‘Dicionário da escravidão e liberdade’ joga luz sobre a complexa relação entre os africanos e o Brasil

Com 50 ensaios, livro mostra que a diáspora foi marcada por luta, revoltas e circulação de saberes

por Márcia Maria Cruz no UAI

‘A dança, o canto, as religiões eram formas de revolta, já que essas práticas eram proibidas’, conta a autora. imagem: UAI

A escravidão no Brasil é um capítulo central do processo de africanização da mão de obra nas Américas. Milhares de africanos aqui desembarcaram para substituir os índios, os primeiros cativos dos portugueses. Calcula-se que, apenas entre 1500 a 1800, 4,8 milhões de negros aportaram no Brasil, o último país americano a abolir essa forma perversa de exploração do trabalho, o que reverbera ainda hoje em nossa sociedade sob a forma de preconceito e desigualdade entre negros e brancos.

Em 13 de maio, completaram-se 130 anos da assinatura da Lei Áurea. A data não é comemorada pelo movimento negro, que pauta o debate pelo racismo estrutural que persiste no país – em boa parte, calcado em imprecisões históricas a respeito da escravidão. Com o intuito de colocar por terra equívocos sobre esse período, acaba de ser lançado o livro Dicionário da escravidão e liberdade (Companhia das Letras), organizado pelos historiadores Lilia Moritz Schwarcz e Flávio dos Santos Gomes.

Reunindo 50 ensaios em forma de verbetes assinados por destacados pesquisadores, a obra traça amplo panorama sobre a escravidão mercantil africana no período moderno. Embora não falte produção acadêmica sobre o tema, ainda há muito a se compreender sobre o período que vai de 1550, quando chegaram as primeiras levas de escravizados ao país, até 13 de maio de 1888 e o pós-abolição.

“O que as imagens deixam de contar é como não foram corpos dóceis que se sujeitaram ao sistema. Ao contrário do que revela a iconografia, marcou o sistema um verdadeiro toma lá dá cá, em que a escalada da violência da escravidão foi acompanhada pela mesma proporção na reação”, escrevem os autores na introdução do livro.

Curiosamente, o último verbete apresenta o Cais do Valongo, recente descoberta arqueológica. Em seu ensaio, o professor Carlos Eugênio Líbano Soares analisa o mais importante entreposto negreiro da capital fluminense entre 1774 e1831. Em 2011, vestígios foram encontrados quando a Prefeitura do Rio de Janeiro iniciou as obras do projeto Porto maravilha para a revitalização da zona portuária carioca.

A descoberta revelou um sítio arqueológico de importância ímpar para a compreensão do período. Milhares de escravizados foram sepultados ali, no que ficou conhecido como Cemitério dos Pretos Novos. O ensaio revela que 10% dos africanos morriam na travessia do Atlântico ou pouco depois do desembarque. Trata-se do maior cemitério de escravizados das Américas – estima-se que lá foram enterradas 30 mil pessoas, embora registros oficiais apontem 6.122, entre 1824 e 1830. Amontoadas em valas, elas expõem um dos efeitos nocivos da escravidão: a imagem de “massa de corpos”, como se eles fossem destituídos de subjetividades e história.

Ao desconstruir essa imagem de homogeneização, o esforço dos organizadores do livro é mostrar como se deu o tráfico negreiro, mas sem perder de vista a complexidade das relações com o continente africano, apresentando a ecologia social das várias sociedades que se desenvolveram na África.

Lilia Schwarcz e Flávio dos Santos Gomes chamam a atenção para as conexões entre os “mundos atlânticos” da escravidão nas Américas, “envolvendo a triangulação com Áfricas e Europas”. Tal perspectiva permite evidenciar, para além das conexões econômicas, a circulação de saberes, conhecimentos e culturas das populações escravizadas.

O livro destaca ações que alimentam subjetividades negras e delas são alimentadas, como danças, cantos, ritos, costumes possibilitados por diferentes iniciativas de associativismo. O dicionário aponta o quanto pode ser elucidado sobre o período escravista brasileiro por meio de documentos oficiais.

Embora, depois da abolição, o jurista Rui Barbosa tenha queimado parte significativa dos papéis relativos a essa prática para evitar que senhores reivindicassem indenizações ao Estado, Lilia Schwarcz pondera que a documentação não foi totalmente perdida.

