É impossível promover direitos humanos sem proteger as mulheres

Medo e trauma de experiências de violência muitas vezes impedem mulheres e meninas de acessar oportunidades de estudo e trabalho.

Por Ana Paula Ferreira, do HuffPost Brasil 

@DAZZLE_JAM / Nappy

Neste final de 2018, a releitura dos 30 artigos que conformam a Declaração Universal dos Direitos Humanos me provoca duas reações aparentemente antagônicas: emoção e constrangimento. Emoção pela imediata lembrança da simplicidade da nossa condição humana, que nos iguala. E constrangimento por constatar que, nestes 70 anos desde sua proclamação, tanto avançamos, tanto retrocedemos, tanto estagnamos.

Do lugar de onde falo, da coordenação do trabalho pela garantia dos direitos das mulheres numa organização internacional de combate à pobreza, a ActionAid, é impossível não reafirmar que qualquer esforço para tornar os diferentes sujeitos menos desiguais, em todo o mundo, passa necessariamente pela questão de gênero. De maneiras e intensidades diferentes, nós, mulheres, somos impactadas por violências físicas, psicológicas, simbólicas e patrimoniais que nos deixam em situação de maior vulnerabilidade social. E estas violências se traduzem em graves e profundas violações dos direitos humanos, o que se evidencia, constrangedoramente, quando colocamos uma lupa sobre os artigos de sua declaração e nos detemos à reflexão sobre o que eles querem dizer.

Se por um lado acordamos que todos somos livres e iguais em dignidade e em direitos, por outro, ainda se exploram sexualmente e traficam meninas, estabelecem-se relações profissionais e familiares abusivas, exalta-se a cultura do estupro e recusam-se políticas públicas que garantam condições para que todas, no curso de nossas vidas, alcancemos a possibilidade da emancipação.

Na última semana, o IBGE divulgou a Síntese dos Indicadores Sociais (SIS), que mostrou que já somos 70 milhões de pobres e extremamente pobres no País. Esta pobreza, além de raça, tem gênero: 64% dos domicílios que têm como responsáveis mulheres pretas ou pardas, sem cônjuges e com filhos de até 14 anos estavam abaixo da linha da pobreza que, neste caso, teve como parâmetro a renda estabelecida pelo Banco Mundial – até R$ 406 por mês. Longe de ser o único motivo de a pobreza ter rosto de mulher negra no Brasil, a desigualdade salarial entre homens e mulheres se revelou em 29,7%, nos dados referentes ao ano de 2017.

Lembro, aqui, dos Artigos 23 e 25 da Declaração dos Direitos Humanos, aqueles que dizem que todos temos direito a condições equitativas de trabalho e de salário, e a um nível de vida suficiente para assegurar saúde e bem-estar a nós mesmos e a nossos familiares. Como pensar esta possibilidade se, ainda hoje, recebemos pagamentos diferentes por tarefas iguais? E mais: se somos negras ou pardas e temos filhos para criar sozinhas, temos grandes chances ter que viver com até R$ 406 por mês? Não coincidentemente, o texto da declaração fala de condições equitativas. Perseguimos a igualdade, mas, para isso, precisamos promover a equidade, ou seja, pensar políticas voltadas para atender às condições específicas dos diferentes grupos sociais. Do contrário, seguiremos aumentando distâncias.

O Estado brasileiro precisa empreender todos os esforços que estiver a seu alcance para garantir condições mínimas de dignidade para seus cidadãos, e fará isso de forma mais eficaz e justa se reconhecer os desafios e as especificidades de ser mulher neste país. Além de ganhar menos, ser mulher no Brasil é não ter liberdade para transitar pelas cidades e usufruir dos equipamentos públicos sem medo de sofrer assédio e outras violências. Pesquisa realizada pela ActionAid em 2016 mostrou que 86% das brasileiras entrevistadas já tinham sido assediadas em espaços públicos. Quando foram perguntadas sobre em quais situações elas sentiram mais medo, 70% responderam que ao andar pelas ruas; 69%, ao sair ou chegar em casa depois que escurece; e 68%, no transporte público.

