“É que o povo é ignorante”: Por Adriano Senkevics

Este texto é um misto de reflexão e desabafo. É porque estou farto de ouvir, no meio em que nasci e vivi desde então – a saber, a classe média paulistana – as acusações de que o povo, às vezes carinhosamente chamado de “povão”, é ignorante. Fala-se da ignorância e por vezes analfabetismo do povo, assim como se fala da tal da sociedade que é hipócrita, manipulável pela mídia, entre outras.

O meu incômodo sobre essas afirmações reside, em primeiro lugar, no caráter classista e até elitista que elas carregam. Ué, não somos parte do povo? Também nós, da classe média branca, não somos parte da sociedade? Soa bastante problemático falar da sociedade como se ela estivesse à parte de nós: também somos influenciados pela mídia (em nossas piadas, os padrões de beleza, as informações que obtemos do mundo), na mesma intensidade e com a mesma frequência que o tal do “povo ignorante”.

Em segundo lugar, essas afirmações classistas revelam um total desconhecimento acerca dos acontecimentos históricos que fizeram o povo supostamente ignorante. Vamos lembrar que a Educação no Brasil é relativamente recente. Até 1930, aproximadamente 70% da população era analfabeta. E ainda nessa época nem analfabetos, nem as mulheres, votavam. O Brasil era, como sempre foi, governado por uma elite que, para bem da verdade, esteve pouco se lixando para a Educação das camadas populares.

Foram, como bem demonstra Marília Spósito em O povo vai à escola (1984), as próprias iniciativas populares que pressionaram para a expansão do acesso ao ensino – e veículos de direita como o jornal Estado de S. Paulo fazendo oposição. Como Spósito ressalta, não foi à escola que chegou ao povo, mas o povo que foi à escola, com a construção de estabelecimentos de ensino, ainda não formalizados como escolas, e a pressão de movimentos sociais que a Educação passou a se universalizar. Aqui entra também a atuação dos nossos “pioneiros da Educação”, como Anísio Teixeira.

A elite, por sua vez, nunca contribui para que a Educação fosse um projeto popular. A Universidade de São Paulo (USP), por exemplo, é essencialmente uma criação da elite paulista frente a sua perda de legitimidade em virtude de declínio da “política do café com leite”. É elitista, e até mesmo racista, desde a sua nascença. E as universidades federais, assim como o ensino superior como um todo, passaram a expandir em taxas elevadas a partir da década passada, sobretudo vindo da iniciativa privada com fins lucrativos.

Em terceiro lugar, esse pensamento classista expressa uma profunda ignorância a respeito das culturas das camadas populares: seus valores, suas perspectivas, seus conhecimentos. Fala-se da periferia, e precisamente da favela, com uma propriedade invejável sem nunca lá se ter pisado um pé. Não se valoriza o que é produzido na periferia, nos morros ou nos bairros pobres de modo geral. Sua música soa mais primitiva, seu aspecto mais bárbaro, seus valores mais selvagens. Eles são praticamente animalizados e personificados na figura de vagabundos, sujos, bandidos – é a chamada “criminalização da pobreza”.

“É que o povo é ignorante”

Nas eleições, isso fica muito evidente. Se os grupos menos favorecidos votam no Lula ou na Dilma, é porque estão com os votos comprados pelos programas assistencialistas. Esperto é quem vota no Serra – ou pelo menos é o pensa esse arquétipo classista da classe média “estudada”, “bem formada” e, pasmem, “politizada”. Em política externa, é o mesmo. Arnaldo Jabor disse que Hugo Chávez foi reeleito por causa da “ignorância popular”. Uma explicação bastante simples, não? Ou pelo menos suficiente para garantir o seu salário em um comentário de um minuto e meio em horário nobre na rede Globo. Justo!

Se a sociedade – e uso esse termo incluindo todos os grupos e povos que compõem esse Brasil, que por mais heterogêneo que seja está unido sob uma mesma bandeira, governo e leis– não parar para entender minimamente as motivações, os valores e as culturas das camadas populares, não seremos capazes de entender absolutamente nada que acontece nesse país. Fenômenos que vão desde a criminalidade na periferia ao crescimento das igrejas evangélicas, passando pelo sucesso dos sertanejos universitários, passarão despercebidos e cairão no senso comum da “ignorância popular”.

É necessário investir em Educação – para melhorar a qualidade desse serviço para toda a população – mas sempre ter em mente que o conhecimento acadêmico ou escolar não é a única forma de conhecimento existente. Também não é a única fonte de politização. Acabar com a “ignorância” é uma tarefa árdua e que seria muito bem-vinda também para minimizar a ignorância das próprias classes abastadas. Esperamos que toda a sociedade entre nessa ciranda.

 

Fonte: Ensaios de Gênero

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