Descanse em paz, caro Stuart! – Por: Sandra Machado

Há alguma esperança…

O professor e pesquisador do multiculturalismo, Stuart Hall, morreu na semana passada, aos 82 anos. Ele formulou a teoria da codificação e decodificação – que analisa como aqueles que estão no poder (midiático, político e/ou econômico ) propagam mensagens por meio da cultura de massa/pop e como quem recebe tais mensagens as i nterpretam. Foi também um dos principais fundadores da chamada Escola de Birmingham (Comunicação e Estudos Culturais)

 

Não sei se Stuart Hall algum dia perdeu seu precioso tempo para repassar alguns vídeos ou cenas das “famosas” novelas brasileiras. Ou em boa parte dos filmes nacionais. Acredito que não. Nem precisaria. Bastaria um breve relato e já daria para saber o que vai aqui e ali, em todas essas produções. (Veja o artigo do Blog da Igualdade)

Ou seja, as equivocadas representações sociais, os estereótipos perversos que sempre funcionam contra as diversidades (principalmente, os que desqualificam e relegam as mulheres ao assujeitamento), e a manutenção do status quo , a todo custo, por meio da uniformização de ideologias e construtos socio-comportamentais.

Hall, um dos principais pensadores sobre isso tudo – questões (multi) culturais –, morreu na semana passada. Não vou dizer que ele ainda vai revirar-se em seu túmulo por muito tempo. Se fosse fazê-lo, não descansaria. Entretanto, deve ter falecido bem desiludido, pois são claros os sinais, em diversas partes do globo, de que alguns retrocessos sociais, culturais e comportamentais espalham-se como pragas em plantações.

O jamaicano Hall foi um professor e pesquisador brilhante, pioneiro no campo dos estudos culturais na Grã-Bretanha. Um dos fundadores da chamada Escola de  Birmingham (Comunicação e Estudos Culturais), ele argumentou que a cultura é,de fato, multicultural . Não é alta ou baixa, boa ou má, ou preta ou branca, masuma convergência em constante transformação, que reverbera a diversidade daspessoas que a criam e a consomem.

Em seus 82 anos de vida, Hall sofreu, literalmente na pele, o que as ditaduras raciais do patriarcado eurocêntrico podem fazer para destruir e fragmentar seres humanos, culturas e nações inteiras. No período pós-guerra, em 1950, quando o ainda adolescente Stuart chega para estudar em Oxford (Inglaterra), ganhador de uma bolsa de estudos, quase desiste de tudo, abalado.

À época, a Jamaica ainda era colônia britânica e ele era filho de mistura interracial, tendo compleição mais escura. Na escala da tal “pigmentocracia”, a variação da melanina determina quem tem mais chances de ascensão social. Em entrevista, já nos anos 2000, Hall contou sua experiência ao iniciar os estudos no que era, e ainda é, uma das mais sólidas e conceituadas universidades do mundo:

“O que eu me dei conta, no momento em que pisei em Oxford, é que eu não poderia fazer parte dela. Quero dizer, eu poderia fazer sucesso ali, poderia até ser aceito (como membro), mas eu jamais sentiria como se aquele fosse o meu lugar. É o cume de outra coisa. É anglicismo destilado.” ( Stuart Hall, Trailblazing British Scholar of Multicultural Influences, Is Dead at 82, The New York Times, 17/02/2014)

O ativismo e as pesquisas de Hall, a partir de sua chegada à Grã-Bretanha do pós-guerra, enveredaram-se para ecléticos e complexos temas, que iam da suavização da rígida estrutura de classes britânica, mas ao mesmo tempo do enfraquecimento de seu operariado; resvalaram no desarmamento nuclear; e passaram a abarcar as questões que envolvem os estudos culturais como um todo: televisão (produções audiovisuais), juventude, direitos civis, imigração, feminismo, diversidades raciais e étnicas.

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(Foto: © Sally Fraser / Photofusion)

Stuart Hall equipa e maneja a creche na primeira Conferência das Mulheres ocorrida no RuskinCollege, Oxford, em 1970. Foto da conferência feitas por Sally Fraser ( agora Chandan Fraser )

Em suma, Hall dedicou-se justamente às questões que estavam emergindo, ou ressurgindo, como problemas a serem estudados e trabalhados na contemporaneidade. Entre os anos 1950 e 1960, ele uniu esforços com outros pesquisadores como E. P. Thompson, Raymond Williams e Richard Hoggart, que terminaram por fundar o Centre for Contemporary Cultural Studies da Universidade de Birmingham.

