Depressão e ansiedade: o que o racismo causou à minha saúde e as 10 lições aprendidas

Após anos escondendo a sete chaves, parece que não sou tão boa atriz como pensava. Volta e meia recebo mensagens de gente perguntando se estou bem. Inclusive de amigos médicos. O mais recente, que é psiquiatra, me disse: Você tem todos os sintomas clássicos de depressão, passa no meu consultório pra gente conversar. Mal sabe ele que eu já sei de tudo isso, e já venho lutando contra esse vazio absurdo no qual me afogo dia após dia. Mal sabe ele que eu sei o motivo de a minha respiração ser sempre ofegante e da minha insônia. Mas eu ainda clamo por ajuda.

Por Gabriela Moura, do  Nada sob Controle

Eu tenho uma amiga que me diz para não comentar nada em público, porque, infelizmente, muitas pessoas parecem se alimentar da tristeza alheia. Como abutres, sabe? Eu sei que ela tem razão, mas eu espero que esse texto ajude as pessoas a entenderem que buscar ajuda é fundamental.

Eu tenho vinte e sete anos, e é claro que eu não vou lembrar da primeira vez em que entendi estar sendo vítima de racismo. Mas eu tenho lembranças de vários episódios desde a minha primeira infância, e eu precisei de muita coragem para escrever esse texto. Os efeitos do racismo na mente de uma pessoa são devastadores, mas quase ninguém sabe disso. Acho que se soubessem, se as pessoas entendessem quão gravemente nossa saúde mental é afetada, muita coisa seria diferente. Eu costumo dizer que a vida de uma pessoa negra poderia render um roteiro de filme de terror.

Antes eu preciso explicar que quase tudo o que me aconteceu antes dos dez anos de idade está bloqueado. Sinceramente eu não sei se quero cavar tão fundo, mas me restam flashes da vida que eu não escolhi pra mim.

É claro que não dá pra contar aqui toda a minha história, mas posso especificar alguns dos muitos momentos em que eu me vi sendo colocada de lado por ser negra e explicar como isso moldou minha postura diante da vida.

Primeiro, casos menos explícitos, mas que aparentemente não tinham explicação. Como quando eu era bem pequena e tinha um amiguinho que estudava em uma escola particular, e a turma dele iria fazer um passeio ao Parque da Mônica. As crianças tinham direito a um convidado, e ele fez a mãe dele ir até minha casa para que pudessem me convidar. Fiquei muito feliz, e lá fomos nós. Num determinado momento uma das professoras caminhava de mãos dadas com uma das alunas da escolinha. Eu peguei na outra mão dela para que me guiasse também, junto aos outros alunos (cada um cuidadosamente vigiado por professoras e monitoras), quando ela chacoalhou a mão para que eu a largasse. Eu não entendi naquele dia por que eu não recebia atenção como as outras crianças, nem por que uma pessoa que deveria estar responsável por mim me repeliu de forma tão violenta. Eu devia ter uns seis anos.

Também foi nessa época que eu era obrigada a ouvir repetidamente a pergunta “você é adotada?”, porque minha mãe tem a pele clara, embora não seja branca. Ou ouvir, enquanto eu passava, meus coleguinhas cantando uma musiquinha que dizia: “Gabriela, cabelo de Bombril, Gabriela cabelo de Bombril.” Ou ainda ser chamada repetidamente de macaca, galinha-preta-de-macumba, carvão e todos os nomes já conhecidos. E os professores não faziam absolutamente nada. Na minha vida escolar, aliás, eu tive apenas duas professoras negras. Do jardim (período que antecede a pré-escola), até o fim do ensino médio. Duas professoras negras. Nenhum professor se incomodava em ter alunos entoando ofensas racistas dentro de sala de aula, e nas aulas de História, falar sobre os negros se resumia a tê-los como “o povo rústico que foi escravizado por brancos mais bem preparados.”

Na adolescência eu fiz de tudo para ser mais parecida com os padrões brancos aceitáveis. Alisava o cabelo, sonhava em operar o nariz e fazia dietas cabulosas para emagrecer e ver meu quadril diminuir. Prática que me rendeu distúrbios alimentares com os quais lido até hoje. Neste período, o racismo que eu passava na escola já não era velado. Não havia pudores, por exemplo, nos meninos da turma que diziam que ficar com uma preta era algo totalmente fora de cogitação. Coisas do tipo. Enfiavam objetos no meu cabelo, perguntavam se podiam usá-lo para limpar panelas, sopravam pó de giz no meu rosto dizendo que era pra eu ficar branca. Nenhum “namorado” jamais me assumiu publicamente. E é claro que nada disso acontecia só comigo. Eu assistia todas as outras meninas negras da escola passarem por isso. Algumas de maneira até mais violenta, porque também sofriam gordofobia, opressão pela qual eu não passava e que eu ainda nem sabia que existia.

