Exclusão e gênero nos processos de Independência da América Latina

A exclusão de gênero e etnia está na base e na gênese do sistema de organização social e econômica que os espanhóis e portugueses impuseram na América Latina a partir do século XVI. No entanto, a exclusão como ideologia não mudou com a independência no fim do domínio colonial. A concentração do poder em governos fracos, dominados pelo caudilhismo, não assegurou o fim das guerras civis nem das tensões sociais e étnicas, e os índios e negros não tiveram direitos nem cidadania.

por Sara Beatriz Guardia,

Enviado por Homero Mattos Jr.

 

 Tampouco as mulheres. As primeiras Constituições Políticas de nossas nações estipularam como requisitos para ser cidadãos: ser casados ou maiores de vinte e cinco anos, saber ler e escrever. Ter emprego ou professar alguma ciência ou arte. As nascentes repúblicas legitimaram assim um sistema de estratificação social e de exclusão, posto que as mulheres não tinham acesso à educação e menos ainda a uma profissão ou emprego.

Exclusão que significa discriminação e pobreza; a existência de pessoas ou grupos que não têm acesso a diferentes âmbitos da sociedade e, por conseguinte se trata de desigualdade e ruptura interna do sistema social. Uma forma de violência estrutural, assentada no sistema colonial e que adquiriu legitimidade com a construção dos Estados Nação e de nossas próprias identidades. A constante em todo o processo de independência da América Latina é a exclusão de gênero e etnia; os excluídos da liberdade são as mulheres, os índios, os negros (Paula Barros. Exclusión Social y Pobreza: Implicancias de un nuevo enfoque. Santiago: 1996, pp. 89-113).

Tudo isso nos remete aos direitos sociais e à reformulação do conceito de cidadania no contexto de sociedades multi-étnicas e multiculturais. Problemática que se situa no processo constitutivo de nossos países com modelos de cidadania excludentes.

Nessa perspectiva, como podemos articular e conhecer a participação das mulheres no movimento de independência se suas marcas foram ignoradas, silenciadas e apagadas nos arquivos? (Michelle Perrot. Les femmes ou les silences de l’Histoire. Paris, 1999, p. 13.). Como “dirigir-se ao sujeito historicamente mudo da mulher?” e “de que maneira conhecer “o testemunho da própria voz da consciência feminina”? (Gayatri Chakravorty Spivak. ¿Puede hablar el sublaterno?. Buenos Aires, 2011, p. 80.)

Para uma história não patriarcal nem eurocêntrica.

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A resposta a estas e outras interrogantes só é possível com a desconstrução de uma história fundada em personagens da elite, batalhas e tratados políticos, escrita por homens em sua maioria de classes e povos dominantes, que interpretaram os diferentes processos e experiências que foram vividos pela humanidade de acordo com a divisão entre o privado e o público que articula as sociedades hierarquizadas.

Foram erigidas segundo o modelo androcêntrico, no centro arquetípico do poder (Moreno Sardá, El arquetipo viril protagonista de la historia. Ejercicios de lecturano-androcéntrica, 1986), segundo o qual os homens aparecem como os únicos capazes de governas e ditar leis, enquanto as mulheres ocupam um lugar secundário, no espaço privado e afastadas dos grandes acontecimentos da história.

Por isso, o estudo da participação das mulheres nos processos de independência  tem necessariamente que incluir um movimento paralelo que compreenda a ideologia da exclusão por serem mulheres e as diferentes formas adquiridas por essa marginalidade. Só outorgaremos uma maior coerência a nossa história ao desarticular o caráter excludente e discriminador das representações discursivas do outro, através de padrões de poder baseados em uma hierarquia social, étnica e de gênero impostos desde a colônia.

A desconstrução da história patriarcal teve início no século XVIII quando o espaço privado passou a ser configurado separadamente do âmbito de poder político, o que permitiu a transformação de uma história até então só focalizada na esfera pública, entendida como o espaço de poder político e econômico.

Vários fatores possibilitaram a mudança: o Iluminismo em que a razão e a educação constituíram características por excelência; o liberalismo que propôs a igualdade, embora sem poder concretizar sua proposta durante a Revolução Francesa quando as mulheres demandaram que a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão as incluísse.

O princípio de que a igualdade, a liberdade e a autonomia são comuns a todos os seres humanos, permitiu que as mulheres articulassem um projeto de luta como movimento social com diferentes correntes teóricas e tendências que explicam as causas de sua subordinação e as estratégias para a mudança.

