Douglas Belchior: Racismo à brasileira

Foto: Gabriel Brito/Correio da Cidadania

No Idec

O Dia da Consciência Negra está oficialmente no calendário brasileiro, mas não é feriado nacional. Apenas um quinto dos municípios do País celebram o 20 de novembro. Embora sutil, esse fato já sugere a dificuldade que o Brasil tem de lidar com a questão racial e de reconhecer as consequências de quase 400 anos de escravidão, avalia

Nesta entrevista, realizada na sede da Uneafro – rede de educação popular do qual é membro e fundador –, em São Paulo (SP), Belchior fala sobre como o racismo estrutura as desigualdades no Brasil, cotas raciais, representatividade na mídia, na política e no mercado de consumo.

O Dia da Consciência Negra foi incluído no calendário nacional em 2003 e oficializado em 2011. Porém, até o ano passado, pouco mais de mil municípios comemoravam a data. A que se deve essa baixa adesão?
Douglas Belchior: A data foi pautada pelo movimento negro na década de 1970 para celebrar a luta e a resistência do povo negro, representado pelos quilombos e por sua maior figura, Zumbi dos Palmares. Como o Brasil é um país racista e que não reconhece sua dívida histórica, existe dificuldade em assumir essa data. Mas, nesse cenário em que o Estado brasileiro não reconhece a data como importante o suficiente para ser feriado nacional, é uma vitória ter mais de mil municípios que a adotam. É uma data que, literalmente, não passa mais em branco.

[Exclusiva site] Você é um dos fundadores e membro do conselho da Uneafro, rede de organizações que atua principalmente com cursinhos pré-vestibular. Qual é a importância da educação para diminuir a desigualdade racial no Brasil e como a Uneafro busca contribuir para isso?
DB: Nosso trabalho é organizar núcleos de educação popular nas periferias. Esse núcleo pode ser um cursinho pré-vestibular, como é o caso da maioria, mas pode ser também um grupo de formação de mulheres, uma oficina de circo. A educação é uma ferramenta e pode ser usada a serviço de diversos interesses. As escolas brasileiras sempre foram um espaço de educar para o racismo, não para a diversidade. O trabalho de cursinho popular é um contraponto a isso. É uma educação política por natureza e, nesse sentido, é fundamental na luta antirracista, tanto que é objeto de trabalho do movimento negro desde sempre. O movimento negro também sempre questionou o currículo [das escolas]. Em 2003, essa demanda histórica tornou-se lei, com a Lei nº 10.639, que institui a história da África.

Você acredita que, no Brasil, as pessoas associam racismo apenas a ofensas e não o compreendem como um fenômeno estrutural?
DB: Só falamos a respeito quando o racismo grita na relação social, quando alguém é chamado de macaco ou é retirado de um ambiente. Mas não há nenhuma dimensão da vida na sociedade brasileira em que o racismo não esteja presente e que não opere em seu resultado. Um exemplo: muita gente é contra políticas de ação afirmativa [cotas] na educação. Há negros e brancos na escola pública. Ela é ruim para todos? Sim. Até aí não se enxerga racismo. Mas ele é percebido no resultado da equação: quando se vê que 70% das crianças fora da escola são negras; que a evasão escolar na sua maioria infinita é de negros etc. Fomos condicionados a não perceber esse processo pela negação histórica do racismo na sociedade brasileira.

Aprovado em 2010, o Estatuto da Igualdade Racial tem o objetivo de desenvolver políticas públicas para combater a discriminação. Qual é a importância dessa lei e quais foram seus desdobramentos concretos?
DB: Na época, parte do movimento negro foi contra essa lei porque, para ser aprovada no Congresso, foi esvaziada do que tinha de mais importante. Ela determinava iniciativas e regras do ponto de vista da promoção da igualdade racial, mas foi alterada e passou a ser apenas orientativa. Se no Brasil tem um monte de lei que obriga e não “pega”, imagine as que só sugerem. Na prática, só ajudou alguns poucos governos que tinham vontade política de implementar cotas no serviço público, por exemplo, como aconteceu aqui em São Paulo [SP], em que a prefeitura usou o Estatuto como base. Mas a maioria dos municípios não tem essa vontade, e não existe um documento que os obrigue.

Ao assumir a presidência, o governo Michel Temer foi criticado pela ausência de negros e de mulheres entre os ministros, assim como pela extinção do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e Direitos Humanos, anexado ao Ministério da Justiça. Essas mudanças têm um peso simbólico ou significam retrocessos concretos?
DB: O governo foi coerente com a sua natureza ao fazer isso. É um governo conservador, de manutenção dos valores raciais históricos e patriarcais brasileiro, e reafirma isso na medida em que demonstra sua falta de sensibilidade com o tema. Ao mesmo tempo, não se trata só de ser contra essas políticas ou não valorizá-las. Eles acabaram com esses departamentos porque sabem que o potencial da classe trabalhadora e da esquerda está guardado ali. Foram as mulheres, os negros e os espaços de direitos humanos que alimentaram toda reação ao golpe. É esse o lugar mais efervescente da política e da luta por direitos no Brasil.

