos.

 

Essas ações devem ser explicitadas seja através da dotação orçamentária, seja através da divulgação de indicadores específicos, ou através de pronunciamentos públicos, entre outros.

No desenvolvimento de ações e políticas para as mulheres negras, é importante também o fortalecimento de sua liderança e de suas diversas formas de organização, de modo a permitir a mobilização social e o diálogo permanente necessário ao fortalecimento das articulações no interior da sociedade civil e entre esta e gestores e profissionais, para o alcance da equidade.

Acreditamos que a superação dessas estado e condição adversa experimentadas pelas mulheres significa o exercício pleno de seus direitos humanos, aviltados, essencialmente, pela discriminação racial e que, sem a afirmação de políticas públicas voltadas a esse grupo, seguramente, não veremos realizado o seu desenvolvimento humano.

E, principalmente, para se fazer ouvir de modo consistente e coerente, buscando corresponder aos sonhos, desejos e projetos que nós mulheres negras vêm desenhando, juntas ou separadas, há muito tempo. Mas com o compromisso de fazer um país livre do racismo, do sexismo da lesbofobia e das demais iniqüidades. Um país melhor, portanto.

 

Eixo 9: Enfrentamento do racismo, sexismo e lesbofobia

 

Objetivo Geral

Instituir políticas, programas e ações de enfrentamento do racismo, sexismo e lesbofobia no II PNPM

Objetivos Específicos:

– Empreender ações capazes de ampliar o conhecimento sobre a dimensão ideológica do racismo, sexismo e lesbofobia;

– Superar as dimensões de desigualdade baseadas no racismo, sexismo e lesbofobia.

Meta

– O II PNPM com ações afirmativas instituídas em 100% dos eixos e metas diferenciadas para cada área temática;

– Ações de enfrentamento do racismo, sexismo e lesbofobia desenvolvidas em 100% das instituições públicas governamentais da administração direta e indireta.

Prioridades

(1) Formular e implementar programas, projetos e ações de enfrentamento do racismo, sexismo e lesbofobia nas instituições públicas governamentais da administração direta e indireta, instituições não governamentais e privadas.

(2) Instituir políticas de ação afirmativa na elaboração e execução de políticas públicas, visando alcançar a eqüidade de gênero, raça, etnia, geracional e orientação sexual.

(3) Fortalecimento das políticas de enfrentamento da discriminação contra as mulheres atingidas pelo racismo, sexismo, lesbofobia, deficiência, fatores geracionais e outras formas de intolerância e discriminação.

 

 

Ações

1. Prioridade 1

(1.1) Instituir, no âmbito da SPM, Grupo de Assessoramento para as ações de implantação das dimensões de combate ao racismo, sexismo e lesbofobia.

(1.2) Formular e executar ações estratégicas que garantam a realização de metas percentuais de participação e atendimento segundo critérios étnico/raciais na implantação do II PNPM.

2. Prioridade 2

(2.1) Garantir o desenvolvimento de medidas de ações afirmativa no II PNPM e especial nas ações dos Eixos de trabalho, educação e poder;

(2.2) Apoiar técnica e financeiramente a capacitação de lideranças do movimento de mulheres e feminista na promoção de políticas e ações de enfrentamento do racismo, sexismo e lesbofobia e ações afirmativas;

3. Prioridade 3

(3.1) Estimular o desenvolvimento de Campanhas de enfrentamento do racismo, sexismo e lesbofobia para as políticas e programa do II PNPM;

(3.2) Criar um Banco de Consultoras nas dimensões temáticas de racismo, sexismo e lesbofobia, para a qualificação de profissionais e gestores de todas as áreas do II PNPM e níveis governamentais;

(3.3) Estimular a realização de eventos com objetivo de elaborar, pactuar e disponibilizar ferramentas para a superação do racismo, sexismo e lesbofobia, do Adultocentrismo e outras formas de discriminação e intolerância.

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