Dinorah, mais um símbolo do racismo brasileiro

Em seu doutorado, posteriormente livro e documentário, Joel Zito Araújo faz uma análise muito precisa sobre a representação da negra e do negro nas telenovelas. O título da sua obra já nos diz muito “A Negação do Brasil”, ou seja, de acordo com a tese, o que é visto nas telenovelas não representa a realidade brasileira.

Texto: Joselicio Junior / Edição de Imagem: Pedro Borges, no Além da Mídia

Passados 17 anos dos seus estudos, percebemos que o discurso da democracia racial continua reinando na teledramaturgia brasileira e os papeis das atrizes e dos atores negros continuam sendo subalternizados, estereotipados e sempre representam um núcleo muito pequeno no conjunto das obras.

Entre as atuais personagens, a que mais vem me chamando a atenção é a empregada doméstica Dinorah, interpretada pela atriz Carla Cristina Cardoso na novela “A Regra do Jogo”. No enredo, a personagem trabalha para uma família falida que tenta ostentar um padrão de classe média e, mesmo sem receber salário há muito tempo, Dinorah se mantém submissa ao seu patrão Sr. Feliciano, Marcos Caruso. A condição de submissão chega ao ponto de tirar recursos das suas economias para atender a regalias do seu “querido” patrão.

A cena mais chocante para mim foi quando Feliciano foi morar na rua com vergonha da família, pois tinha perdido o apartamento que estava hipotecado, e assim que Dinorah encontrou o seu patrão passou a mimá-lo com regalias, bebidas e comidas caras. Mas o mais impressionante é que Feliciano fez também amizade com um morador de rua, negro, todo estereotipado, como mendigo bêbado. Durante as visitas do novo colega ao patrão, o olhar de Dinorah era de total desprezo e repulsa daquele sujeito em situação de rua.

Essa cena dá a real dimensão dos efeitos do racismo na sociedade brasileira. Ela apresenta como o racismo extrapola a dimensão econômica e se consolida como um modo de classificação que define os papeis sociais que cada um pode ou não exercer. A personagem Dinorah não tem família, não tem amigos, não tem trajetória, portanto, não tem identidade, é apenas a empregada, bem humorada, e que ainda faz bico na praia para manter os mimos de seu “querido” patrão, pois ela prometeu à falecida esposa que cuidaria dele até os seus últimos dias.

Dinorah não se reconhece mulher negra, não se reconhece pobre, por isso é indiferente com o negro em situação de rua. O seu papel na sociedade está muito bem definido e é o de servir, mesmo que ela tenha condições econômicas melhores do que aqueles que ela serve, pois essa é a ordem “natural” das coisas, é como as pessoas estão programas para viver.

Os papéis destinados a atrizes e atores negros são muitas vezes carregados de preconceito racial Os papéis destinados a atrizes e atores negros são muitas vezes carregados de preconceito racial

Essa é uma das maiores perversidades do racismo, a naturalização dos lugares sociais que cada um pode ou não ocupar. Dinorah participa do chamado núcleo humorísticos da novela, onde tenta passar a ideia de que tudo é uma brincadeira, uma piada, ao mesmo tempo em que reforça estereótipos.

As telenovelas não tem apenas o papel de entreter as pessoas, mas sobretudo de construir valores, ideologias  e reforçar estereótipos que mantém os espaços de privilégios, construídos historicamente pela elite branca nacional. Dinorah é o símbolo que reforça a ideia de que o lugar social da mulher negra é o de servir, assim como os demais personagens reforçam outros estereótipos que sempre colocam o povo negro em condições de subalternidade.

O trabalho de Joel Zito escancara como essas narrativas foram sistematicamente pensadas ao longo da história. A grande novidade vem sendo o papel, cada vez maior, que as redes sociais e as novas tecnologias vem tendo para pautar novas narrativas por meio de denuncias, cartas de repúdios e até mesmo  dando visibilidade a novos enredos, além de possibilitar articulações e formas alternativas de comunicação.

A disputa simbólica vem ganhando cada vez mais peso na sociedade brasileira ao mesmo tempo em que os pilares do monopólio dos grandes meios continuam intactos e altamente subsidiados pelo Estado. Essa é uma conta que não fecha. Não é possível pensarmos na consolidação da democracia sem a democratização dos meios de comunicação. Nós não iremos convencer a elite branca que ela deve deixar de ser racista, mas podemos produzir mecanismos, através da luta política, que possibilite que outros núcleos de pensamento também possam construir suas narrativas e símbolos.

Essa é uma luta primordial para emancipação e empoderamento do povo negro.

Joselicio Junior, mais conhecido como Juninho é presidente estadual do PSOL – SP e militante do movimento negro.

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