O Congresso que representa o povo está correndo o risco de ter cada vez menos “povo” ocupando cadeiras no Legislativo a partir da próxima eleição. A toque de caixa, tramitam nesta terça-feira (3) na Câmara propostas de reformas eleitorais que podem impactar negativamente o avanço da agenda de maior representatividade racial e popular no Congresso Nacional.
Para além das anomalias que fogem de qualquer parâmetro de racionalidade, tais como o retorno do voto impresso, está sendo debatida, dentre as propostas, uma emenda à Constituição que alteraria o sistema eleitoral que temos hoje, de votos proporcionais, para o apelidado “distritão”, uma mudança que facilitaria a manutenção de oligarquias no poder. Menos de 2% dos países no mundo hoje adotam esse modelo, e países que já o adotaram voltaram atrás, já que ele eleva os custos das campanhas eleitorais e a ocorrência de corrupção nas eleições.
Apesar da relevância desse debate para a sociedade, as discussões estão sendo feitas pelos congressistas sem atender ao mínimo que se espera de participação social para uma mudança dessa envergadura.
Para além dos riscos diretos à democracia que tais mudanças poderiam ocasionar, elas ainda contribuirão para manter a sub-representação de grupos sociais historicamente apartados das instituições de poder, em especial pessoas negras. Essa movimentação para aprovar um modelo que possibilita que as mesmas pessoas que sempre estiveram no poder permaneçam em suas cadeiras limitará o avanço que obtivemos nos últimos anos –ainda que este não tenha sido suficiente– no sentido de ampliar a participação da população negra na política.
Em agosto do ano passado, o STF (Supremo Tribunal Federal), na ADPF 738, caso de relatoria do ministro Ricardo Lewandowski, definiu a necessidade de os partidos reservarem candidaturas, tempo de TV e rádio e recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha para candidatas e candidatos negros. O caso chegou ao STF através de consulta aberta pela deputada Benedita da Silva no TSE (Tribunal Superior Eleitoral) e foi acolhido pelo ministro Luís Roberto Barroso, relator da demanda e presidente do Tribunal.
O STF reconheceu essas medidas como necessárias para fins de reparação histórica em favor da população negra e apontou a necessidade de supressão de uma lacuna legislativa que pudesse instituir essas políticas de ações afirmativas apenas para as eleições seguintes. Essa letargia legislativa não acontece por ausência de propostas nesse sentido: há anos tramitam inúmeras propostas no Congresso Nacional que estabelecem políticas voltadas para a paridade da representatividade política entre brancos e negros.
O pleno exercício da democracia necessita que a população esteja devidamente representada nesses espaços de decisão. A Coalizão Negra por Direitos, articulação que reúne mais de 250 organizações negras pelo país, em parceria com organizações aliadas à luta antirracista, lança nesta terça na Câmara Federal uma agenda mínima de cinco demandas fundamentais em defesa da democracia e para o enfrentamento ao racismo institucional que precisa ser considerada nesse processo de reformulação de debates legislativos acerca da alteração do sistema eleitoral brasileiro e das regras do jogo eleitoral.
A plataforma “Reforma Eleitoral Racista Não” aponta os perigos do modelo “distritão” e do voto impresso, a importância de garantir políticas para representatividade de gênero e a necessidade de haver um amplo debate com a sociedade sobre essas agendas. A proposta da coalizão também defende a criação de políticas de ações afirmativas para aumentar a representatividade da população negra no Parlamento. Dentre essas, destacam-se a reserva de mandatos, a definição de uma porcentagem proporcional de candidaturas a serem estabelecidas pelos partidos e o acesso paritário ao fundo partidário e ao tempo de televisão para candidaturas negras.
Qualquer projeto ou articulação de reformas que afetem o exercício da democracia no país exige um compromisso efetivo de enfrentamento ao racismo que estrutura a sociedade brasileira. A população que é a mais afetada pelo desmonte de políticas públicas sociais vivido nos últimos anos necessita ter parlamentares que representem adequadamente suas agendas e necessidades no Congresso Nacional e Assembleias. Se há racismo, não há democracia, e mudanças nas regras dos jogos eleitorais devem atentar a isso.