Posteriormente, em 1929, coincidindo com a crise do capitalismo, Marc Bloch e Lucien Febvre fundaram em Paris a revista Annales d´histoire économique et sociale, que transformou o conceito da história ao priorizar uma história social que incluía mentalidades, vida cotidiana, costumes, família, sentimentos e subjetividades coletivas, o que permitiu que as mulheres fossem estudadas como sujeitos históricos. Marc Bloch foi fuzilado pelos nazistas em 16 de junho de 1944 em Lyon. Posteriormente sua obra foi publicada por Lucien Febvre com um duplo título: Apologie pour l’Histoire ou Métier d’historien.

Até essa época a família tinha sido situada na esfera privada, separada de outro tipo de relações sociais, o que contribuiu para perpetuar uma ideologia da domesticidade, e promover a invisibilidade das mulheres como trabalhadoras. (Joan W. Scott. “El problema de la invisibilidad”. Género e Historia. México, 1992, p. 54.)

Substituiu-se assim a lógica tradicional praticada nas ciências sociais por uma nova maneira feminina de abordar o pensamento crítico, seguindo, como sustenta Joan Scott, uma lógica de pesquisa diferente da aplicada na historiografia tradicional. É reescrever a história a partir de uma perspectiva feminina e propor novas formas de interpretação com o objetivo de converter as mulheres em sujeitos da história, reconstruir suas vidas em toda a sua diversidade e complexidade, mostrando de que forma atuaram e reagiram em circunstâncias impostas, inventariar as fontes com que contamos e dar um sentido diferente ao tempo histórico, sublinhando o que foi importante em suas vidas. (Anne Pérotin-Dumon. El género en la historia. Santiago de Chile, 2000).

Tudo isso coloca novos desafios teóricos e metodológicos, porque suas marcas se perderam. Ninguém se ocupou de registrá-las e assim ficaram escondidas na história da mesma forma que outros marginalizados, como diz Gramsci ao se referir à história das classes oprimidas em Cadernos no Cárcere.

Ou seja, assumir a história social de uma perspectiva que considere que as relações sociais entre os sexos são construções sociais, que a dominação masculina é uma expressão da desigualdade dessas relações e, como consequência produto das contradições inerentes a toda formação social (Silvia Rodríguez Villamil. “Mujeres uruguayas a fines del siglo XIX: ¿Cómo hacer su historia?”. Boletín Americanista, 1992-93, p. 76.).

Uma historia centrada na forma como têm sido percebidas e vividas às diferenças sexuais e na análise de uma dominação que tem gerado diferentes graus de submissão em relações de interdependência.

Na América Latina, a intensa mobilização social e política em favor dos direitos civis, da justiça social, da autodeterminação dos povos e da independência política e econômica que teve lugar na década de 1960 permitiu a mudança do discurso da historiografia tradicional. Os estudos de gênero contribuíram para uma melhor compreensão da história porque salientaram a necessidade de desconstruir categorias absolutas e identificar a opressão feminina, mostrando modos e práticas culturais que pertencem às mulheres e não aos homens.

Mas, além disso, a história oficial foi e é em boa medida uma história eurocêntrica, que concebe a Europa como o centro e “o sistema de valores da cultura européia como o genuíno sistema de valores universais”. (Fabelo Corzo. “La ruptura cosmovisiva de 1492 y el nacimiento del discurso eurocéntrico”. Graffylia. Benemérita Universidad Autónoma de Puebla, 2007, p.79).

Nessa perspectiva, aceitar o térmo “descobrimento” implica admitir que antes da conquista espanhola não existia cultura alguma na América Latina, de acordo com a ideologia segundo a qual os povos indígenas “eram formados por sociedades sem escrita, atrasadas e primitivas que poderiam evoluir até chegar à ‘civilização’, atravessando séculos desde o momento inicial da catequese”. (Cássio Knapp. “Política educacional para a educacao escolar indigena”. Temas sobre género e interculturalidade. UFGD, 2010, p. 81).

Nessa perspectiva, foi importante a mudança de orientação da história produzida a partir dos anos 1970 com um notável giro temático para a história social, o que permitiu um relato mais objetivo das diferentes etapas do processo histórico da América Latina.

Posteriormente, o desenvolvimento da etno-história andina significou uma tentativa sistemática de explicar a originalidade e particularidade do passado dessas sociedades e uma mudança na visão que se tinha até então da organização pré-hispânica, sobretudo de sua economia; e os termos de reciprocidade, dualidade e redistribuição na organização do Estado Inca começaram a ser utilizados em novas leituras das crônicas e dos documentos espanhóis. Surgiu assim uma história das sociedades indígenas como um corpus histórico com sua própria lógica, categorias, mecanismos de resistência e sobrevivência.

