Consciência Negra e a luta de Quilombos pelo reconhecimento

Jornal GGN – Desde o reconhecimento do governo de comunidades quilombolas até a luta interna dos afrodescendentes de se assumirem como negros são reflexos presentes até hoje dos três séculos de escravidão do Brasil. A violência material e simbólica, seja ela individual ou coletiva, traz marcas ainda não superadas e pouco debatidas.

No GGN 

No Ceará, 49 grupos remanescentes possuem certificação emitida pela Fundação Palmares

Até onde você iria pela sua liberdade? Na história da comunidade quilombola do Alto Alegre, em Horizonte, na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF), os mais antigos contam que, por volta de 1890, seu fundador, Negro Cazuza, teria chegado como escravo à Barra do Ceará, na orla da Capital e, de lá, fugido para a região entre aquele município e Pacajus – um trajeto de quase 55Km a pé, sem conhecer um palmo à frente. Na cabeça, apenas um desejo: sobreviver.

Ao chegar ao local, porém, foi capturado por capitães-do-mato e “amansado” num tronco de carnaúba por três dias e três noites, debaixo de chibatadas. Também se conta que, depois de solto, da sua resistência e do casamento com uma índia paiacu, surgiram as famílias Agostinho, Bento e Silva – hoje na sétima geração -, herdeiras da memória, cultura e tradições do Negro Cazuza.

Apesar de centenária, a comunidade só teve seu reconhecimento formal em maio de 2005, quando foi considerada remanescente dos Quilombos (CRQs) pela Fundação Palmares, órgão vinculado ao Ministério da Cultura com responsabilidade de emitir o certificado de autorreconhecimento do povo quilombola. Grupos étnicos com predominância na população negra rural ou urbana, se autodefinem a partir das relações com a terra, parentesco e práticas culturais de antepassados africanos.

No Ceará, 49 CRQs são certificadas pela Palmares, espalhadas em 29 municípios e concentradas principalmente em Caucaia (8), Quiterianópolis (5), Tamboril (4) e Salitre (4). Em todo o País, são 3.018 comunidades reconhecidas, as maiores localizadas na Bahia (743) e no Maranhão (690). Já a titulação das terras quilombolas cabe ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).

Para a autarquia, o território deve garantir a reprodução física, social, econômica e cultural da comunidade residente. Hoje, 33 processos administrativos estão abertos para regularização no Ceará. Ao todo, as comunidades quilombolas abrigam 1.567 famílias no Estado, segundo o Incra. Para a garantia do reconhecimento, é necessária a elaboração de um Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), onde são apresentados documentos como o Memorial Descritivo.

Memória

Em Horizonte, a Associação dos Remanescentes de Quilombos de Alto Alegre e Adjacências (Arqua) mantém o Centro Cultural Quilombola Negro Cazuza, que reúne a história da comunidade, considerada uma das mais importantes para a identidade cultural do Município.

Secretário da Arqua e bacharel em Humanidades, Jeovany Férrer, 23, explica que a invisibilidade das comunidades negras ainda durou 100 anos após a Abolição, pois a Fundação Palmares só foi criada em 1988. “A gente volta a chamar atenção dizendo: ‘olha, nós estamos aqui há bastante tempo e fomos excluídos de políticas públicas básicas'”, diz. Segundo ele, só com reconhecimento os quilombolas conseguiram notoriedade e políticas públicas direcionadas.

Contudo, nesse hiato, eles não esperaram. Quem detinha maior conhecimento sobre uma área ajudava os demais; dessa forma, surgiram professoras, parteiras e curandeiras. “Até hoje, nós temos remédios etnomedicinais, herdados provavelmente dos nossos antepassados com base africana. Se não temos políticas públicas, nos articulamos com nossos conhecimentos tradicionais”, conta Jeovany.

Pensando nisso, a Arqua também promove o Chá de Memórias, reunião entre idosos, adultos e jovens para o compartilhamento de experiências e histórias. “É uma troca de saberes que contribui para o fortalecimento da identidade cultural. As crianças já vão achar normal e descobrir que a história não é exatamente a que está nos livros”, diz Tatyana Ramalho, 30, articuladora da Arqua e pertencente à sexta geração do Negro Cazuza.

