A duras penas

O sistema carcerário brasileiro é um símbolo da omissão do Estado com superlotação dos presos em condições desumanas e casos de pessoas que já cumpriram a pena, mas não têm previsão de serem liberadas

Por Alessandra Freitas, no, Revista Fórum 

O Brasil é um dos líderes do ranking de países com a maior população carcerária do mundo, com cerca de 1 milhão de presos. Desse número, 220 mil se encontram em São Paulo, sendo 40% deles provisórios. Eles têm que esperar de 4 a 9 meses para uma audiência com o juiz para ter o direito à defesa. Durante esse período de espera, os presos ficam nas chamadas CDPs, ou Centros de Detenção Provisória, onde são fornecidos no momento da entrada somente uma calça bege, uma blusa branca, um aparelho de barbear e um rolo de papel higiênico. Os cerca de 20 detentos dessa etapa são enviados à integração, na qual dormem no chão, passam fome e frio. Esse processo dura aproximadamente dois dias e é feito para dividi-los em raios, que possuem números crescentes paralelamente à gravidade do crime – um preso por furto fica no raio 1, já um de assassinato fica no raio 8.

Quem conta é Marcos Fuchs, diretor adjunto da Conectas e diretor executivo do Instituto Pro Bono. O jornalista visitou diversos presídios do Brasil e denunciou abusos contra os presos ao redor do país. Apesar de pouco debatido, o sistema carcerário hoje enfrenta a omissão do Estado e a morte de 3,8 mil presidiários por ano só em São Paulo. Os números que mostram a desumanidade no sistema são a representatividade em dados da realidade que muitos enfrentam após a privação da liberdade.

Fuchs afirma que a superlotação nos presídios brasileiros é algo que acontece na proporção em que saem 8 e entram 9, faltando 120 mil vagas no sistema prisional de São Paulo. Em várias celas com capacidade para oito pessoas, são encontradas quase 40. A falta de organização e empenho do Ministério da Justiça alimentam as cadeias com vários casos em que o detento já cumpriu a pena, mas não tem perspectiva de ser liberado. “Tem presos que estão nas cadeias há dez anos e quando você vai ver é por um furto de manteiga, e o cara já tinha que estar solto há 9 anos e 6 meses”, conta Marcos. As condições de vida impostas aos presos fogem aos direitos humanos e a qualquer noção de dignidade. No presídio Romeu Gonçalves de Abrantes, em João Pessoa, na Paraíba, por exemplo, denunciado no final de agosto pelo Conselho Estadual de Direitos Humanos, um amontoado de 80 homens nus dividiam o espaço numa cela com fezes flutuando em poças de água e urina.

A perspectiva de melhora para essa realidade é atrasada pela hostilidade com que é tratada essa parcela da população. O país representa o maior crescimento da população carcerária do mundo, com um aumento de 400% na última década. Muitas pessoas em regime semiaberto não encontram vagas nesses presídios designados, e têm que cumprir pena em regime fechado. Ao chegar nas prisões brasileiras, os penitenciários se expõem a doenças como tuberculose, sarna e aids, quando não são mortos por diversas causas. Rebeliões e assassinatos são extremamente frequentes e o nível de reincidência é extremamente alto.

Representante da Pastoral Carcerária, Padre Valdir afirma que “a lei só serve à questão da punição, aos direitos, não”. Ele conta que são mais de 6 mil voluntários que visitam os presídios em todo o Brasil, verificando as condições em que os presos se encontram e procurando melhorar a vida dessas pessoas que são negligenciadas pela sociedade, pela Justiça e pelo próprio Estado. O padre conta que, apesar de as torturas físicas terem diminuído após o massacre do Carandiru, o confinamento aumenta e a tortura psicológica também. “Em tempos de falta d’água, os banhos são coletivos e expostos para que a pessoa fique inibida e não demore tanto, o que economiza água”, conta ele, que completa: “Presídio tem a finalidade de aniquilamento. Quem sai, sai ‘defeituoso’ para o resto da vida”.

Marcos Fuchs conta que nos presídios existem práticas comuns e pouco divulgadas como o “Coquetel da Morte”, apelidado de “Gatorade”, composto de cocaína, Viagra e água, que é usado para matar presos rivais sem ser descoberto. A morte é divulgada como parada cardíaca, e assim não há investigações. Em 2009, a partir de uma denúncia de Marcos e sua equipe, a Cadeia de Custódia em Viana, em Vitória, no Espírito Santo, foi interditada após a descoberta dos contêineres, celas de metal que podiam chegar a 60 graus, onde eram colocados os presos que não cabiam em outras celas. Muitos morriam de calor.

