Dom: a favela como fetiche de cineasta zona sul

Um filme, apesar das novas dinâmicas de transmissão, em casa e a qualquer hora do dia, permanece dimensionado em dois aspectos: a tela e a plateia. E, dentre as inúmeras perspectivas para observá-los está a do racismo sistêmico e, certa filmografia nacional. Proponho ajustarmos o foco sobre um dos títulos brasileiros, em evidência, Dom (2021), escrito e dirigido por Breno Silveira. Trata-se de uma história na qual a cocaína é a grande protagonista. É ela que constrói o vínculo polarizado entre a “favela” e demais cenários do Rio de Janeiro. Da mesma forma, ela trança biografias, a correta e a malvada, para destacar o relacionamento entre pai e filho expostos, numa primeira temporada, em períodos descontínuos entre os anos 1960 até 2001. 

Circunscrever a favela do filme e, por meio dela recolher a lógica que posiciona a presença negra na história é o exercício. Sobretudo, a abordagem acerca do modus operante desse segmento populacional vendido tanto internamente quanto para o escopo dos acessos internacionais.  Há uma infinidade de cotejos circulando, na rede virtual, a partir da divulgação do roteiro ter se inspirado em fatos reais. 

O amigo preto 

Nesse desafio, o personagem Lico, o amigo negro de Dom, não existiu na vida real. Enquanto uma síntese do factual, ele está ali para o contraponto com as características, mais explícitas, físicas, emocionais e sociais do tipo principal. Reparemos as raciais. O loiroface, de olhos verdes ou, azuis, recebe vários trechos narrativos que o caracterizam bonito, simpático, habilidoso desde a infância grafitando ou, abrindo fechaduras.  Já o amigo negro é uma figura idiotizada. Ele é o coadjuvante que enaltece o principal. Mas como é o conteúdo dessa relação? Ao longo da película, o preto vai se tornando o “cuzão”, o que” dá mole”, “vacilão”, “burro pra caralho”. Porém, sempre o protetor fiel do loiro. O loiro vai, ele atrás. A sintaxe, relembrando Abdias do Nascimento, é o perfeito símbolo do negro brasileiro inscrito na tradição que o vê e o deseja na eterna posição subalterna, risonha e humilde. Mas, entre reações brutas, o clímax dessa convivência loiro-preto está na fala de Lico: “- fui eu que te botei nessa pôrra”. 

O Dom em cena é a leitura selecionada para virar cinema. É um Dom idealizado para predispor o telespectador absorvido pela boa qualidade cinematográfica, a torcer por ele. Tornado ingênuo, aplicado, destemido, afetuoso, arrependido, a imagem o distancia do grau da ferocidade relatada sobre os assaltos nas notícias da época em que aconteceram. A narrativa atual substitui a violência, não apenas pelas casas assaltadas, quase sempre vazias. Mais especificamente, o loiro impede a agressividade do bando propondo a montagem de uma rede que permitiria administrar, racionalmente, o objetivo de evitar a prisão. Os roteiristas da trama que lhe atribuem o selo de corajoso, focado, esperto, viril e muito inteligente irão colocar a brutalidade nos comparsas negros. Sugerindo ser atávica, ela fica para o “Armário” e Lico quando ele deixa o porteiro ensanguentado.

Pai

Da mesma forma, a fita transforma o pai de Dom em super-herói zona sul do Rio de Janeiro. Ele é trabalhador, combateria a cocaína dentro e fora de casa, é quem “escolhe o lado certo”. Num dos episódios ele diz: “-Eu lutei contra a cocaína minha vida inteira.” No entanto, as notícias² da vida real dizem ter sido ele um policial civil membro do esquadrão da morte nos anos 1960. A cena, dele atirar do centro de um baile funk sem revide, pois um morro armado até os dentes é completamente dominado pelo pai motoqueiro, só poderia ser verídica por conjunções desse nível. 

Mulheres

E, explorando ainda os afirmados fatos reais inspiradores, chegamos às garotas negras da favela. E, não apenas elas trazem, uma vez mais, a porcentagem de sexo realista como elemento fílmico, fórmula em primeiro plano tendo, ao fundo a beleza do Rio de Janeiro. Jasmim, a namorada negra da ficção seduz Dom para assaltar residências e o desafia querendo ver “quem é ele de verdade”. Ela é tão fundamental para transformá-lo no criminoso quanto o amigo Nico que o leva para o morro. Todavia, vale averiguar se a namorada dos anos 2000 que o inclui nas operações, não seria negra. As notícias que chegam pela rede³, indicam ser a filha de oficial da marinha, neta de diplomata. Considerada mentora do bando, estudava as vítimas, por ter acesso à elite e, decidia sobre a partilha dos frutos roubados. A fantasia, se inventa o amigo negro boçal, faz, aqui, a troca de sinais fenotípicos. A loira bandida zona sul que leva Dom para delinquência, no roteiro vira preta. Já o planejamento da loira real é desviado para o loiro da quimera. Nessa biopolítica de cinema, o discurso é construtor das associações para os modelos de humanidade negra e branca. E, não é novo como estratégia, já denunciada inúmeras vezes. 

Também merece uma nota, o assunto do relacionamento com os pais quando retomado na fantasia sobre as mulheres. Jasmim tem um pai bêbado que batia na mãe. A mãe de Nico questiona o pai de Dom quando ele define o filho dela como bandido. Ao retrucar ela diz; “o meu não tem pai, não teve oportunidade de estudar, qual é a desculpa de Pedro?”  Essa construção, aparentemente contestadora, está na chave moralista conservadora de certo modelo de família e mesmo o de escolaridade. Não ter pai ou não estudar seria causa de bandidagem. São passagens curtas mas que agregam elementos para o retrato de favela oferecido ao telespectador.