A identidade quilombola, porém, ela só reconheceu efetivamente no ano passado. “Eu passei um período negando essa questão porque não tinha um empoderamento verdadeiro. Eu alisava o cabelo porque era mais prático e bonito. Agora, estou passando por uma transição capilar para voltar ao cacheado. É uma resistência, uma luta diária procurando se fortalecer e empoderar outras pessoas”, discute.

Para Tatyana Ramalho, ser mulher, negra e quilombola implica em lutas diárias

Obstinação

Os efeitos de três séculos de escravidão ainda são profundos. O período, caracterizado pela imposição da supremacia branca e do cristianismo, negou a identidade do negro ao suprimir suas referências míticas e ao fazê-lo acreditar que era propenso a servir, pontua o gerente do Núcleo dos Estudos Africanos e Afro-Brasileiros da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Neaab/Unilab), Luís Tomás Domingos. “Foi uma violência simbólica que ainda perpassa o inconsciente coletivo brasileiro. As consequências estão aí, mas ninguém fala, ninguém debate”.

Uma delas é o próprio estigma que a cor da pele carrega. “Alguns afrodescendentes têm dificuldade de se assumir como negros porque, através da própria história, foram instigados a pensar que são feios, que são escravos. Quem tem a coragem de assumir essa identidade?”, reflete o professor. Estigmas que ainda motivam mais violência: de 2015 a 2017, 34 denúncias de discriminação racial foram registradas no Ceará, segundo o Disque 100, do Ministério de Direitos Humanos.

Para reverter esse quadro, uma saída: a memória. Luís Tomás Domingos descreve que a própria história dos quilombos é de obstinação, pois foram formados por indivíduos que receberam tratamento desumano em fazendas e engenhos, fugiram e ocuparam lugares inacessíveis “onde pudessem ser livres”. “É um processo de identidade e resistência de um povo que não aceitou ser escravizado, não aceitou o trabalho forçado, não quis ser submetido”, analisa.

Força que está no sangue de Nêgo do Neco, descendente de Negro Cazuza, que também vive nas veias de Tatyana Ramalho: “Ele foi a pessoa que trouxe vida a esse lugar. Às vezes, eu fico imaginando todo o sofrimento que ele passou e, mesmo assim, não desistiu. Como ele, a gente luta hoje pra que nossos filhos e netos vivam melhor no futuro. A história continua”, completa.

Nêgo do Neco: “A força vem da veia, vem do sangue. Negro é duro na queda”

Saiba mais

No Ceará, dez comunidades quilombolas são tituladas e delimitadas por meio de Portaria de Reconhecimento emitida pelo Incra. São elas: Sítio Arruda, em Araripe; Encantados do Bom Jardim e Lagoa das Pedras, em Tamboril; Alto Alegre e Base, em Horizonte e Pacajus; Três Irmãos, em Croatá; Brutos, em Tamboril; Serra dos Chagas, em Salitre; Sítio Veiga, em Quixadá; Boqueirão das Araras, em Caucaia; Minador, em Novo Oriente, e Lagoa do Ramo e Goiabeiras, em Aquiraz.

Entrevista com Zelma Madeira*

Identidade precisa ser valorizada

Qual foi a contribuição do negro na formação do Brasil?

Nós trabalhamos para erguer essa nação. O País é devedor de políticas de equidade, para diminuir a distância entre as populações branca e não branca, além de entender que somos racistas. Reconhecendo que o racismo existe, podemos pensar em como superá-lo.

Se o grande discurso do Brasil é a miscigenação, por que ele não se efetiva na garantia de direitos?

Nós não temos a materialidade da igualdade. A miscigenação é bonita pela diversidade étnica, mas não podemos dizer que ela se deu sem conflitos. Não queremos proliferar discursos de ódio, mas permitir que as populações discriminadas encontrem um ponto de legitimidade do seu legado na cultura, economia e política.

Ser negro ainda é um desafio?

O racismo é estrutural porque tivemos um projeto colonial racista. Ser percebido como negro sempre foi muito ruim, mas isso tem mudado aos poucos. Devemos romper com o racismo acadêmico, ambiental, religioso. Com o descobrimento do Brasil, nós fomos encobertos. Agora, precisamos ser vistos, e de uma forma boa, não estereotipada.

*Coordenadora especial de Políticas Públicas para Promoção da Igualdade Racial do Estado do Ceará

Publicado originalmente no Diário do Nordeste

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