Relato de quem estava atrás das grades

Geovane Calaes foi preso por roubo em 1989, quando estava com 18 anos, e foi solto em 1997, quando completou 27 anos. Ele passou pelas penitenciárias de Pestana, Carapicuíba, Marília e Cotia, todas do estado de São Paulo. Ele conta que dividia uma cela destinada a no máximo 12 presos, mas que 52 pessoas já chegaram a ficar lá dentro. Ele e os colegas de cela dormiam amontoados, muitas vezes um em cima do outro, e muitas vezes apanhavam dos policiais. Geovane afirma que nunca tinha entrado em contato com as drogas até entrar na cadeia, e demorou sete anos para não ser mais um dependente químico. “Quando você na cadeia, você é esquecido. Lá dentro não tem justiça”, afirma o ex-presidiário, que hoje está com 43 anos e trabalha no Carrefour. Ele conta que foi muito difícil encontrar emprego após cumprir a pena, e não recebeu amparo de ninguém. “Saí limpo, mas tinha muito preconceito. E quanto maior o tempo que você fica lá dentro, parece que mais as pessoas têm medo de você”.

O que pode ser feito?

Um jovem na Fundação Casa custa R$ 3,8 mil por mês ao Estado. Se um jovem morre na Fundação Casa, a família é indenizada em R$ 40 mil. O preço de se manter um detento é extremamente alto, e muitas vezes a indenização é uma opção melhor para os gastos mensais que o Estado teria que prover. As privatizações dos presídios, afirma Marcos Fuchs, iriam transformar o sistema carcerário brasileiro em business, onde as prisões seriam almejadas para manter o sistema.

Para Marcos, a superlotação pode ser resolvida por meio da Audiência de Custódia, que obrigaria o juiz a receber um preso em flagrante 24 horas após o delito, o que reduziria o número de presos provisórios. A garantia das medidas cautelares também seria uma opção, que é um procedimento intentado para prevenir, conservar ou defender direitos, muitas vezes violados no caso do sistema penitenciário, que teria o intuito de assegurar que os presos tivessem prisão e penas justas. Fuchs também aponta para a necessidade de pensar imediatamente em uma nova lei de descriminalização da maconha, para separar usuário e traficante, já que 25% das prisões são por crimes relacionados a drogas. No caso das mulheres, 60% delas são presas por crimes desse tipo.

Já o Padre Valdir acredita que a própria ideia de prisão é algo arcaico, e defende um modelo de justiça restaurativa. Desse modo, seria trabalhado com o infrator meios de reparar o erro que cometeu, a partir da reinserção do indivíduo na sociedade e da manutenção da relação vítima/agressor e seus familiares. “O crime não é individual, é social”, afirma o padre. Para ele, os presídios são criados com altos muros para que as pessoas fiquem afastadas, o que alimenta a omissão da sociedade civil em relação ao problema. Ele também ressalta a necessidade de que universitários visitem mais os presídios para conhecer a realidade do outro lado da Justiça, que muitas vezes não é retratado pelos meios de comunicação. Para o Padre Valdir, “esses veículos trabalham na vingança, encarceramento e no apoio à iniciativa privada”. O representante da Pastoral Carcerária afirma que grande parte do problema está no combate paliativo da violência, que fez com que os órgãos públicos gastassem no último ano R$ 1,1 bilhão em expansão dos presídios, mas nem um real na ressocialização dos presos.

Experiências que deram certo

APACs, unidades que são dirigidas por ONGs em parceria com o juiz corregedor da cidade, recebem subsídio do Estado e dão condições dignas aos presos, que são chamados pelo nome, trabalham, rezam, tomam café da manhã, almoçam e jantam. A disciplina é dura, e há o exemplo da APAC de Itaúna, em Minas Gerais, na qual os detentos trabalham na fábrica de Minas e ganham um salário mínimo. São presídios que abrigam entre 80 e 200 pessoas, e há uma taxa de 90% de não reincidência. Para se inscrever, é necessário ter excelente comportamento, se comprometer a não provocar rebeliões, a não utilizar celulares, e a cumprir a rotina proposta, que começa rigorosamente às 6h30. Em Minas, já são 22 APACs registradas, que propõem a humanização das penitenciárias.

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