Apesar da acessibilidade ser um direito garantido por lei para as pessoas com deficiência, a falta de ambientes acessíveis foi um dos principais problemas citados por estudantes de escolas públicas, em um estudo realizado na USP. Os relatos trouxeram casos de discriminação racial e capacitismo, que aconteciam dentro da escola. De acordo com os alunos, em nenhum momento houve intervenção da escola para lidar com a situação.
Defendida no final do ano passado, a pesquisa de mestrado da Faculdade de Educação (FE) da USP investigou as trajetórias escolares de pessoas negras com deficiência por meio de entrevistas e análise de dados.
Para entender o processo de escolarização de pessoas negras com deficiência, Georgton Anderson da Silva, autor da pesquisa, fez entrevistas com pessoas que já haviam concluído o ensino médio. Como critério para seleção dos entrevistados, foi estabelecido que eles deveriam ter no mínimo 18 anos, morar em São Paulo ou na região metropolitana, ter uma deficiência, autodeclarar-se como preto ou pardo, ter cursado o ensino fundamental ou médio em uma escola pública e já ter concluído o processo de escolarização na educação básica ou estar próximo de concluir.
Com base nessas informações, Silva selecionou três pessoas negras com deficiência para serem entrevistadas. Os entrevistados foram apresentados com nomes fictícios para preservar a identidade. A pesquisa trouxe os relatos de Carolina, Jeferson e Luís, pessoas com deficiência visual, mobilidade reduzida e autismo, respectivamente.
“A acessibilidade foi uma das questões que apareceu com maior destaque. Os relatos mostraram a dificuldade dos alunos com deficiência para conseguir recursos de acessibilidade e materiais didáticos adaptados na escola”, conta Anderson.
No caso do estudante Jeferson, a discriminação partiu da própria instituição de ensino, que o impediu de participar de passeios escolares por ser uma pessoa cadeirante e, portanto, não conseguir andar. O estudante também enfrentou grande resistência por parte da diretoria quando tentou fazer mobilizações para construção de uma rampa a fim de melhorar suas condições de deslocamento.
Quando mudou de escola durante o ensino fundamental, Jeferson contou que construíram uma rampa de acesso, mas ela não estava de acordo com os critérios de acessibilidade. “Não basta garantir o acesso, precisa haver condições para que os estudantes com deficiência também consigam permanecer e terminar a escola”, afirma Anderson.
Evasão escolar
Uma das consequências da falta de acessibilidade é a saída do ambiente escolar. A falta de estrutura e a discriminação criam um cenário hostil para estudantes negros com deficiência. Anderson lembra que “eles são invisibilizados em determinados contextos por conta do racismo e do capacitismo. Então, tem um duplo estigma, tanto racial quanto da deficiência”. De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2022, feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apenas 25,6% das pessoas com deficiência de 25 anos ou mais tinham finalizado pelo menos o ensino médio. Já para as pessoas sem deficiência, a taxa era de 57,3%. A pesquisa também mostrou que apenas 23,8% das pessoas pretas com deficiência com 25 anos ou mais terminaram o ensino básico.
Diversos fatores contribuem para a evasão escolar das pessoas com deficiência. Entre eles, Anderson destaca a rigidez da abordagem pedagógica e da didática utilizada nas salas de aula, além da ausência de materiais adaptados. “A Carolina, uma das pessoas que eu entrevistei, falou sobre a dificuldade em conseguir uma lupa. Ela tem baixa visão, então a lupa ajudaria a ampliar o texto para ela conseguir ler. Às vezes, ela não conseguia finalizar o exercício junto com os colegas da turma”, afirma.
“O que eu chamava de sorte era na verdade o enfrentamento à falta de direitos”, enfatizou Carolina em seu relato, presente na dissertação. Por ser uma mulher negra albina, ela também lidava com casos de racismo dentro da escola porque os outros alunos a consideravam exótica.
Em um ambiente tão adverso, os estudantes comentaram que o momento mais satisfatório do processo de escolarização foi ter concluído o ensino médio. “Quando eles falam que a maior realização foi ter terminado a escola, é justamente pensar que não vão precisar voltar para o lugar em que sofriam determinadas violências. Esse alívio ao sair indica que foi uma experiência difícil e até traumática. E, como muitas vezes essas questões não eram levadas para a direção, eles tinham que saber como lidar com isso”, destaca o pesquisador.