ENTREVISTA

Lilia Schwarcz

História de luta

A liberdade pode ser negra, mas a igualdade é branca, lembra a historiadora Lilia Schwarcz, destacando que os africanos não foram vítimas pacíficas das “escravidões” enraizadas na sociedade brasileira.

A escravidão em Minas Gerais revela muito desse período no Brasil?
Todos os lugares no Brasil revelam muito. A escravidão alcançou proporções continentais. Havia pessoas escravizadas em todo o território. Por isso, é importante pensar em escravidões. Do mesmo modo que temos que pensar em Áfricas no plural, temos que pensar em escravidões no plural. No ensaio Mineração escravista, Douglas Cole Libby fala do aumento das alforrias. Mas as escravidões não seguiram ciclos sucessivos, do arroz, cana, café. Foram concomitantes. Quando termina o ciclo da cana no Nordeste, a escravidão segue mesmo depois. A relevância do livro é mostrar o lado plural das escravidões e destacar seu enraizamento em todo o Brasil.

A Lei Áurea traz dois artigos. E eles não preveem formas de inserção dos negros depois da abolição.

Entre os ensaios, temos os que abordam o day after. Não foi só assinar a lei e depois acabou. A lei é curta. Àquela população é vedado o acesso à educação formal, ela não foi preparada para competir com os imigrantes. O Dicionário mostra que a Lei Áurea resulta de um processo que envolve muitos setores: classe média, escravizados negros e negras, libertos e libertas. O processo não se encerra com a Lei Áurea. É um ponto de inflexão, que torna a República tão falha.

Vocês apontam que ao mesmo tempo em que se aproximava o momento da abolição, ganharam força as teorias do determinismo racial.
As elites percebem que haveria igualdade jurídica e começam a reproduzir o que já não estava em voga na Europa, o determinismo racial e científico. Quando a população negra passa a ter acesso à igualdade jurídica, a ciência da época – muito entre aspas o termo ciência –, passa a provar que não existia igualdade. No Brasil, há o dito popular de que a liberdade pode ser negra, mas a igualdade é branca. Teorias deterministas tentam acabar com a ideia de igualdade.

O título do dicionário fala de escravidão e também de liberdade.
Não há como falar em escravidão sem falar em liberdade. Já na África, identificamos lutas por liberdade. Os africanos não se deixavam passivamente prender. Revoltavam-se nos navios negreiros. No Brasil, desde que existiu escravidão, existiu luta. Não foram vítimas pacíficas.

A resistência era cotidiana, não é? Como a decisão de alguns escravizados de comer terra, o que, a longo prazo, levava à morte.
Tínhamos as insurreições, que eram resistências coletivas. A fuga era individual, comer terra até morte. E os abortos: muitas mulheres negras não dariam o fruto do ventre para ser escravo. Havia uma infusão de ervas que, teoricamente, deixava os senhores mais calmos, mas os envenenava, a longo prazo. Desde que se inicia a escravidão, temos os quilombos. As rebeliões eram atos físicos. A dança, o canto, as religiões eram formas de revolta, já que essas práticas eram proibidas.

Como se deu a participação das mulheres nessas insurreições?
Um lugar-comum costuma ser falar “escravos”, quando foram pessoas escravizadas, era situação compulsória e havia resistência. Outro lugar-comum é falar de escravos no gênero masculino. Vieram mais escravizados homens do que mulheres – a desproporção era grandíssima. Era como se homens e mulheres estivessem em situações idênticas. Mas como o feminismo negro aponta hoje, havia diferenças naquela época também. As mulheres eram estupradas, violentadas, mesmo grávidas eram submetidas a trabalhos forçados. Não podiam ficar com seus filhos. Diferentemente da historiografia tradicional, que coloca homens como protagonistas, as mulheres atuaram pela libertação. Negras quitandeiras, por exemplo, levavam notícias de rebelião e acobertavam escravizados fugidos. Amas deixavam de amamentar senhores.

imagem do site UAI

DICIONÁRIO DA ESCRAVIDÃO E LIBERDADE
• Org: Lilia Moritz Schwarcz e Flávio dos Santos Gomes
• Companhia das Letras
• 560 páginas
• R$ 74,90
• R$ 39,90 (e-book)

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