Sublevações e resistência

Quando chegaram os conquistadores, em nosso continente havia uma longa história de culturas que, na região andina, se remonta a cinco mil anos. No entanto, predominou uma visão patriarcal e uma concepção eurocêntrica incapaz de reconhecer outra cultura e outra sociedade. Os relatos que narram a conquista e a colonização do Novo Mundo respondem a uma forma particular de pensar a história com valores e interesses de uma historiografia que não “via” as mulheres.

Na estrutura social do Vice-reino do Peru que compreendia os antigos territórios do vasto Império dos Incas, e que abarcou desde o sul da Colômbia, atravessando os atuais territórios do Equador, Peru, Bolívia e o noroeste da Argentina até o Chile, os conquistadores e seus descendentes conformaram a classe dominante sustentada por três eixos de poder: a administração pública a cargo do vice-rei, o Cabido ou “Ayuntamiento” integrado por crioulos e a Igreja representada pelo episcopado, pelas ordens religiosas e pelo Tribunal do Santo Oficio. Ao depender diretamente do Rei, o clero foi um instrumento a mais na política de dominação. Salvo poucas exceções, apoiou ou guardou discreto silencio diante de ofensas e ultrajes.

A sociedade ficou assim dividida em classes que deviam manter-se isoladas para benefício da consolidação colonial. Motivo pelo qual “foi obstruída toda a possibilidade de comunicação e compreensão entre os indivíduos pertencentes aos estamentos opostos”. (Alberto Tauro, Destrucción de los indios, Lima, p. 35).

Nesse contexto, a exploração dos indígenas através de rígidas formas de subjugação produziu os ganhos mais importantes do orçamento espanhol, ao mesmo tempo em que desempenhou um papel relevante na construção da nova sociedade ao se converter em instrumento de maltratos e desrespeito.  A tal ponto que a Coroa se viu obrigada a regulamentar o trabalho dos indígenas em suas diferentes formas de servidão para assim deter a ação dos Corregedores, cruéis executores de um implacável sistema de sujeição.

Segundo um documento intitulado “Apresentação da cidade do Cuzco.  Sobre excessos de corregedores e sacerdotes”, datado de 1768, e que se encontra na Academia de História de Madri, o abuso cometido pelos espanhóis contra os índios era de tal envergadura que o informante espanhol não vacila em dizer ao Rei que: “será preciso apartar a cordura para referir-lhe com clareza que faça ver com quanta inumana piedade procedem uns homens cristãos que, olvidados de seu caráter e de toda sua razão política, não terão semelhantes nas menos incultas nações”. (Colección Documental de la Independencia del Perú. La Rebelión de Túpac AmaruAntecedentes. Lima. Comisión Nacional del Sesquicentenario de la Independencia del Perú.  T. II.  Volumen 1ero. 1971, p. 4).

A exploração da mulher, por seu lado, teve como signo a violação e o maltrato legitimados pelo poder, em relaciones de submissão através das quais os espanhóis as converteram em suas mancebas, esposas, amantes, serventes e prostitutas.

São numerosos os levantes que o sistema de dominação colonial produziu logo de iniciada a conquista quando, em 1538, Manco Inca se sublevou chegando a sitiar Cuzco e Lima, e posteriormente em um período de resistência em Vilcabamba. Na década de 1600 explodiu a violência nas minas do Altiplano. (Norman Meiklejohn. La Iglesia y los Lupaqas de Chucuito durante la colonia. Cusco, 1988, p. 32).

Mas é a partir da segunda metade do século XVIII, coincidindo com a crise do Vice-reinado do Peru devido às reformas implantadas pela dinastia dos Bourbons, que os protestos se sucedem de maneira constante. Entre 1723 e 1750 produziram-se dez insurreições nos territórios que compreende os atuais países do Chile, Paraguai, Bolívia, Argentina e Venezuela.

As mulheres no movimento de independência

A presença e participação das mulheres foram anônimas; a história não registra seus nomes até fins do século XVIII na rebelião indígena liderada por José Gabriel Condorcanqui Tupac Amaru, a mais importante do período colonial. A significativa presença das mulheres nessa rebelião teve características de liderança e heroísmo representadas por Micaela Bastidas. Postos de mando e responsabilidade que têm origem na própria sociedade indígena pré-hispânica na qual as mulheres ocuparam uma elevada posição na família e na comunidade, e quando as circunstâncias demandaram, as viúvas e irmãs dos chefes foram “aceitas como legítimos líderes”. (Catherine Davies, et alt. South American Independence. Gender, Politics, Text, p. 134.)