Ano passado eu descobri o livro “Psique e Negritude”, e tem sido um inferno ler as 90 páginas. É, já faz uns seis meses que eu tento ler 90 páginas. São 90 páginas de um livro que conta tudo o que eu vivo, onde pessoas são depoimentos semelhantes aos meus, e onde podemos ver como o sistema educacional está despreparado em relação a políticas de promoção de igualdade racial. E eu acho que preciso escrever um texto abordando especificamente essa questão. Eu prometo que um dia eu faço isso.

Tempos depois eu encontrei essa reportagem da revista Exame, mostrando o resultado de uma pesquisa que, pra mim, era algo bem óbvio: racismo causa ansiedade e depressão. Dizem os especialistas que sofrer racismo equivale ao baque emocional de perder um ente querido. Eu digo que esses especialistas estão certos. O problema é que isso equivale a perder um ente querido por dia, porque eu vivo isso todos os dias. Eu não posso escolher não sofrer racismo elo menos um dia, para poder descansar. Ser negro é viver em um mundo que não deseja manter você vivo. Daí eu me lembro do pessoal que acha que política de igualdade racial é privilégio. Deveríamos ter nos contentado com a Lei Áurea e ponto final? Mais uma vez: isso também fica para um próximo texto.

Tudo o que eu falei até agora foi só uma introdução. Eu quero mesmo é contar as 10 lições que eu aprendi lidando com a minha depressão e a minha ansiedade tendo o racismo como principal – mas não único, que fique claro – causador desses distúrbios.

1 – Isso não é uma escolha: Lidar com o racismo não é uma escolha. Frequentemente as pessoas me perguntam: Como você aguenta tanta encrenca e tanto problema? Já disse ali em cima que eu não posso escolher não sofrer racismo. Me resta enfrentá-lo. Nos últimos 10 anos eu tenho feito um trabalho muito consistente de auto-conhecimento e empoderamento político, e acredito não ser exagero dizer que isso salvou minha vida. Ajuda muito conhecer a sua própria história e se aproximar de outras pessoas que passam pelas mesmas situações. A similaridade das histórias das pessoas negras chega a ser assustadora. Mas tudo isso foi importante para que eu aprendesse métodos de defesa e táticas de resistência. E eu acredito que se eu não me preocupar com isso, ninguém se preocupará por mim.

2 – “Vai passar” é a pior coisa que se pode ouvir: Depois de ser escondida por tantos namorados que não topavam me assumir e inventavam as desculpas mais esdrúxulas possíveis, muitas pessoas amigas me consolavam com o bom e velho “vai passar”. Notícia ruim: não passa, não. Ao menos não tão rápido. Notícia boa: reconhecer isso ajuda a evitar cilada com homens que acham que não são racistas só porque levaram uma mulher negra pra cama mas “deus o livre” de ser visto com uma negra em pública. Dá pra jogar a real no começo e saber se ele é um babaca, mas leva tempo e nunca é fácil. A mesma coisa vale para quando perdemos uma vaga de emprego por sermos negros. Não vai passar coisa alguma, e é muito, mas muito cruel falar isso pra alguém. O problema não é pra ser mascarado, mas enfrentado.

3 – Viver sozinho pode não ser tão ruim: essa parte eu ainda estou aprendendo. Viver com a solidão é algo que não nos passa pela cabeça, porque somos socializados para termos uma bela família feliz, relações legais, blá blá blá. Mas o racismo afasta muita gente de você e, a depressão afasta ainda mais. Ninguém quer estar por perto de uma pessoa que parece uma nuvem negra ambulante. E o irônico é que é nessa hora que a gente mais precisa de ajuda e apoio. Daí a vergonha de admitir ser uma pessoa depressiva ou ansiosa.

4 – Não aceite que te falem que você está se fazendo de vítima: “Vitimismo” é uma palavra empregada nos debates sobre racismo por gente preguiçosa que não quer falar disso. É também um termo usado para dizer que pessoas com depressão estão no fundo do poço porque querem. Isso não existe. Hoje eu sei que quem acusa alguém de vitimismo nessas condições está só sendo maldoso ou egoísta, mesmo.