O medo e o trauma de experiências de violência muitas vezes impedem mulheres e meninas de acessar oportunidades de estudo e trabalho, que são fundamentais para seu desenvolvimento socioeconômico. Lembro de Rayssa, jovem moradora do Cabo de Santo Agostinho, em Pernambuco, que teve que abrir mão de um estágio porque chegaria muito tarde, e o ponto de ônibus era longe de casa e o trajeto, escuro. Como consequência, demorou um ano a mais para se formar. Mas o caso de Rayssa é apenas um exemplo de uma vivência comum, porém absurda, para tantas brasileiras.

Combater a cultura do estupro e a sexualização dos corpos das meninas é um esforço que precisa vir acompanhado da melhoria da qualidade dos serviços públicos nas cidades, para que elas se tornem menos propensas à violência de gênero. E, em ambas as frentes, nossos governantes precisam investir urgentemente. Além da pavimentação de caminhos de saída da pobreza para muitas mulheres, estarão assegurando o cumprimento do Artigo 3 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que afirma que todos os indivíduos têm direito à vida, à liberdade e à proteção pessoal. Tão simples e tão raro.

No Brasil, 4.539 mulheres foram mortas em 2017, 12 por dia , de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Do total, 1.133 foram feminicídios, quando o crime é motivado pela condição de mulher da vítima. O número de estupros foi de 60.018, 164 por dia, e houve 221.238 registros de violência doméstica, 606 por dia. Não podemos olhar para estes dados alarmantes e esquecer das altas estimativas de subnotificação de crimes contra as mulheres. E estes números precisam ser lidos em diálogo com tantos outros que medem o crescimento e o desenvolvimento do país. Ou o Brasil se compromete em proteger suas mulheres, tornando-as sujeitas de direitos, ou continuaremos a ser um dos países mais desiguais e injustos do mundo.

Violências físicas, psicológicas, simbólicas e patrimoniais estão interligadas e são classificações, diversas e necessárias, de uma gama de violações de direitos que, por sua vez, compõem o que chamamos de direitos humanos. Temos bons e importantes instrumentos legais, como a Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio, e políticas públicas de combate à pobreza, como o programa de transferência de renda Bolsa Família – que preferencialmente torna as mulheres beneficiárias – que precisam ser ampliados e fortalecidos. No entanto, estamos muito distantes do aceitável.

Não se combate a violência contra a mulher apenas com punição. É fundamental aprofundar os debates sobre as desigualdades de gênero em nossa sociedade, promovendo uma cultura de respeito à diversidade e empatia. Além disso, a pauta de gênero precisa perpassar todo o funcionamento do Estado brasileiro, desde o orçamento e a composição de nossos representantes políticos, passando pelo desenho de nossas leis e políticas, chegando à humanização e à sensibilização de agentes públicos.

Aqui, me atenho ao caso de Marielle Franco, vereadora eleita do Rio de Janeiro e brutalmente assassinada em março deste ano, num crime ainda não esclarecido. A morte de Marielle é uma violência contra sua vida, seu corpo, sua filha, sua companheira , seus familiares e amigos, seus eleitores, o sistema político e as mulheres brasileiras. A maioria das leis que haviam sido propostas por Marielle e que foi votada e aprovada este ano, mesmo após seu assassinato, mostram o quanto representatividade importa: foram pensadas em benefício das mulheres trabalhadoras, das mulheres negras, das mulheres que temem e sofrem assédio e violência sexual. Apesar de tamanha importância, nas eleições de outubro de 2018, o Brasil elegeu apenas sete senadora (13% do total), mantendo nossa representação feminina nesta casa equivalente à do último pleito. Já na Câmara Federal, houve aumento. Cresceu 51% a quantidade de deputadas eleitas. Mas isso significa que teremos 15% de mulheres nesta casa, o que assusta ainda mais quando lembramos que q população feminina é mais de 50% da população brasileira.

A Constituição Federal, que este ano completa 30 anos, estabelece entre os objetivos fundamentais do país a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; e a erradicação da pobreza e da marginalização, e a redução das desigualdades sociais e regionais – metas em consonância com a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Esperamos avançar para, daqui a 70 anos, nossas mulheres poderem celebrar mais do que se constrangerem e entristecerem ao ler, um a um, os artigos que nos remetem à lembrança da nossa simples e bela condição de humanidade.

*Ana Paula Ferreira é coordenadora do programa de Direito das Mulheres da ActionAid no Brasil

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