Em Café, livro recém-publicado, a artista de 54 anos divide memórias de infância que a inspiram até hoje
Por Anna Laura Moura no Revista Claudia
De primeira, o olhar é reflexivo, meio desconfiado, mas não demora para Jacira Roque de Oliveira, a dona Jacira, deixar escapar seu riso solto. O que não lhe falta é história para contar. Aos 54 anos, a mestre em artes e ofícios e poetisa lançou sua autobiografia, Café (LiteraRUA e Laboratório Fantasma, 44,90 reais). Além dos fatos, dividiu angústias adormecidas que a escrita despertou – o título, por exemplo, faz alusão às lembranças que surgem com o cheiro da bebida feita pela mãe. “Eu tinha enterrado muitas dessas coisas, revivê-las não foi fácil”, conta.
Filha caçula, nunca conheceu o pai, que morreu três meses antes de seu nascimento. A mãe trabalhava muito e levava a menina à igreja sempre que podia, algo que não lhe agradava. “O que eu gostava era dos batuques das religiões de matriz africana. Afinal, eu descendia daquilo.” Com os irmãos, experimentou várias crenças, mas era a Mãe Preta, da casa de umbanda, quem mais a ajudava.
Outros tantos conflitos com o que os adultos falavam a tornaram uma pessoa questionadora. Preferia ouvir as vizinhas conversando enquanto lavavam roupa a brincar com as crianças. “O fato de eu ser esperta nessa idade incomodava os outros”, diz. Como não tinha com quem compartilhar as pílulas captadas, corria pegar papel e lápis. Quando escrevia algo que ninguém mais podia saber, escondia o texto.
Na escola, chamava a atenção pelas habilidades com as palavras, mas seu reconhecimento era vetado pela diretora, que praticava racismo descaradamente. “Quando a professora avisou que eu teria que ir para a turma seguinte pela minha sagacidade, ela passou dois dedos sobre o antebraço e fez uma cara feia, indicando reprovação da minha cor”, lembra. “Dói até hoje. É como apanhar e não tem ninguém para defendê-la.” Tantos absurdos deixaram a menina deprimida e a levaram a repetir de ano. “Dentro de mim hoje, anos depois, sinto que cresceu uma fera contra o preconceito. Se vejo uma situação dessas na minha frente, não sei como reajo”, afirma.
Apesar de ela achar que a vontade de brigar por justiça está aprisionada, quem a acompanha sabe que passou para os filhos valores de respeito pela própria cultura e pelo próximo. Também os incentivou a lutar por uma sociedade igualitária.
Criativos como ela, Leandro e Evandro viraram Emicida e Fióti, respectivamente, consagrados rappers ativistas. Katiana é produtora cultural e Katia estuda direito. Capricorniana, protetora feroz, segundo ela mesma, Jacira defende os filhos quando estão errados. “Achei que era assim porque não fui próxima da minha mãe. Depois entendi que é só meu jeito de amar”, conta a avó de seis netos.
Para quem está de fora, a superproteção tem a ver com o ambiente em que Jacira cresceu. Em seu bairro, na periferia de São Paulo, a violência era comum. Seis meses após se casar com o companheiro, hoje já falecido, viu o sogro matar a esposa. “Perdi a conta de quantas mulheres arrumei no caixão.” Chamava a polícia, mas o próprio marido desmentia as denúncias. “Ele falava que eu era louca”, lembra.
Ela não cedeu. Quebrou padrões e, por meio de sua arte, provoca mudanças. É tecelã, dá oficinas de bordados, ensina a costurar bonecas. Promove rodas de conversa e até encontros para discutir alimentação afetiva. Além de tornar pública sua relação com a escrita, o livro é também a oportunidade de atingir ainda mais pessoas, um efeito potencializado do que faz um café com dona Jacira.