Em busca de valorização dos cabelos crespos e cacheados, negras e negros se unem para reforçar identidade: ‘A estética é um ato político’

Grupos de apoio no Facebook e marchas nas ruas são meios encontrados para reafirmar a negritude.

Por  Itana Alencar, do G1

Vanessa Teixeira passou por um processo de reconhecimento da negritude através da transição capilar (Foto: Arquivo pessoal)

Quem olha o cabelo de Vanessa Teixeira, de 27 anos, não imagina o que ela teve que passar antes de ter segurança para ostentar a cabeleira crespa no alto. Durante anos, a publicitária alisou o cabelo para se sentir parte de um padrão estético que não contemplava pessoas com a aparência dela.

“Eu tinha oito anos quando me levaram no salão para aplicar a primeira química, com o intuito de domar meu cabelo. Esse processo de relaxamento capilar foi tomando proporções e chegou o dia que eu não tinha mais um traço do meu crespo. E aí eu parti em busca de resgatar minha negritude”, lembra.

A história de Vanessa não é um caso isolado. Só em Salvador, mais de 96 mil pessoas, entre homens e mulheres, fazem parte de um grupo no Facebook, onde crespos e cacheados se unem para trocar dicas e apoio, na tentativa de resgatar a identidade do cabelo natural.

O processo de transição capilar, que consiste em tratar os fios para retirar as químicas de transformação, tem recebido cada vez mais adeptos, em sua maioria pessoas negras.

À frente, Naira Gomes que é uma das organizadoras da Marcha do Empoderamento Crespo, o principal movimento de valorização da negritude, a partir da estética, em Salvador (Foto: Arquivo Pessoal)

Atenta a esses debates e trocas na internet, Naira Gomes, de 30 anos, percebeu a necessidade de criar um movimento que levasse as pessoas a manifestarem o orgulho de seus cabelos crespos e cacheados, nas ruas. Assim, ela juntou as amigas e nasceu a Marcha do Empoderamento Crespo de Salvador, em 2015.

“O cabelo é uma metáfora para falar do corpo inteiro, de todo um fenótipo que é um bem material. O racismo opera no Brasil pela aparência, que pretere e prefere pessoas e, então, a Marcha faz esse debate de disputa com o racismo e esses significados. A estética é um ato político”, reflete Naira.

Se hoje o resgate da identidade negra, a partir da afirmação estética, tem começado a ganhar amplitude, anos atrás quem desejava passar pelo processo de transição não tinha o mesmo volume de informações que é possível encontrar atualmente.

Por não encontrar referências sobre como tratar o cabelo crespo, Lorena Ifé criou o projeto Encrespando, para ajudar outras pessoas (Foto: Reginaldo Lustosa/Arquivo Pessoal)

A jornalista Lorena Ifé, que passou pela transição em 2006, por exemplo, não encontrou pessoas com quem trocar conhecimentos. Anos depois, ela mesma decidiu criar a Encrespando: um projeto de identidade, para falar sobre afirmação da negritude pela estética.

“Eu comecei essa transição em Cachoeira, uma cidade tradicional do interior. Tive que, sozinha, enfrentar todo um sistema social e esse também é um dos motivos da Encrespando ter nascido. Como eu não tive apoio, não tive onde buscar referências e tive que aprender tudo sozinha, usei as dicas que eu encontrava e fui fazendo meus caminhos”, pontua Lorena.

Para passar adiante tudo o que aprendeu e aprende, ela faz palestras onde fala sobre a transição capilar e a importância de tornar o assunto natural. Para ela, essas discussões possibilitam até mesmo que as marcas de cosméticos se atentem para o público negro como consumidor, mas de produtos que valorizam o fenótipo racial.

Vanessa concorda: “Quando eu passei pela transição, em 2009, era um jogo de erro e acerto. Tinha que testar várias coisas, principalmente receitas caseiras porque as empresas não faziam cosméticos para enaltecer cabelos crespos e cacheados. Faziam somente para alisar, domar, amansar. Hoje a gente chega nas lojas e tem uma gama de produtos para nós, a gente se enxerga como um público que também é consumidor e que também tem produtos que foram pensados para a gente”.

Ente ano, a Marcha do Empoderamento Crespo desfila pela terceira vez, no Centro de Salvador (Foto: Marcha do Empoderamento Crespo/Divulgação)

A publicitária relata também, que além de encontrar os produtos nas prateletiras, os grupos no Facebook ajudam na troca de informações.

