Desigualdade entre homens e mulheres no trabalho não diminui há 27 anos

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A desigualdade entre homens e mulheres no mercado de trabalho não diminui há 27 anos. É o que aponta um estudo da Organização Mundial do Trabalho (OIT), divulgado neste mês. A pesquisa vai além: em 2018, a probabilidade de uma mulher trabalhar foi 26% inferior do que a de um homem — uma melhoria de apenas 1,9% se comparado a 1991. A diferença salarial também segue como um dos pontos nevrálgicos dessa discussão, já que a distinção chega a 20% entre os gêneros, quando em cargos equivalentes. E mesmo nos países mais desenvolvidos, a equidade ainda parece ser um sonho distante. A Islândia, único país que alcançou a plena paridade de oportunidades de trabalho, segue sem oferecer igualdade de remunerações a sua população.

Por Gabrielle Estevans, do Hypeness

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A leitura é clara: o problema, mundial, deve pautar as políticas públicas com urgência e entrar para a lista de prioridades ao redor do globo.

No Brasil, não há como abrir discussão sobre gênero e mercado de trabalho sem racializar o discurso. Mulheres autodeclaradas pretas, pardas e indígenas são as que mais sofrem. Foi apenas em 1827 que meninas (brancas) puderam oficialmente frequentar escolas no País, permissão que levou 72 horas para se estender às universidades. Mas presumir que todas as mulheres esperaram decretos para poder trabalhar é uma visão limitada, segundo a jornalista Nana Soares. Para famílias pobres (muitas das quais formadas por mulheres negras), isso nunca foi uma opção: “Tanto é que em 1872, época do primeiro recenseamento geral do Brasil, as mulheres já representavam 76% dos operários nas fábricas. E a permissão para trabalhar fora sem a autorização do marido só veio em 1943 com a CLT”.

A verdade é que mesmo depois de libertas, as mulheres negras continuaram ocupando predominantemente o serviço doméstico e braçal, sendo mal remuneradas e vivenciando relações de poder e dominação que se estendem até hoje no mito da democracia racial. Se, hoje, as mulheres ganham, em média, 26% menos do que os homens, o abismo aumenta ainda mais se compararmos o salário de homens brancos e mulheres negras: em 2016, segundo o IBGE, elas ganharam, em média, R$ 1283, comparados com os R$ 3087 deles.

Segundo artigo da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), se a função for idêntica e exercida no mesmo estabelecimento, para o mesmo empregador e entre pessoas cuja diferença de tempo na função não seja maior que dois anos, os salários precisam, obrigatoriamente, ser correspondentes. Para Marcelle Martins, no entanto, a prática se mostrou bem diferente:

Recebia a metade do que ganhava meu colega de trabalho, ambos no mesmo cargo. Eu tinha duas funções e ele uma, diz a jornalista.

“Fiquei mais três anos nesse trabalho. Em um determinado momento, ele foi demitido e tive de cobrir todas as demandas. Dois meses depois, foi readmitido ganhando 20% a mais do que eu”, completa.

Inserir-se de forma consistente — e justa — no mercado, para mulheres, é uma corrida de obstáculos em que já largamos atrasadas, sendo a entrevista, logo de cara, o primeiro entrave. Vale dizer: para mulheres transexuais, a barreira é ainda maior. Sem legislação específica que garanta espaço no mercado de trabalho, transexuais dependem de iniciativas pontuais geradas em uma ou outra empresa privada. Neste contexto, as opções se limitam. De acordo com o Relatório da violência homofóbica no Brasil, publicado pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH), a transfobia faz com que a prostituição de rua seja vista como único trabalho remunerado possível. Entre as pessoas trans, 90% recorrem à profissão em algum momento da vida.

A penalização profissional da maternidade

Falar em igualdade de trabalho é, inevitavelmente, discutir direitos das mulheres gestantes, mães e lactantes. Chefiando 39% dos lares no País, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as mães (principalmente as mães solo) ainda sofrem preconceitos. Quando o ônus de criar uma criança recai quase que exclusivamente sobre a figura materna — e esse aspecto cultural é naturalizado —, é inevitável que haja uma grande interferência negativa no futuro profissional das mulheres.

Os dados assustam. Segundo pesquisa da FGV, 48% das mulheres são demitidas até um ano depois do nascimento de seu bebê. Nana lima, cofundadora do Think Olga e Think Eva e mãe de Matias (1), diz que, no grupo de mães do qual participa, foi possível notar, de perto, a estatística se confirmando: “Faço parte de um grupo de mães criado pela pediatra do meu filho, que reúne os pais de acordo com a faixa etária de cada nenê. Quando estava no grupo de zero a seis meses, muitas mulheres mandaram mensagens relatando que foram demitidas no mesmo dia em que retornaram da licença maternidade. O sistema é perverso. Eles esperam que trabalhemos como se não tivéssemos filhos e que criemos nossos filhos como se não trabalhássemos.” 

As mais afetadas pela desigualdade são as mulheres com filhos menores de seis anos. Tal penalização da maternidade não se limita ao acesso a um emprego, mas também se estende durante toda a trajetória profissional da mulher, limitando suas oportunidades e dificultando possibilidades de chegar, por exemplo, a postos de liderança. Para a fotógrafa Cristina Souza, a resposta do mercado veio já na gravidez. “Antes da gestação”, diz, “trabalhava muito fazendo cobertura de eventos, principalmente noturnos e, claro, com bastantes parceiros homens. Isso visivelmente mudou depois que engravidei. Hoje, minha fotografia é mais voltada para o universo materno, com registros de gestantes e parto, mas percebo que não sou chamada para outros trabalhos porque carrego essa etiqueta de ‘mãe’. Então, sim, sinto que fui privada de algumas oportunidades.”