Presença que guarda relação com o profundo vínculo ritual e místico com a terra, com seus costumes ancestrais, suas deusas criadoras da vida e dos alimentos, elemento fundamental da resistência durante a conquista e a colonização. Não puderam ser arrancadas de sua consciência nem de sua prática; enquanto que para os efeitos da conquista os deuses masculinos encabeçados pelo Sol e a sociedade inteira entravam em crise, as deidades femininas não desapareceram.

O líder do levante indígena, Tupac Amaru, era descendente de Manco Inca e do Inca Huayna Cápac. “Senhores que foram destes reinos” (La Rebelión, CDIP, Volumen 2°, p.40.), como diz o próprio José Gabriel. Enquanto que Micaela Bastidas, era de origem humilde. Segundo a certidão de casamento (La Rebelión, CDIP, Volumen 1°, p. 190) casaram-se no dia 25 de maio de 1760. Tupac Amaru tinha 19 anos e Micaela 16. Dessa união nasceram três filhos: Hipólito (1761), Mariano (1762) e Fernando (1768).

A insurreição começou no sábado, 4 de novembro  de 1780, em um período particularmente importante para a humanidade: quatro anos depois da Declaração da Independência dos Estados Unidos em 4 de julho de 1776, e nove anos antes do 14 de julho de 1789, quando o povo tomou a Bastilha em Paris e foi proclamada a Declaração dos Direitos do Homem.

É no curso das ações empreendidas antes da marcha ao Cuzco que se registra pela primeira vez o nome de Micaela Bastidas que até então só figurava como a esposa do líder rebelde. Diferentemente de Tupac Amaru que sempre despertou simpatia e respeito e não apenas pelas pessoas mais próximas a ele, Micaela Bastidas foi qualificada de cruel e era odiada pelos espanhóis. Vários documentos  se referem a ela com hostilidade assegurando que tinha um caráter mais intrépido que o marido e que em sua ausência ela mesma dirigia as expedições a cavalo para recrutar pessoas e armas, dando ordens com rara intrepidez e autorizando os editos com sua assinatura (Antología de la Independencia del Perú. AIP. Lima, 1972, p. 5.)

Entre fins de novembro e fins de dezembro, Tupac Amaru avançou em direção ao sul para estender a sublevação às províncias altas e passou para o Alto Peru com o objetivo de cortar a rota de abastecimento ao Cuzco. Micaela Bastidas ficou encarregada da parte administrativa e política de Tungasuca. É nesse período que sua presença começou a se impor de maneira definitiva: dá ordens, outorga salvo-condutos, lança editos, dispõe sobre expedições para recrutar pessoas e envia cartas aos caciques. (Archivo General de Indias de Sevilla y Audiencia de Lima: legajos 1039 y 1040). Não existem sutilezas nem vacilações. Chama os corregedores de ladrões e prende aqueles que se negam a obedecer a Tupac Amaru.

Entre 23 de novembro de 1780 e  23 de março de 1781, Micaela Bastidas dirigiu dezenove cartas a Tupac Amaru, através das quais é possível seguir o curso da insurreição e o lugar que ela ocupou. Nas cartas que Tupac Amaru lhe escreve, a informação e a mensagem são semelhantes às que se dirige a um combatente da mesma categoria. São comunicações de guerra, com o preciso e necessário e não existe menção que corresponda ao âmbito privado,  nem sequer sobre os filhos, mesmo que Hipólito de 19 anos combatesse com o grau de capitão e Mariano de 18 anos cumprisse importantes tarefas.

Porém no dia 6 de dezembro se interrompe o tom cordial e afetuoso quando Micaela Bastidas envia uma carta a Tupac Amaru em termos duros. Desde o triunfo da Batalha de Sangarara ela o havia pressionado para que marchasse em direção a Cuzco, sem nenhum resultado. Cansada, escreve uma carta que pôs fim à correspondência. Insiste em sua carta do dia seguinte na qual inclusive lhe comunica que decidiu marchar sozinha a Cuzco à frente do exército assentado em Tungasura. Micaela Bastidas pretendia apressar a marcha ao Cuzco com a segurança de ter a adesão do povo, desencadeando uma guerra de maior alcance. A estratégia de Tupac Amaru, entretanto, era sitiar Cuzco e cortar o abastecimento da cidade contando com a adesão dos próprios habitantes.