Outro ponto mencionado na pesquisa foi a questão do apoio psicológico para pessoas neurodivergentes, que no caso de Luís, homem negro dentro espectro autista, foi inexistente. Como ainda não tinha o laudo de autismo, os professores não se preocupavam com ele, que ainda tinha muita dificuldade para conseguir um bom desempenho escolar.
A pesquisa constatou que as escolas dos estudantes entrevistados não trabalhavam com o tema da deficiência em aulas e palestras. Isso também acontecia com assuntos relacionados à questão racial. Apesar de terem cursado o ensino básico após a implementação da Lei 10.639/03, que trouxe a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Africana e Afro-Brasileira, a temática racial não aparecia durante as aulas.
O Censo Escolar da Educação Básica de 2022, feito pelo Inep, apontou que 1,5 milhão de estudantes com deficiência estavam matriculados no Brasil, tanto em instituições públicas quanto privadas, representando um aumento de 13,09% em relação ao ano anterior. Do número de matriculados, a porcentagem de estudantes pretos com deficiência era de 3,7%, enquanto 36,6% eram pardos.
Apesar do aumento de matrículas ser importante, ele não significa necessariamente que as condições de ensino para as pessoas com deficiência sejam adequadas. “O aumento de matrículas das pessoas com deficiência não pode ser utilizado como marcador unicamente para avaliar que a política nacional dentro da perspectiva inclusiva está sendo um sucesso. A matrícula é importante, mas são necessárias ações de permanência para que os alunos consigam ter tranquilidade durante o processo de escolarização”, afirma Anderson.
O pesquisador complementa dizendo que “é muito importante que as escolas ofereçam melhorias para que os alunos com deficiência tenham uma experiência mais inclusiva e proveitosa. Quando eles recebem apoio e condições mínimas de estudo, as chances de se formarem são maiores. Felizmente, todos os entrevistados conseguiram se formar, mas nem sempre isso acontece”.
Escrevivências na Educação
Parte da pesquisa do educador Georgton Anderson da Silva foi realizada no Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, na Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência – na época, sob a titularidade de Conceição Evaristo. Dentro do IEA, ele participou do grupo de estudos Escrevivência: corpus estético em diferença. Na FE, integra o grupo de pesquisa Diferenças, deficiências e desigualdades – intersecções no campo da educação, e o grupo Fateliku, que estuda temas abrangendo educação, relações étnico-raciais, gênero e religião, coordenado pelo professor Rosenilton Silva de Oliveira.
Ao participar do curso de extensão da FE Políticas Sociais e Pessoas com Deficiência – Princípios e práticas no cenário brasileiro, ministrado pela professora Shirley Silva, Anderson construiu sua proposta de pesquisa que resultou no desenvolvimento do mestrado “O que os livros escondem, as palavras ditas libertam”: indicadores e percepções de pessoas negras com deficiência acerca das suas trajetórias escolares – disponível no banco de Teses da USP.
Para estudar as percepções de pessoas negras com deficiência acerca de suas trajetórias escolares, o pesquisador partiu de dois conceitos: escrevivência e interseccionalidade. O primeiro foi elaborado por Conceição Evaristo e deriva de um jogo de palavras entre escrever, viver e se ver. É uma concepção resultante de uma epistemologia negra, utilizada como chave de leitura para entender a experiência de pessoas negras brasileiras.
“É um conceito que surge ancorado à herança ancestral negra, principalmente ao corpo negro de mulheres escravizadas, como a figura da Mãe Preta, uma mulher escravizada que cuidava dos filhos da casa grande e também contava histórias para dormirem.”, explica o pesquisador.
Já a interseccionalidade é abordada para entender as implicações envolvendo raça e deficiência. “A interseccionalidade vai se dedicar a examinar as relações de poder, como elas se entrelaçam nas sociedades que são marcadas pela diversidade e como elas influenciam as experiências individuais e coletivas”, explica.
Durante o processo de elaboração da dissertação, a orientadora de Anderson, professora Shirley Silva – uma referência na área da educação especial -, faleceu precocemente. “Dedico este trabalho à Profª Drª Shirley Silva (in memoriam), cuja fé em mim se manifestou em inúmeras ocasiões, mesmo quando eu mesmo duvidava”, escreveu o pesquisador.
*Estagiária sob orientação de Tabita Said
**Estagiário sob supervisão de Moisés Dorado