Djamila Ribeiro: “A mãe que me permito ser”

Em seu segundo texto para a ELLE Brasil, a filósofa Djamila Ribeiro fala sobre maternidade.

Ilustração Nathália Halcsik/ELLE

Gosto muito de falar sobre maternidade, do quanto é preciso perceber que não deveriam existir modelos de mãe a serem seguidos. Cresci numa família na qual minha mãe era uma mulher forte, trabalhadora. Ela saiu de casa aos 18 anos, em Piracicaba, para trabalhar em São Paulo como empregada doméstica. Passou por maus bocados, desde tratamentos desdenhosos até assédio de patrão. Num Carnaval, no início dos anos 1970, ela foi para Santos, litoral sul do estado, onde conheceu meu pai. Em 1975, se casaram e tiveram quatro filhos, sendo eu a mais nova. Todo esse histórico fez de minha mãe uma mulher que ensinou os filhos a não levar desaforo, era brava, por vezes até demais, mas uma mãe forte, estilo “leoa”.

Quando engravidei de minha filha, minha mãe havia morrido. Não pude ouvir seus conselhos e suas broncas nesse período, mas muito dela vive em mim e na minha filha, mesmo ela não tendo conhecido a avó. Por mais que eu dissesse que seria uma mãe totalmente diferente da minha, me vejo, às vezes, sendo ela. Não sou tão rígida no sentido de broncas e castigos, mas fico falando por horas seguidas quando estou brava, fazendo minha filha ficar sem paciência, assim como eu ficava. Assim como ela, coloco as mãos na cintura quando vou tirar satisfação com alguém que possa ter ofendido minha filha. Assim como ela, sou uma mãe que coloca limites e não sente peso algum em dizer não.

Quando me perguntam como faço para minha filha gostar de comer verduras, eu respondo: não dou opção. Desde cedo, ela precisava experimentar os alimentos. Sempre houve uma regra na minha casa de não poder dizer que não gosta antes de experimentar.

O fato de minha mãe ter nascido pobre a fez valorizar mais as coisas e não aceitar o desperdício. O mesmo acontece comigo. Julgo um absurdo desperdiçar ou frescura em excesso num país em que milhões não têm o que comer. Claro que há coisas das quais não se gosta. Mas frescura demais não é aceitável. Também me assemelho à minha mãe no quesito não deixar de ser mulher, indivíduo. Entrei na faculdade quando minha filha tinha 3 anos, fiz mestrado e não abri mão dos sonhos. Muitas nem sequer podem fazer isso. Então de fato foi um privilégio poder seguir sendo Djamila e não somente “a mãe de Thulane”. E, justamente por isso, me permito seguir dizendo não quando necessário

Respeito os gostos da minha filha, entendo que ela é um indivíduo e cada vez mais fará suas escolhas, mas eu não sou a mãe que tirará fotos com a língua para fora ou fazendo bico. Eu não sou a mãe que vai levar a filha em show de youtubers . Minha filha ainda não gosta, talvez nem vá curtir, mas eu sou a mãe que gosta de levar a filha a teatros, de presentear com livros. Sou a mãe que não permite o uso de maquiagem, pois acredita que é preciso respeitar a infância. Por vezes, sou tachada de careta, mas não ligo. Tento ao máximo apresentar o mundo à minha filha com mais possibilidades e não com aquelas que disseram que as meninas precisavam ter, muitas vezes, as limitando. Eu não sou a mãe que ficará horas na fila para comprar o ingresso do show do cantor pop nem aquela que para “ser jovem” precisa inevitavelmente falar as gírias do momento. Se a filha insistir muito, pedirei para a tia, a amiga…

Mas hoje não tenho vergonha em ser essa mãe. Sou antenada com as novas ferramentas. Só não acho que é preciso abandonar hábitos como a leitura, a conversa olho no olho, a ida ao supermercado para entender que a comida não “chega sozinha” ao armário, um simples passeio pela esquina para conversar sobre a semana, andar de mãos dadas, fazer carinho enquanto assiste ao filme favorito da filha com ela.

A mãe que limita o uso de internet e diz não sem medo de ser a bruxa, a mãe que nunca deu presentes no Dia das Crianças, mas que presenteia sem data se encontrar algo bonito. Sou a mãe que ouve a professora e dá bronca se a filha estiver errada. A mãe que ensina a pedir desculpas e também pede desculpas quando erra. Não quero ser uma mãe perfeita. Não sei encapar livros, me atraso para algumas reuniões da escola, compro bolo, em vez de fazer para as festas da escola, compro o material escolar em cima da hora.

Mas sou a mãe que dá muito amor, que sabe dos gostos da filha, que já entendeu que ela vai demorar a responder no WhatsApp, que leva para viajar porque é instigante, e não por status. Um dos sonhos da minha filha é conhecer a República Democrática do Congo porque, segundo ela, quer ver o Rio Congo, o segundo maior em extensão caudal. Eu sou a mãe que vai guardar dinheiro para a filha conhecer o Congo. Uma mãe com vários defeitos, ainda bem. Porque não reconhecê-los seria não ser humana.

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