Ao olhar para os 13 anos de governo do PT [Partido dos Trabalhadores], encontra-se um monte de problemas: foi neoliberal, fez os ricos ficarem mais ricos, fez os bancos terem lucros exorbitantes, não mexeu na dívida pública, não taxou riquezas etc. Tudo o que fez de bom foi relacionado a direitos humanos, mulheres e negros. É esse o lugar social que sustentou a esquerda nos últimos 13 anos e que se voltou contra ao governo Temer.

As cotas raciais começaram a ser adotadas há mais de 10 anos nas universidades públicas brasileiras e, desde 2012, garantiu-se a reserva progressiva de 50% das vagas em instituições federais até 2016. Como você avalia a evolução dessa ação afirmativa no país?
DB: Sou crítico às políticas compensatórias, porque elas não deveriam existir. Elas são um “cala boca” para problemas estruturais. O movimento negro sempre exigiu políticas de reparação histórica, que é algo completamente diferente. Isso aconteceu após o nazismo, por exemplo. Depois da guerra, a Alemanha instituiu o maior programa de reparação histórica da humanidade para os descendentes [das vítimas do holocausto] por várias gerações. Reparação financeira, cultural, religiosa, simbólica, além da condenação política pública da memória do holocausto, para que nunca mais se repita. Isso é muito importante. O regime nazista durou menos de 15 anos, e a escravidão na América, quase 400. Então, há uma reparação histórica a ser paga ao povo negro. O movimento negro sempre cobrou isso do Estado, só que chega uma hora em que se percebe que nunca vai acontecer. As políticas de ação afirmativa são o que foi possível conquistar. Considerando a pequenez que é a política de cotas, sim, ela cumpriu um papel importante.

Uma das polêmicas em torno das cotas raciais em vestibulares e concursos públicos diz respeito à autodeclaração, que levanta a discussão de quem pode ser considerado negro no Brasil. Qual é a sua opinião sobre isso?
DB: Sou radicalmente a favor da autodeclaração, assim como sou a favor de análise e controle dela. A cota racial é uma política pública de compensação social para um grupo historicamente excluído. Não se trata de discutir se a pessoa é afrodescendente, mas se é alvo de racismo social. Se três pessoas afrodescendentes disputam uma vaga declarando-se negras, tem de haver um critério. A vaga deveria ficar para aquele que sofre mais racismo social. No caso brasileiro, sofre mais quem traz mais marcas de fenótipo. O Brasil é tão racista que mesmo as políticas de ação afirmativa, quando beneficiam os negros, beneficiam aqueles de pele mais clara. Primeiro, porque os negros de pele mais escura, por sofrerem um racismo mais aprofundado, muitas vezes não conseguem chegar até aqui [no vestibular/concurso]. Quem são os negros que ascenderam às universidades com cotas? Esse é um estudo que precisa ser feito. Mas as cotas, de maneira geral, beneficiam mais estudantes pobres brancos do que negros. Isso já tem pesquisa que mostra.

Você foi candidato a vereador em São Paulo (SP) este ano e também já concorreu ao cargo de deputado federal. A política ainda é um espaço a ser ocupado pelos negros no Brasil?
DB: Assim como todas as dimensões da sociedade brasileira, a política institucional é um espaço radicalmente racista. O racismo está presente em todos os ambientes, na direita e na esquerda. Não há lideranças políticas negras no Brasil, que é um país de maioria negra. Isso é absurdo. Primeiramente, o racismo cultural já nos coloca em uma condição desfavorável. O voto da sociedade tem uma marca racista, assim como tem marca do patriarcado: não é à toa que mulheres não elegem mulheres e negros não elegem negros. No imaginário social, nossa figura não é relacionada a alguém que possa cumprir bem tarefas de poder. Do jeito que eu sou, morando onde eu moro [Itaim Paulista, zona Leste de São Paulo], vestindo-me como me visto, não pareço um vereador ou um deputado. Assim, preciso primeiro convencer que posso ser um político, o que os brancos não precisam fazer. Além disso, os negros não têm poder econômico, e um jogo eleitoral é essencialmente um jogo de poder econômico. Ganha as eleições quem tem dinheiro. São raras as exceções.

Uma pesquisa da ECA-USP apontou que, em 2005, apenas 13% das propagandas brasileiras tinham negros. Por que os anunciantes não se preocupam em representar mais da metade do público?
DB: Esse é um debate antigo. A mídia retroalimenta um imaginário racista. À medida que o imaginário é racista, o corpo negro vende menos, porque mesmo os negros não o consomem. E isso não é culpa do negro, é fruto do racismo. Temos vivido uma pequena mudança nessa mentalidade nos últimos tempos. Estamos voltando a ter orgulho do nosso [cabelo] crespo, há uma valorização da estética negra. Mas não significa ainda um aumento do número de capas de revista com negros ou uma mudança no perfil de quem aparece na televisão.

