Em defesa da vida e dos direitos políticos de mulheres negras LGBTQIA+

Enviado por / FonteECOA, por Anielle Franco

O ano legislativo mal teve início e alguns dias atrás novos episódios de violência política contra mulheres negras eleitas tomaram conta dos noticiários e das redes. Por isso, inicio este texto dizendo que minha ideia era escrever sobre outro tema na coluna de hoje, mas infelizmente, a inércia do estado brasileiro em proteger e dar respostas para nossas mulheres negras eleitas que estão vivendo sob ameaça constante,, me faz retornar ao mesmo tema com o qual nós, do Instituto Marielle Franco trabalhamos durante toda a eleição: a grave situação da violência política contra mulheres negras no Brasil.

Na madrugada do dia 26 de janeiro, Ana Carolina Iara, mulher negra intersexo, covereadora da Bancada Feminista do PSOL em São Paulo, sofreu um revoltante atentado em sua casa. Um carro branco disparou contra a casa da co-vereadora algumas vezes durante a madrugada. Carol Iara, como é conhecida, estava em casa junto à sua mãe e irmão no momento do atentado. Felizmente, esse crime não resultou em mais um assassinato político, mas a sensação de insegurança permaneceu e agora ameaça o exercício dos direitos políticos de Carol Iara na Câmara Municipal de São Paulo.

Assim que soubemos do ocorrido, nos mobilizamos junto a organizações parceiras e a equipe de Carol Iara para que juntes pudéssemos cobrar das autoridades competentes, uma investigação rigorosa do ocorrido e imediata proteção para a co-vereadora. Na sexta-feira lançamos uma pressão em nosso site Não Seremos Interrompidas e em menos de 24 horas, mais de 5 mil e-mails de pessoas cobrando proteção para Carol Iara.

A vereadora Erika Hilton na Câmara Municipal de São Paulo
Imagem: Nelson Almdeira/AFP

No mesmo dia, Erika Hilton, vereadora mulher negra e transsexual pelo PSOL de São Paulo, também registrou um Boletim de Ocorrência por ameaças e ataques transfóbicos e fascistas que sofreu dentro da própria Câmara Municipal na semana anterior. Com o caso da vereadora Erika, temos duas mulheres negras LGBTQIA +, duas mulheres negras que, juntas receberam quase 100 mil votos na cidade de São Paulo, e mesmo ambas fazendo parte de grupos historicamente vulnerabilizados, ainda não possuem a proteção necessária para exercerem a função para qual foram eleitas.

É importante destacar que, não por falta de evidências das violências sofridas e ameaças que vivem cotidianamente, essas mulheres estão hoje buscando inúmeros caminhos para terem proteção. Em 2020, os atos de violência eleitoral e política no Brasil atingiram índices alarmantes, onde foi possível registrar, pelo menos, um episódio de violência política a cada dois dias. A violência, que não ocorre apenas no período eleitoral, é uma violência generalizada e que tem como objetivo principal impedir que representantes de grupos minorizados em espaços de tomada de decisão acessem e se mantenham nesses espaços políticos institucionais. Segundo pesquisa conjunta da Terra de Direitos e Justiça Global, que mapeou 327 casos ilustrativos de violência política de 01 de janeiro de 2016 a 01 de setembro de 20, foram registrados, no referido período, 125 assassinatos e atentados, 85 ameaças, 33 agressões, 59 ofensas, 21 invasões e 4 casos de prisão ou tentativa de detenção de agentes políticos, sejam (pré)-candidatos(as) ou eleitos(as). A pesquisa filtrou, sempre que possível, atos com motivação diversa.

A análise dos dados levantados na pesquisa apontou também que houve um aumento dos atos violentos contra a vida nos últimos anos. De 19 assassinatos e atentados mapeados em 2017, passou-se a 32 em 2019. Já em 2020, haviam sido contabilizados 27 casos somente até o início do mês de setembro. Em atualização preliminar da pesquisa, vê-se que este número aumentou vertiginosamente: foram registrados mais 12 assassinatos e 66 atentados somente de 01 de setembro até 20 de novembro, período que englobou as eleições municipais. Com estes números, 2020 totalizou, ainda sem findar-se o ano, um trágico recorde: 105 casos de assassinatos e atentados contra agentes políticos, um número 5 vezes maior do que o quantitativo de 2017.

A pesquisa revelou também que a maior incidência de assassinatos e atentados se deu na esfera municipal – 87% dos casos – dos quais 61% foram de ataques contra candidatos(as) ou eleitos(as) à vereança. Assim, é possível atestarmos que a esfera municipal, onde se encontram Carol e Erica, e onde também estava Marielle antes de seu assassinato, está mais vulnerável a ataques violentos e, portanto, necessita de maior proteção.

A situação de violência vivenciada pela população de transexuais e travestis, grupo o qual as vereadoras fazem parte, também se intensificou no último ano. Segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), durante 2020, houve pelo menos 175 assassinatos de travestis e mulheres trans no Brasil. Segundo esse levantamento, em números absolutos, São Paulo foi o estado que mais matou a população de transexuais e travestis em 2020, evidenciando o grave problema que precisa ser enfrentado pela Secretaria de Segurança e as autoridades locais.

Especificamente quanto às mulheres negras eleitas ou que concorreram a pleitos nas eleições municipais de 2020, a pesquisa do Instituto Marielle Franco identificou, em estudo que entrevistou 142 mulheres candidatas negras, de 16 partidos, 21 estados e todas as regiões do Brasil, que 8 a cada 10 candidatas negras sofreram violência virtual nas eleições municipais e 6 a cada 10 sofreram violência moral e psicológica. Além disso, entre as participantes da pesquisa, 42% relataram ter sofrido algum tipo de violência física, enquanto 24,6% das candidatas relataram ter passado por algum tipo de violência de gênero ou LBTfóbica.

Diante desse cenário, seguimos fornecendo todo apoio possível para que a política seja sim um lugar de mulheres negras e pessoas LGBTQIA+. Todos os dias, nós propomos soluções e atuamos para ampliar esse espaço que um dia, minha irmã ocupou e que muitas outras ainda sonham e devem ter o direito de ocupar. No entanto, não é possível aceitarmos que a proteção de parlamentares eleitas fique a cargo de articulações de movimentos sociais e organizações da sociedade civil. O estado brasileiro precisa dar respostas para este e tantos outros episódios de violência que ocorrem com nossas representantes. Por isso, seguiremos perguntando: Quem cuida das mulheres cisgêneras, travestis e transsexuais negras eleitas? Quem cuida de nossas parlamentares?

 

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