Cristina Souza, trabalhando com o filho Rudá. Crédito: Camila França (@camilafrancaretratista)

A carga mental, as jornadas duplas (incluindo, também, a gestão da casa) e as opressões sofridas pelas mulheres ganham camadas ainda mais profundas quando falamos em maternagem. É o que confirma uma pesquisa divulgada pela empresa de recrutamento Catho, no ano passado, em que os números apontam que o lado feminino chega a abandonar até cinco vezes mais os trabalhos depois da chegada de um filho do que o masculino. Os dados mostram, ainda, que 21% das mulheres levam mais de três anos para retornarem as suas carreiras. Nesse sentido, a licença coparental desponta como um futuro possível capaz de tirar dos ombros femininos o peso exclusivo das privações.

O ônus vai sempre recair sobre a mulher enquanto não tivermos uma licença coparental. É necessário que haja uma divisão de igual para igual, senão, o homem seguirá, às custas das mulheres, com o privilégio de ter um filho sem que isso cause nenhum impacto na sua carreira, explica Nana Lima.

A vida amorosa de mulheres financeiramente dependentes

De cada quatro mulheres que sofrem violência doméstica e familiar, uma não denuncia o agressor porque depende financeiramente dele, de acordo com o Ministério Público. Mesmo em situação de risco, a dependência e a falta de perspectivas e oportunidades de trabalho fazem, muitas das vezes, com que continuem reféns de abusos — sejam psicológicos, físicos, sexuais ou econômicos. É o caso da mãe da mestranda em literatura A.T.F*: “Ela está há quarenta anos em um casamento abusivo com meu pai. Além de gastar toda a herança familiar que ela ganhou, também a privou financeiramente, deixando-a sem o próprio cartão do banco e fazendo com que tivesse de implorar para que ele comprasse comida pra casa.  Diariamente, minha mãe sofre violências psicológicas e ameaças. Também já tiveram episódios de agressões físicas. Hoje, ela vive medicada e não consegue sair dessa situação porque a diferença salarial entre os dois é gritante. Ela é professora e ele militar, ambos aposentados. Eu digo que jamais deixaria nada faltar a ela, mas me sinto impotente ao não conseguir convencê-la”, desabafa.

Um levantamento feito pelo Núcleo de Violência Doméstica da Promotoria de Justiça de Taboão da Serra (SP), entre 2012 e 2016, constatou que mulheres que sofrem violência acabam perdendo seus empregos ou são demitidas — mesmo que a Lei Maria da Penha garanta de estabilidade no trabalho nestes casos. Segundo o Relatório da Violência Doméstica e seu Impacto no Mercado de Trabalho e na Produtividade das Mulheres, publicado pela Universidade Federal do Ceará em 2017, as vítimas chegam a faltar até 18 dias por ano devido às agressões, o que gera um prejuízo anual de R$ 1 bilhão para a economia brasileira. Com vergonha de assumirem o que estão sofrendo, não justificam as faltas, nem a baixa rentabilidade e produtividade (uma queda que chega, estima-se, a até 50%). Consequentemente, são demitidas ou pedem demissão.

Idealizado pela promotora de justiça Maria Gabriela Manssur, o projeto Tem Saída quer empoderar financeiramente as mulheres vítimas de violência doméstica. A parceria entre órgãos públicos, iniciativa privada e a rede protetiva de direitos das mulheres tem por objetivo recolocar com prioridade essas mulheres no mercado de trabalho, encaminhando-as para empresas previamente treinadas e comprometidas com a prevenção e combate à violência de gênero.

Empoderamento financeiro feminino

Há, ainda, um ponto pouquíssimo abordado quando o assunto é equidade de gênero no âmbito trabalhista. As mulheres não são educadas financeiramente, como acontece, normalmente, com homens. Para elas, lidar com dinheiro não está na bagagem sociocultural apreendida desde pequenxs. A disparidade, nesse sentido, tem traços históricos. Foi apenas em 1962, com a mudança no Estatuto da Mulher Casada, que a esposa deixou de ser tutelada pelo marido e pode decidir sobre a própria vida — inclusive registrando CPF próprio. Antes disso, nem abrir conta no banco era possível. Por isso, empoderamento feminino também passa por educação financeira. Quem aprende a lidar minimamente bem com seus recursos tem mais poder de escolha.

Vieses invisíveis também não podem ser ignorados. Culturalmente, atrela-se o sucesso feminino ou a independência financeira de uma mulher ao suporte masculino, seja do pai, seja de um companheiro, seja de alguém de sua rede de apoio. “Quando as pessoas veem uma mulher com algo de valor”, explica a empresária Fabiana Wan, “a primeira opção nunca é que ela mesma comprou, mas que foi algum homem que proveu aquele item. Se você é bem-sucedida e tem um companheiro, é como se as suas conquistas não pudessem ter sido realizadas sozinha.”

Muito já foi conquistado, mas o caminho ainda é longo para que o Brasil alcance a plena igualdade de gênero em seu mercado de trabalho. Tal tarefa passa, inevitavelmente, por transformar padrões de subordinação da mulher que, apesar de naturalizados, foram construídos artificialmente e com o emprego da violência em larga escala ao longo dos mais de 500 anos de vigência do capitalismo, segundo a historiadora italiana Silvia Federici, autora do livro Calibã e a Bruxa. Silvia sustenta a teoria que a “caça às bruxas” relacionou-se diretamente com a criação de um novo sistema econômico, forjado na escravidão, na colonização e na exploração e dominação do corpo feminino. A caça às bruxas continua, mas, agora, com uma releitura moderna. A diferença é que elas estão mais atentas, fortes e unidas do que nunca.

*O nome foi abreviado para preservar a identidade da fonte.

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