sábado, dia de sol em Brasília

Por Lelê Teles Enviado para o Portal Geledés
a cidade que é mais seca que o deserto do Saara. o maravilhoso Parque da Cidade está repleto de gente.
uns correm, uns caminham, uns pedalam.
há os que tocam violão tomando vinho sobre uma canga e sob uma sombra, há os que brincam com os cães, outros vão apenas para fumar maconha.
quase todos são funcionários públicos – os que não o são estão estudando para ser. e quase todos estavam nas ruas pedindo o fim do estado e orando pelo livre mercado.
vai entender.
eu me juntei ao grupo de massagistas e abri, às margens do laguinho, minha Tenda de Cafunagem.
muitos saíam da massagem e iam direto para a cafunagem.
o primeiro cliente, uma jovem concurseira, perguntou-me depois da sessão de cafunés – excelentes para ativar os bulbos capilares e estimular a circulação sanguínea intra craniana:
“Mestre Cafuna, queria voltar pra casa sem ter mais que pensar sobre isso, confidenciou-me a jovem estudiosa, diga-me de uma vez por todas, deus é menino ou menina?”
entreguei a ela uma xícara de chá de flores silvestres, sentei-me em lótus à sua frente, respirei profundamente e lhe disse:
“você deve está a falar do deus da bíblia, claro. filha, é certo dizer que os ghost writers de deus eram todos homens; e não menos certo afirmar que eram também todos eles machistas.
explico, os super heróis bíblicos – os do primeiro time – são sempre do sexo masculino.
veja que tudo começa, estranhamente, com um cabra: Adão.
digo estranho porque ele é o único ser em toda a história da criação que tem pai, mas nunca teve uma mãe.
atentai bem.
e é o único homem até hoje que pariu. dele saiu sua esposa-filha, Eva.”
senti o corpo da mocinha estremecer.
preparei o cachimbo para o sopro do rapé de cinzas. o rapé conforta e tranquiliza. soprei em cada narina da moça. as cinzas são de folhas de ervas colhidas no frescor da aurora, ainda mijadas de orvalho.
prossegui com a minha divagação:
“filha, no dia em que deus resolveu fazer um pacto com a humanidade ele escolheu quem?
um cara, Abraão.
depois, cansado das sacanagens dos hebreus, um povo sem freios e sem lei, deus decide varrer da face da terra aqueles brutos concupiscentes, e quem ele indicou para salvar a espécie humana?
Noé, outro varão.
aí, quais coelhos, a rapaziada cresceu e se multiplicou na terra.
então deus decidiu redigir leis, para por freio à vida daqueles selvagens tribais.
então – veja você pequena caliandra – ele escolheu mais uma vez um homem para subir o monte, Moisés, e entregou a ele um código de conduta social pra ver se aqueles putos se aquietavam.
ora, você deve estar agora a pensar, custava enfiar uma única menina super poderosa aí nessa história?
e você pode dizer para si mesma: ah, elas estão lá no Livro.
sim, filha do homem, mas exercem um papel secundário, não estão no primeiro time.
veja que a primeira mulher a entrar na história já chega fazendo merda.
curiosa e insolente, desobedece ao pai por sua atração encantada por cobras.
a outra, também curiosa, olha pra trás e vira uma salítrica estátua de si mesma.
as filhas desta estátua entram para a história com pai, Ló, oferecendo-as a uns tarados e propondo a elas – virgens ainda -um estupro coletivo para salvar as penas de uns anjos.
e essas mesmas filhas de Ló – veja que coisa curiosa – aplicaram no próprio pai o primeiro Boa Noite Cinderela da história.
encheram o patriarca de cachaça e estupraram o velho.
há ainda uma outra, sedutora e pecaminosa, que corta os cabelos de Sansão, usando o sexo como uma arma de guerra.
a outra, louca, aparece no meio da rua em vias de ser apedrejada, porque embora a bíblia fale naturalmente da poligamia de Davi, Abraão, Salomão e o cacete, aquela vadia ali merece a morte por ser… adúltera.
filha, o adultério era uma regra naquele livro, que o diga o rei Salomão.”
abri o livro negro e li dois trechos para ilustrar:
(“e o rei Salomão amou muitas mulheres estrangeiras, além da filha de Faraó: moabitas, amonitas, edomitas, sidônias e hetéias”,1 Reis 11:1).
(“e tinha setecentas mulheres, princesas, e trezentas concubinas; e suas mulheres lhe perverteram o coração” 1 rEIS 11:3).
“Jesus, o cara que veio redimir a humanidade de todos os pecados, também era homem e chamava deus de…
pai!
na genealogia de Jesus, Mateus diz: livro da geração de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão. Abraão gerou a Isaque; Isaque gerou a Jacó; Jacó gerou a Judá e a seus irmãos…
perceba que há aí um estranho fenômeno de homem gerando homem.
e essa genealogia é a árvore de José!
mas só o diabo sabe a razão, uma vez que o Livro diz que José não é o pai de Jesus; de onde, por zeus, eles tiraram essa forçada descendência?
com mil diabos.
por que diabos não fizeram a genealogia do Mestre partindo de sua mãe?
era só dizer que Maria gerou Jesus, Josefa gerou Maria, Antônia gerou Josefa, Nadir gerou Antônia e assim por diante.
Maria, a mãe de Jesus, surge na história só pra parir o menino-deus. nem amar para parir a coitada teve direito, inseminaram ela na calada da noite.
foi a primeira e única mulher na história a ser desvirginada de dentro pra fora.
e os anjos? tudo homem: Gabriel, Rafael, Miguel e o caralho.
por que deus haveria de ter preferência por meninos?
por que diabos deus seria pai e não mãe?
aliás, pequena criatura, até o diabo é homem.
por isso, em verdade vos digo, deus é a mais perfeita criação do homem; e o homem, a mais imperfeita das criaturas de deus.”
ela depositou a oferta da gaveta de espórtulas, beijou-me a testa agradecida e partiu sem dizer palavra.
eu me recolhi, alonguei a espinha e os músculos e estiquei-me leve e livre na minha cama de pregos pontiagudos, como um faquir.
palavras da salvação.
“e criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou.” Gênesis 1:27
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