Stuart Hall torna-se conhecido por desenvolver a teoria que ele chamou de codificação/decodificação: a análise de como aqueles que estão no poder (midiático, político e/ou econômico ) propagam mensagens por meio da cultura de massa/pop, e como quem recebe tais mensagens as interpretam.

Para ele, os estudos culturais são sobre poder e política, e sobre a compreensão das forças que formam e delineiam a manutenção do poder em suas diferentes esferas. “A questão racial é uma dessas forças. Raça é mais como uma linguagem do que a forma como nós somos biologicamente constituídos”, afirmou o pesquisador em uma palestra nos anos 1990.

Hall ressaltou a importância do estudo da(s) ideologia(s) para se compreender a estrutura social de poder, ao sustentar que o campo da   Comunicação Social seria produtor e reprodutor de ideologias, por maior que fosse a sua pretensão de “independência”.

Essa suposta isenção dos meios de comunicação de massa, dos produtores da indústria cultural – ficcional ou não-ficcional (jornais eletrônicos, digitais e impressos, por exemplo) –, já foi debatida e combalida, ao longo das últimas seis décadas. E é um conceito utópico, quando lidamos com as realidades que cercam nossas mídias, no Brasil e no mundo.

Hall e tantas e tantos outros envolvidos na pesquisa do multiculturalismo e do pos-colonialismo concordam que a linguagem é elemento preponderante na definição do ser humano, enquanto indivíduo e como ser social. Estudar a comunicação seria, então, pesquisar as relações entre as pessoas e o meio social e a própria sociedade.

A indústria cultural, nessa perspectiva, torna-se modeladora da consciência, capaz de configurar o conhecimento em conformidade com estruturas ideológicas que assegurariam a coesão social, a manutenção do status quo e a subsistência da dominação de uns (poucos) sobre outros (vários grupos sociais).

Aliás, o besteirol, os clichês e as frase feitas – aquelas que nos remetem à psicologia de botequim, trocada em tons de seriedade “profunda” após alguns goles – têm sido hegemônicos também no cinema e no teatro. Fazer o quê em um país onde a “cultura” (de e para as massas) é monopólio de um único conglomerado empresarial?

Falar em homogeneização industrial da cultura no Brasil é pouco. Bobagem. O que ocorre aqui é uma dominação abusiva, absurda, de visão absolutamente monolítica e ditatorial sobre tudo o que se vê, ouve, compra, descarta, debate nas mesas de bares ou, hoje, nas redes sociais, em mensagens e discursos trocados digitalmente. As organizações Globo detêm um monopólio quase divino e difícil de se encontrar em qualquer outro país.

A dominação ideológica (que é também política e econômica) começa na criação, passa pela produção e pós, e invade todo e qualquer reduto, por mais remoto, por meio da soberania nos meios físicos e virtuais de distribuição e exibição. Caso das emissoras afiliadas e associadas (TV e Rádio, públicos ou por assinatura); dos portais G1 e da Globo (internet); da Globo Filmes (cinema); meios impressos, com jornais e revistas (também virtuais); produtoras e distribuidoras musicais; e os diversos projetos sociais, educativos e/ou culturais, que incluem shows musicais e peças teatrais.

Patético. Um país continental que não tem nem referenciais para dizer que gostaria de algo diferente. Ou exigir outras opções. Como? Com o que se vê, ouve e lê nos outros grupos-espelhos? Record? SBT? Band? Alguma outra chanchada?

Em entrevista que fiz há algum tempo para um jornal, ouvi de uma respeitada atriz “global” (teatro, cinema e TV) que ela jamais assistira (ou viria a perder tempo com) uma novela. Nem mesmo aquelas em que estava atuando. Para quê?

Descanse em paz, caro Stuart Hall! Você fez pupilas e pupilos, em todo o mundo. Até mesmo na pequena aldeia global brasileira. Obrigada!

 

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