“Nós trocamos receitas de cuidados com os cabelos, indicamos produtos e principalmente ajudamos as pessoas que estão no começo e se sentem meio perdidas. É uma rede de apoio, onde damos forças uns aos outros para que descubram a beleza dos seus cabelos naturais”, considera a publicitária.

A criadora da Marcha do Empoderamento Crespo também enxerga a importância da formação dessas redes de apoio. “Há uns quatro anos, em Salvador, começou a surgir muito pulsante vários grupos de internet com referências a cacheadas, crespas e transição, sempre nomes que tinham essas três categorias envolvidas. E negros se reunindo para falar sobre estética, beleza, sobre formas de cuidar do cabelo crespo, assuntos que perpassam esse debate da existência de ser negro. A Marcha chegou no momento onde tudo isso já é um grande aglutinador de pessoas”, relembra Naira.

Ela pontua ainda que a Marcha traz o cabelo crespo como mote, para com isso transformar o empoderamento em algo coletivo. “Se não houver troca de coragem, de conhecimento e de força, com o entendimento de que o potente é ser parte de uma rede, não adianta, porque a luta contra o racismo tem que ser sistêmica e coletiva”, disse a organizadora.

A valorização do cabelo crespo nem sempre surge a partir da transição, como no caso do estudante de Arquitetura e Urbanismo Matheus Barbosa, de 23 anos. Ele não chegou a passar por alisamentos, mas resolveu deixar o cabelo crescer por não encontrar figuras semelhantes a si, em sua comunidade.

Matheus não passou pelo processo de transição capilar, mas viu no crescimento dos cabelos crespos uma forma de fortalecer a identidade da sua comunidade (Foto: Jeferson Dias/Arquivo Pessoal)

“Meu processo de identificação e reformulação foi aos poucos. Gradativamente, fui vendo beleza e força em meus traços e a cada ícone representativo que eu via, ia acumulando mais força, até que senti falta de ter o conhecimento real de uma parte de minha estética que me foi privada desde cedo, o meu cabelo”, ele descreve.

Matheus conta que hoje ele enxerga a si próprio como uma das figuras que o ajudaram a pensar diferentes e mudar. “Vejo a minha estética como um ato de resistência em certos locais. Uma luz no fim do túnel pra quem olha em volta e não vê seus iguais exaltando sua estética”, ponderou.

Construção da identidade

Publicitária Vanessa Teixeira (Foto: Arquivo Pessoal)

Segundo a historiadora Maria Clara Guedes, criar em si uma figura de inspiração para o meio em que vive é fundamental dentro de uma determinada classe da sociedade que é carente de representatividade.

“Existe o equívoco de que o belo é apenas questão de gosto, porém o que é considerado bonito ou não vem de construção social. O padrão do que é belo é difundido há anos e foi construído e incutido no pensamento das pessoas por décadas a fio. Esse padrão machuca quem não se encaixa nele e esse valor é repassado. Lutar contra isso é lutar para ter uma voz e o direito de ser visto”, explicou.

Maria Clara destaca ainda que o movimento de reidentificação bate de frente a uma cultura onde as pessoas procuram minimizar seus traços e adquirir outros para serem parte de um todo.

“O traço mais afetado acaba sendo o cabelo porque é o que impacta. Ser racista é tido como feio, então a cor da pele as pessoas conseguem disfarçar que gostam, elas fingem que aceitam. Mas o cabelo não, então elas disfarçam isso como se fosse questão de gosto. Você pode ser preto, desde que seu cabelo não esteja pra cima, não marque presença e diga: ‘Olha, estou aqui! Eu resisto!'”.

O processo de aceitação e reconhecimento pode ser extremamente doloroso, conforme o psicólogo Antônio Guerreiro. Para ele, a formação de grupos na internet, onde pessoas trocam informações e apoio é importante na formação identitária.

“A estética é um meio de socialização e o desenvolvimento disso é pungente, mexe com o psicológico de pessoas que têm a autoestima ceifada desde a infância. É importante que as pessoas se comuniquem sobre dores e aflições, para que elas atinjam um ideal de mundo em que elas se sentem pertencidas. Porque perceber, como indíviduo, que uma característica racial sua não é aceita, é de uma agressividade que resulta em depressão, ansiedade e baixa autoestima”, exemplificou o psicólogo.

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