No final de dezembro Tupac Amaru e seus capitães decidiram marchar a Cuzco e Tupac Amaru e Micaela Bastidas avançam juntos à frente dos rebeldes. Chegam até os cerros que rodeiam a cidade, mas enfrentam uma situação inesperada: devem combater contra dois caciques entrincheirados na fortaleza de Sacsahuamán, ambos índios renegados aliados aos espanhóis como consta no Informe do Cabido de Cuzco de 1783.( La Rebelión, CDIP, Volumen 2°, p. 118.)

Durante os três meses que durou o enfrentamento armado, Micaela participou no combate e assegurou a provisão de armas e alimentos. Em 9 de Março de 1781, o exército espanhol deslocou um poderoso exército que chegou a Cuzco procedente de Lima.

Em 13 de março, Julián Tupac Catari chegou com dezenas de milhares de índios que sitiaram La Paz durante 109 dias. Entre os dias 18 e 22 do mesmo mês, Tupac Amaru teve um importante triunfo estratégico. Mas no dia 6 de abril foi derrotado na batalha de Sallca (La Rebelión, CDIP, Volumen 3°, p. 18.) e se refugiou na casa de um colaborador, Ventura Landaeta, confiando em sua fidelidade. Mas foi traído e entregue ao exército espanhol. Ventura Landaeta, o traidor, recebe dos espanhóis uma pensão vitalícia e uma grande recompensa. Pouco depois Micaela Bastidas também é presa juntamente com seus filhos e vários familiares.

A participação de Micaela Bastidas na insurreição não constitui um fato isolado. (Sara Beatriz Guardia. Mujeres peruanas. El otro lado de la historia, Lima, 2002, pp. 107-129). Foi um movimento que contou com uma importante presença feminina. Entre elas se destacam Tomasa Titu Condemayta, Cacica de Acos (Cuzco), proprietária de casas, terras, animais e outros bens, o que favoreceu o apoio estratégico que deu a Tupac Amaru. Cecilia Tupac Amaru  participou ativamente nos preparativos insurrecionais de Cuzco. Bartolina Sisa, esposa de Tupac Catari, participou no levante dirigido pelos irmãos Catari de agosto de 1780 até fevereiro de 1781. Marcela Castro, Ventura Monjarrás, Margarita Condori, entre outras. Todas foram executadas, suas casas arrasadas e seus bens confiscados.

A importância da presença de Micaela Bastidas na gesta libertária fica demonstrada na acusação. A sentença não poderia ser mais clara: “Por cumplicidade na Rebelião premeditada e executada por Tupac Amaru, auxiliando-o em tudo o que pode, dando as ordens mais vigorosas e fortes para juntar gente, (…) invadindo as províncias para sujeitá-las a sua obediência, condenando quem não obedecia suas ordens ou de seu marido, (…) esforçando e animando os índios ao levante”. (La Rebelión, CDIP, Volumen 2°, p. 736.)

Foi condenada a morte  e executada em 18 de maio de 1781. Tinha 35 anos e um sonho inconcluso de liberdade. Segundo o visitador José Antonio de Areche, a execução de Micaela Bastidas devia ir acompanhada “com algumas qualidades e circunstancias que causem terror e espanto ao público; para que à vista de espetáculo, se contenham os demais, e sirva de exemplo e escarmento” (Clemente R. Marckam, citado por Bonilla, p. 175).

“A execução como espetáculo de terror, a ‘masculinização’ de sua pessoa percebida nos editos redigidos contra Micaela e nos testemunhos legais em torno ao seu julgamento reforçavam a idéia de que não merecia ser tratada como una mulher”.(Meléndez. “La ejecución como espectáculo público: Micaela Bastidas y la insurrección de Tupac Amaru, 1780-81”, pp. 767 – 769).

Antes de matá-la, cortaram-lhe a língua, “y se lhe deu garrote, em que padeceu infinito; porque tendo o pescoço muito delgado, não podia o torno afogá-la, e foi preciso que os verdugos (…) dando-lhe patadas no estômago e peitos, a acabassem de matar”.(La Rebelión, CDIP, Volumen 2°, p. 75.). Depois lhe cortaram a cabeça que foi exposta durante vários dias no cerro de Piccho. Desprenderam seus dois braços, um foi enviado a Tungasuca e o outro a Arequipa. Uma perna a Carabaya, e o resto do corpo foi queimado.

Depois da Independência as insurreições dirigidas por índios foram minimizadas e esquecidas. A participação da mulher também foi apagada como se o fato de ser mulher e morrer pela pátria e a liberdade não tivesse o mesmo significado e a dimensão das ações dos heróis, todos masculinos, de nossa história.

*Sara Beatriz é representante de Diálogos do Sul em Lima, Peru

 

Fonte: Diálogos do Sul

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