Nos primeiros dias de 2021, um sopro de esperança chega às portas dos brasileiros e brasileiras com o início da primeira etapa da vacinação contra a Covid-19 no país – ainda que de forma incipiente e em meio ao caos instalado na gestão da pandemia.
Mônica Calazans, mulher negra de 54 anos, enfermeira atuante na linha de frente do combate ao coronavírus no Instituto de Infectologia Emílio Ribas, foi a primeira pessoa a ser vacinada no Brasil. Alguns dias antes, tínhamos sido tomados pela desesperação diante de mais vidas perdidas em Manaus para a negligência e incompetência dos gestores públicos, que conduziam agora – incompreensivelmente – ao esgotamento do estoque de oxigênio nos hospitais.
No entanto, a imagem da enfermeira durante a aplicação da primeira dose da vacina, punhos cerrados e erguidos diante das câmeras, despertou em muitos de nós uma fagulha de fé, uma centelha de confiança na possibilidade de superarmos o dantesco cenário que a pandemia impõe há quase um ano.
A figura de Mônica, mulher negra, trabalhadora da área da saúde, viúva, mãe, filha de uma idosa de 72 anos que depende de seus cuidados, não poderia representar melhor a trajetória desse povo-sobrevivente, que, mesmo na dor, é capaz de produzir milagres como o SUS e conduzir a nação para além da tragédia anunciada que tem sido a sua história.
Não por acaso é o movimento de mulheres negras que, desde os anos 1980, tem protagonizado as iniciativas no campo da saúde para o desenvolvimento de políticas de equidade racial rumo a condições igualitárias de acesso e de qualidade no atendimento à população negra.
Sobretudo pela perspectiva dos direitos sexuais e reprodutivos e do olhar interseccional inerente ao pensamento e à ação política feminismo negro brasileiro, as mulheres negras impulsionaram a criação de instâncias governamentais dedicadas a refletir e implementar políticas diferenciadas de saúde para a população negra.
Depois de denúncias da prática de esterilização cirúrgica em massa como instrumento de controle natalidade pelo poder público, as ativistas feministas negras – lideradas por gigantes como Luiza Bairros, Benedita da Silva e Jurema Werneck – provocaram a criação de uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) nos anos 1990.
O relatório final da CPMI concluiu pela ausência de políticas de saúde voltadas para a população negra no país. Um dos dados mais relevantes levantados foi justamente a inexistência de informações desagregadas por raça/cor no sistema de saúde, o que inviabilizava o planejamento da política pública segundo as necessidades ou singularidades da saúde da população negra.
Foram, assim, as feministas negras brasileiras a vanguarda de um modo de compreensão das desigualdades que nos assolam e, ao mesmo tempo, as pioneiras de um programa político que assumiria como central o tema do racismo imbricado à experiência de gênero, na construção da democracia do porvir.
Hoje, quarenta anos depois de semeado o embrião da luta organizada das mulheres negras brasileiras, suas predições se realizam implacavelmente sobre a população brasileira durante a pandemia do novo coronavírus.
Ainda em março de 2020, os especialistas da ABRASCO – Associação Brasileira de Saúde Coletiva – alertavam que o fator racial teria um papel decisivo na distribuição de condições de risco e até mesmo de letalidade pelo coronavírus (COVID-19).
“As doenças não são entidades democráticas. Pelo contrário, elas têm incidências determinadas pela renda, pela idade, pelo gênero e pela raça. (…) A população negra, em sua diversidade, também é um dos grupos de risco, obviamente com gradações internas, variando tanto por comorbidades que atingem negras e negros em maior número, caso da hipertensão e da diabetes e, principalmente, a anemia falciforme, ou mesmo pela letalidade social, motivada por questões históricas, políticas e sociais estruturantes de nossa sociedade.”.
Já em 2021, quando o Brasil chega à inaceitável soma de 200 mil vidas perdidas para a Covid-19, sabemos que, entre os brasileiros hospitalizados, a taxa de mortalidade dos negros supera a taxa dos brancos – uma diferença que pode chegar a 79% entre negros internados nas UTIs e 56% entre brancos nas mesmas unidades.
Não obstante os números obscenos reveladores da iniquidade racial com que é distribuída a possibilidade de prevenção e tratamento da Covid-19, o Plano Nacional de Imunização se mantém na cegueira da cor e não distingue ou inclui entre grupos prioritários a serem vacinados a população negra.
Mais uma dimensão do negacionismo que desconhece a estrutura racista em que repousa o edifício da nossa sociedade e que despreza o avanço dos conhecimento científicos sobre a raça como um dos determinantes sociais em saúde.
Resultado: temos gestores com os olhos convenientemente fechados para a repartição de dinheiro, poder e recursos nos níveis global, nacional e local. Circunstâncias estas que, ao estabelecerem as condições de vida das pessoas, são causadoras das iniquidades em saúde que jamais poderão ser superadas com políticas baseadas em abordagens universais sobre a população de usuários do SUS.
Não apenas determinantes relacionados às comorbidades com maior incidência na população negra – respeitadas gradações internas, dada a sua diversidade –, como é o caso da hipertensão, diabetes, anemia falciforme, mas também o fenômeno do racismo estrutural que rege as condições materiais de vida dos negros e negras devem ser considerados na formulação de medidas de emergência em saúde anti-discriminatórias, prioritárias e diferenciadas.
A atual moldura jurídica do direito humano à saúde (art. 25 da Declaração Universal de Direitos Humanos e art. 6o, CRFB/88), ao abrigar um estado de completo bem-estar físico, mental e social, impõe ao poder público obrigações positivas destinadas não apenas ao tratamento de doenças, mas também dirigidas à mitigação das vulnerabilidades dos grupos populacionais mais expostos aos agravos em saúde.
Somente por meio de medidas diferenciadas no plano de imunização que considerem os diferentes graus de exposição/risco da população à Covid-19 será possível romper a sistemática discriminação desvelada pelos determinantes sociais da saúde, para assegurar com equidade o gozo de bem-estar físico, mental e social.
Além das normas jurídicas nacionais e internacionais que protegem o direito fundamental à saúde, o princípio constitucional da igualdade como não discriminação (art. 3o, inciso IV, CRFB/88), fundamenta que a população negra seja imunizada de forma prioritária.
Na mesma esteira, as cláusulas de proteção contra a discriminação racial, presentes no texto constitucional (arts. 3o, IV, e 5o, ambos da CRFB/88), bem como na Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial (Decreto n.º 65.810/1969) e, especialmente, a proibição de qualquer forma de discriminação indireta inscrita na Convenção Americana contra o Racismo, a Discriminação Racial e formas correlatas de Intolerância autorizam, ou melhor, obrigam a distinção por raça no Plano Nacional de Imunização.
Esperamos, portanto, que a histórica fotografia da enfermeira Mônica Calazans reflita o despertar das autoridades de saúde brasileiras para as lições que as feministas negras têm plantado desde os anos 1980: não é possível prestar saúde no Brasil e, muito menos, superar o rastro mortal de uma pandemia sem atenção às experiências raciais e de gênero que, ao fim e ao cabo, continuam ditando quem vive e quem morre neste país.
E que desse sangue-mulher, jorrem as gotas de esperança que nos permitirão avistar saídas, futuros, horizontes além das nossas molhadas lembranças de um pesadelo que não parece ter fim.