Acho que as novas gerações vão questionar isso com mais força no futuro. Essa mudança tem um efeito poderoso a médio e longo prazo. Por exemplo: uma mulher negra que aos 17 anos, depois de a mãe ter alisado seu cabelo a vida inteira, se descobre e passa a valorizar o seu crespo, não vai fazer o mesmo com a filha dela. A postura dessa criança no mundo vai ser muito diferente. Mesmo a dessa menina com 17, 18 anos passa a ser diferente. Ela não vai aceitar que não pode usar seu cabelo natural no trabalho. Se for orientada a alisar o cabelo – o que acontece o tempo todo –, vai denunciar. Assim, começa uma reação em cadeia. Espero que esse movimento surta efeito para que não sejamos vistos só como consumidores, mas como parte importante da sociedade.

A falta de representatividade na mídia é uma forma de racismo em si ou é mero reflexo da realidade? Dá para argumentar que as novelas e os comerciais não têm negros no papel de empresários, médicos etc. porque há poucos negros nessas posições na vida real?
DB: A desculpa da teledramaturgia sempre foi essa, de que a novela é um espelho da realidade. Mas o mero reflexo da sociedade é racismo. Os meios de comunicação retroalimentam uma lógica que deveria ser combatida. Nós vivemos uma realidade que ainda espelha socialmente a escravidão, pois os negros continuam servindo aos brancos. A mídia não pode ser omissa. Ela cumpre um papel social importante, ainda mais as redes de televisão, que funcionam a partir de concessão pública. Ao não aceitar a responsabilidade [de mudar essa lógica], os meios de comunicação fomentam a manutenção desse imaginário racista, que gera ódio, violência e morte. Esse imaginário também é responsável, em alguma medida, pela ação violenta do policial que mata quatro pretos dentro de um carro sem nenhum indício de crime, com 111 tiros, como aconteceu no Rio de Janeiro. O imaginário construído na cabeça daqueles policiais desde pequenos coloca o preto no lugar daquele que vai tomar tiro.

Uma negra foi eleita Miss Brasil recentemente, após 30 anos. Você acha que esse tipo de representação importa?
DB: Importa muito. Há uma dimensão da humanidade que é muito íntima, de se gostar, se aceitar no mundo. O racismo destrói o que tem de mais profundo no ser humano e faz com que ele não se goste. Nenhum outro passo é possível se esse não for resolvido. Como vou lutar pelo direito do meu povo se tenho vergonha de ser parte dele? Historicamente, o racismo retirou do negro sua condição de ser humano. Durante a escravidão, o dono da fazenda tinha cavalos, porcos e pessoas escravizadas. Isso durou 400 anos na história brasileira e ainda se reflete no cotidiano. A população negra, para sofrer menos, muitas vezes procura se desvincular dessas marcas que a relacionam com essa falta de humanidade e acaba se autonegando. Não é o negro que é racista porque acha feio ter nariz largo, o sistema impôs a ele essa condição. Nesse sentido, essa representatividade [da miss] importa demais.

[Exclusiva site] Você sabe dizer como o mercado lida com o consumidor negro nos Estados Unidos, onde a questão racial tem características muito distintas das do Brasil?
DB: De fato, as realidades do ponto de vista racial são muito diferentes. Apesar de serem minoria [cerca de 13,8% da população], os negros têm força política e econômica nos Estados Unidos. Existe uma pequena classe média negra que valoriza muito seu voto. Além disso, o movimento negro americano não se contrapõe ao sistema hegemônico, pelo contrário. Eles são liberais, partilham do mesmo ambiente, do mesmo projeto político. Não tem nada a ver com o Brasil, onde o movimento negro tem uma característica de ser de esquerda, de discutir problemas sociais. Então, acho que por eles terem esse perfil liberal, o diálogo deles com o consumo é equivalente ao dos brancos. Não sou um grande entendedor desse tema, mas vejo essas diferenças.

Diante desse cenário de sub-representação e de baixa atenção do mercado, qual é o papel do negro como consumidor?
DB: Temos de exercitar nosso poder enquanto povo. Primeiro, agir como consumidor, reclamando por seus direitos e não aceitando ser enganado. Isso vale para todo mundo. Mas acho que precisamos avançar para atitudes como as que já acontecem nos Estados Unidos, de amplas campanhas de boicote a marcas que desrespeitam a nossa história ou que nos tratam de maneira racista. Tem muita capa de revista e propaganda racista que deprecia a presença negra. Pior do que negar a existência, é coloca-la numa condição de subalternidade, de humilhação. Isso merece denúncia, escracho e boicote. Essa pode ser uma boa provocação para que o povo negro seja visto e respeitado.

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