5 – Aproveite os picos de alegria: os momentos em que estamos bem são os melhores para fazermos uma autoanálise e fortalecermos a nós mesmos. Porque vamos precisar dessa força caso o carrinho da montanha-russa volte a cair. A hora do alívio é a hora de repensar o que nos levou a tal condição e como sair dela. Basicamente, é o momento em que se torna mais fácil ser racional.

6 – Aproveite as crises, também: Foi em uma crise que eu decidi procurar uma psicóloga e foi a decisão mais sábia do ano. É nas crises, quando me sinto transbordando, que me torno mais sincera e aberta a dizer o que raios se passa dentro de mim. Ah, também é a crise que impulsiona minha criatividade. Isso não é uma válvula de escape, mas no meu caso a arte serve como um catalizador fabuloso para ajudar a reciclar o que for reciclável e jogar fora o que for totalmente dispensável.

7 – Busque ajuda: Me aliar a militantes mais experientes do movimento negro me ajudou a compreender o mundo à minha volta e me deu malícia o suficiente para entender situações racistas. É imprescindível que possamos contar com essa ajuda para saber como nos defender, uma vez que, contrariando a teoria Freemaniana, o racismo por si só não desaparece se apenas pararmos de falar nele. Então é preciso que a gente entenda a sociedade, a história dos negros e as teorias que nos ajudem a lidar com as experiências que passamos todos os dias

8 – Ajude alguém: quando eu já me via suficientemente forte, comecei a expor fragmentos da minha vida e oferecer ajuda a quem precisasse ou pedisse. Não deixa de ser um aprendizado mútuo. Os negros no Brasil são criados muitas vezes para acharem que já está tudo bem, que episódios de racismo são casos isolados, e que devemos “deixar pra lá”. É perceptível o incômodo causado quando optamos por lutar, e é essa a postura que precisa ser fortalecida.

9 – Não passe por isso sozinho: os amigos podem até ajudar, na verdade eles são essenciais, mas só um profissional vai conseguir fazer a gente cavar o mais fundo possível na nossa mente. Esse processo de análise é o mais doloroso, porque a gente mexe numa piscina de chorume acumulado durante anos, mas também é o primeiro passo para que, mais pra frente, a gente consiga respirar com menos dificuldade. E, pela minha experiência, eu posso dizer: se não se sentir a vontade com o profissional escolhido, parta para outra. Eu tive uma terapeuta me ameaçava: olha, sua respiração está muito ofegante, se você não se controlar eu te mano pro psiquiatra.
Sutil feito coice de mula. Eu ainda estudo a possibilidade de denunciá-la ao conselho de Psicologia.

10 – Um dia de cada vez é o clichê mais real que existe: ansiosa que sou, eu nunca vivo apenas o presente. Sofro de excesso de futuro. Na minha cabeça eu vivo 2 anos a frente do tempo real. Até que percebi que minha vida tem uma estranha e adorável tendência a sofrer mudanças importantes a cada semana. Como ciclos lunares. É interessante observar a própria vida e respeitar o tempo. Porque é a vida que dita nosso tempo, e não o contrário.

Eu continuo sendo uma mulher negra atrás de um punhado de sonhos. Eu sei que eu nunca vou poder baixar a guarda. Eu vou morrer e o mundo ainda será racista. Meus filhos vão morrer e o mundo ainda será racista. Mas, sabendo que eu não tenho vocação para Mulher Maravilha, eu entendi que sobreviver já é, por si só, um ato de subversão. Eu disse isso numa entrevista pra revista TPM semana passada, mas é porque é uma frase que eu levo pra vida. Ao longo dos anos eu tenho descoberto algumas formas de lutar.

Conviver com o racismo, vivê-lo na pele todos os dias e estar sempre na defensiva a respeito são posturas que a vida impõe. E, traduzindo isso para sensações físicas, é como se carregássemos o mundo nas costas, literalmente, e como se houvesse sempre uma mão nos sufocando. Todos os músculos tensos, o estômago sempre dolorido, a cabeça inchada e latejando. O racismo não dá trégua. Ver uma criança negra ser hostilizada na rua, ver adolescente negro sendo prensado pela polícia se saber que poderia ser meu filho, ou que ainda poderá ser meu filho um dia. Ser diminuída por motivos tão absurdos e ser silenciada quando coloco isso em pauta. Apenas imaginem viver um dia nessa corrente invisível. Agora imaginem viver assim todos os dias. Eu não espero que todas as pessoas sejam militantes, porque de fato isso demanda muita energia. Mas eu estou muito viva, e cada ato meu reflete alguma parcela de luta. Eu não escolhi esse caminho, quando vi já estava nele, e se tornou meu modo de vida.

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