Discurso de Sueli Carneiro na entrega do título de doutora Honoris Causa da UnB

Enviado por / FontePor Sueli Carneiro

Boa tarde a todas e todos,

Magnífica Reitora da Universidade de Brasília Profª Márcia Abrahão Moura. 

Senhora Lígia Garcia, decana do Movimento Negro do DF na pessoa de que saúdo todas todos e todes demais presentes.

Quero inicialmente manifestar minha gratidão à Profª. Vanessa de Castro e ao profº  Wanderson Flor do Nascimento, professores do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos, responsáveis pela defesa e solicitação  da outorga a mim do  título de doutora Honoris Causa, assim como à professora Ana Flávia Magalhães Pinto.

É com muito orgulho que recebo essa honraria extraordinária, o primeiro título honoris causa¹ outorgado a uma mulher negra pela UnB. Me alegra ainda mais o fato desse reconhecimento que me é dado hoje, vem precedido de outros gestos de grande impacto  ou  simbolismo que a Unb vem dirigindo à comunidade negra. A UnB foi a primeira federal a reservar 20% das vagas para estudantes negros, em 2003 no marco institucional de um Plano de Metas para Integração Social, Étnica e Racial desta Universidade. O sistema foi implementado mudando significativamente o perfil do campus com a inclusão de mais de 30 mil estudantes por meio das cotas raciais. 

Em novembro de 2019, o colegiado da UnB autorizou a mudança do nome deste auditório da Faculdade de Direito, que passou a se chamar Esperança Garcia², considerada a primeira mulher advogada do Piauí, uma mudança que atendeu à iniciativa discente de integrantes do Maré – Núcleo de Estudo em Cultura Jurídica e Atlântico Negro e do Centro Acadêmico – Mandacaru e Contracorrente.

Em junho de 2022, foi criada a Secretaria de Direitos Humanos da UnB, com o objetivo de garantir o cumprimento da Política de Direitos Humanos da UnB. A professora Deborah Silva Santos é a primeira chefa da pasta. A UnB conta ainda, com uma Câmara de Direitos Humanos, vinculada ao Conselho Universitário sob a coordenação de Dalila Negreiros, estão sendo empreendidos esforços para a aproximação entre professoras/es negras/os da UnB, bem como coletivos negros atuantes na universidade.

São iniciativas eivadas de esperança de que a Unb continuará aprofundando o seu compromisso com a democratização da universidade brasileira ampliando a inclusão de professoras negras; do debate antirracista e antisexismo nos currículos, fortalecendo as instâncias pioneiras criadas para o enfrentamento do racismo e o sexismo, modelo para outras universidades brasileiras posto que a Unb é uma das mais importantes universidades do Brasil e da América Latina, o que torna esse título mais importante ainda para mim pelo reconhecimento de minha trajetória ao longo da qual procurei fazer da reflexão intelectual e da escrevivência, uma espada, como convém a uma filha de Ogum que sou; uma espada com a qual venho esgremindo no bom combate pelas causas mais justas da humanidade que são para mim a conquista da igualdade e equidade de gênero e raça. 

Nesse esfoço me ocupei em desagregar racialmente dados censitários para produzir evidências das desigualdades raciais entre as mulheres; a afirmar valores culturais negro-africanos que sustentam a identidade e a resistência das mulheres negras; a produzir argumentos para consubstanciar uma estratégia política de enegrecimento do ideário feminista, em especial no âmbito das políticas públicas voltadas para a promoção da igualdade de gênero; a desnudar os dispositivos de poder e saber implicados na persistente reprodução da inferioridade social de pessoas negras. 

Foram demandas, tarefas políticas  que deram sentido à minha vida, que evidenciaram os meus vínculos comunitários, que foram e são a argamassa de minha produção intelectual e compromisso militante.

Ocupei-me também em desenhar organizações políticas indispensáveis para fazer avançar essas demandas colocadas pelas mulheres negras e pela população negra em geral para a realização de seus direitos econômicos, sociais, civis, culturais e ambientais, sistematicamente violados pelas práticas discricionárias de base racial e de gênero.  

Portanto, faço parte de um contingente humano de sobreviventes e testemunhas de um evento de  radical unicidade: o experimento colonial, que adquiriu nessas terras americanas a sua  expressão mais cruel, que, além do desenraizamento forçado, do estupro colonial,  da escravização de milhões de africanos e seus descendentes, nos destituiu também da condição de sujeitos de conhecimento, num processo que descrevo como epistemicida. Sobreviventes e testemunhas que, em resistência, afirmam a sua plena humanidade, que produzem saberes questionando e contrariando as incapacidades cognitivas e cognoscentes que racistas lhes atribuem. 

A minha geração de militantes negros foi educada e conscientizada pelo movimento social negro, por seus intelectuais, ignorados pela universidade brasileira. 

Portanto, sei ainda que este título presta reverência a pensadoras e pensadores que forjaram nossas consciências e nossas vozes insurgentes no calor das lutas que travaram contra o racismo e o sexismo. Sei ainda que este título sinaliza para a urgência de supressão do pacto epistemicida que estreita o horizonte de conhecimento da humanidade ao descartar o que temos a oferecer de alternativas e criatividade no plano epistemológico. 

É, por fim, um título que recebo com a humildade de quem o compreende como o reconhecimento da justeza das lutas de mulheres e homens negros que clamam por um novo pacto civilizatório que desaloje os privilégios consagrados de gênero e raça que o experimento colonial forjou em todas as dimensões da vida social. 

Significa  o reconhecimento da legitimidade desses discursos e atos que protagonizamos, produzidos por lágrimas insubmissas. É o reconhecimento dessa escrevivência, que “não é para adormecer os da casa grande, e sim para incomodá-los em seus sonhos injustos”, como apontou nossa magistral escritora Conceição Evaristo. 

Uma resistência feita de sonhos libertários que conformam uma nova estética social fundada noutra ética, em que a diversidade humana se constitui no mais belo espetáculo da natureza a ser preservado. Essa missão civilizatória é, talvez, o ponto mais importante da agenda que nos impulsiona. 

Muito obrigada!


¹  Até o momento, foram outorgados 66 títulos de professor e doutor honoris causa. Desse total, apenas 7 mulheres foram agraciadas, todas vistas como brancas; além de 3 homens negros.

²  Esperança Garcia (Fazenda Algodões, circa 1751 – ?) foi uma mulher negra escravizada brasileira, considerada a primeira mulher advogada do Piauí.[1][2] Em 6 de setembro de 1770, Esperança enviou uma petição ao então presidente da Província de São José do Piauí, Gonçalo Lourenço Botelho de Castro, onde denuncia maus-tratos e abusos físicos contra ela e seu filho, pelo feitor da Fazenda Algodões.[3] A carta de Esperança Garcia é considerada a primeira petição escrita por uma mulher na história do Piauí, o que a torna uma precursora da advocacia no estado[1]. Também é um documento importante nas origens da literatura afro-brasileira[5]. Na data de envio, 6 de setembro, é comemorado o Dia Estadual da Consciência Negra.[6]

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