Mãe de Santo

A Mãe Rosa é uma figurante do morro contaminado pelos sinais negativos. Pois, no enfoque ralo, não há a menor tentativa de adensar a religiosidade, mix alusivo à umbanda ou candomblé de caboclo. Apenas reafirma ser a fé de bandidos. Desta vez, o enredo desconsiderou, por completo, um dos pontos nevrálgicos do imaginário que associa religiões de matriz africana, ao mal. Aliás, motivo este, cruel de perseguições historicamente constatadas e renovadas, sobretudo por parcelas de igrejas neopentecostais e, mesmo católicas. Essa é uma questão central nas demandas da consciência antirracismos. Não repassar para próximas gerações argumentos que

conservem um racismo sistêmico pede a não conivência com desqualificações subliminares. No detalhe, o reparo sobre a ausência de igrejas evangélicas, tão presentes no tema acerca do circuito do tráfico e das milícias cariocas do passado e do presente, o que não é neutro na composição. Ou, que além de Mãe Rosa estar correlacionada ao mal, ela alcagueta o pai mocinho. A cena carregada de estereotipia, que uma vez mais utiliza o grotesco, traz o diálogo:- Você não é quem você é, mesanfio. A mesma relação aparece no papel do ambíguo coronel negro, desta temporada, que expõe o pai de Dom à vida no tráfico e à posição de delator.

A favela, do filme, como argumento cultural

Ou seja, o calvário no martírio de Dom, os pretos equivalem à cocaína branca. A favela, que começa na sistêmica tecla – empregada doméstica negra, traficantes negros, seguranças negros, vai simbolicamente se consolidando como lugar de lascívia, barbárie e incultura. Os fotogramas recolocam, assim, um argumento cultural muito caro aos nossos tempos: a favela é o lixo do Brasil. Não é o mesmo argumento que justifica o entrar atirando nesse território com o objetivo de limpar a sociedade de um risco? Portanto, desumanizá-la é um desserviço e uma tomada de posição da autoria numa expressão artística. Pois, espalhar ou recolher o racismo depende da operação de realçar ou desmantelá-lo.  

A realização de um filme pode escolher o assunto que bem entender, fazer uso do ponto de vista que desejar e vende-lo a quem ela quiser. Equanimemente, a plateia observará o material. Afinal, a ótica que se expressa artisticamente sempre terá leitores e leituras diversas. Hélio Oiticica⁴ sobre o mesmo período de ditadura no Brasil escolheu Cara de Cavalo, para homenagem em uma de suas obras (1965). O inspirador era um morador negro de favela e o primeiro a ser executado pelo Esquadrão da Morte, a organização paramilitar e ovo das atuais milícias. Ele não lavou o “marginal” de seus embustes, mas denunciou o que havia por traz da espetacularização da violência, em ascensão no período. O exemplo mostra que a expressão artística nunca é neutra e sempre será um espelho a ampliar percepções. Nessa nuança, o filme Dom perfilado no fabrico de personagens e ambientes negros é uma carreira de clichês e estereotipias como fetiche de sucesso na filmografia brasileira. As premissas são um modo de ver descuidado frente ao debate das questões sobre o racismo no país. Afinal, o cinema é expressão de mercado, mas não apenas. É expressão de cultura, dimensionadas na representação e na representatividade. Argumentos culturais conservam ou alteram realidades.  

A favela das novas gerações, recusa o corpo objetificado. Ela quer se ver nas telas, seja qual for o período abordado, esteticamente com camadas para a maior densidade dos personagens. É um território simbólico que tenta ampliar o olhar sobre si como fonte energética de coletivos em todas as frentes, da organização do trabalho, do bem comum, do enfrentamento da covid ensinando soluções, do embate com o desprestígio, mostrando a riqueza de expressões artísticas, literária. Sempre em embates fundamentados em fatos reais. A favela concebida pela zona sul para contar a história de Dom é um fetiche a ser rejeitado com o acesso à produções mais diversificadas. E, no futuro, como no passado, se a realidade muda a representação ou se a representação muda a realidade já sabemos serem faces da mesma moeda. Vistas como conjuntos, há precedentes nacionais incrustados de equívocos, com a mesma pretensão de ganhar o mundo. O circuito poderia parar de negligenciar o histórico de suas produções na categoria racismo, frente e bastidores, que as realizam. Aí sim, resultariam mais humanizadas⁵.  

Heloisa Pires Lima/Foto: Renato Parada

¹  Heloisa Pires Lima é doutora em Antropologia Social, atuando na área editorial. Também, Conselheira da Casa Sueli Carneiro

² força policial que deu origem às milícias no Rio de Janeiro ainda nos anos 1960…. – Leia mais em https://noticiasdatv.uol.com.br/noticia/series/retratado-como-heroi-pai-de-dom-integrou-pelotao-da-morte-e-fundou-milicia-61392?cpid=txt Acesso em 19/07/202

³ Real bonde do 157 de Pedro Dom/ Histórias Daqui. https://youtu.be/k_K5e5Rz9-s Acesso em 19/07/2021

⁴ Ver, entre outros,- A experiência marginal de Hélio Oiticica. http://www.puc-rio.br/pibic/relatorio_resumo2015/relatorios_pdf/ccs/HIS/HIS-Caio%20Cyrilo%20Rosa%20do%20Espirito%20Santo.pdf Acesso 19/07/2021 

⁵ Agradecimento à Heloisa Prieto e Priscila Nemeth que trouxeram a pauta e, construíram junto a reflexão. 

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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