Emanoel Araújo: “Na Bahia, Rodin virou vendedor de acarajé”

por Claudio Leal

Na segunda parte da entrevista especial, Emanoel Araújo relata sua experiência à frente da Pinacoteca de São Paulo, na década de 1990, e as reações "absolutamente racistas" à sua presença na instituição cultural.

– Na época, o governador Fleury recebeu montes de pedidos para revogar a nomeação e até foi publicado um abaixo-assinado com a assinatura de muitas pessoas conhecidas e ditas amigas.

A gestão de Emanoel Araújo se tornou histórica, por recuperar e modernizar o prédio da Pinacoteca, transformando-a num dos principais destinos culturais da capital paulista.

Idealizador do Museu Rodin Bahia, o artista plástico critica a condução do projeto. "Na Bahia, Rodin virou vendedor de acarajé", ironiza. Segundo o diretor-curador do Museu Afro-Brasil, as obras do escultor francês não foram bem expostas e a curadoria "avacalhou" Rodin. Emanoel abortou uma exposição individual no museu, depois de enfrentar funcionários do Estado por ele qualificados como "magarefes fantasiados de bons moços".

– Foram momentos muito desagradáveis daquele bando de incompetentes que cerca Sua Excelência incompetente também.

Ele defende:

– Quem sabe que se o Juca Ferreira, que é uma pessoa ética, voltando à Bahia, vira secretário de Cultura com a propriedade que lhe é peculiar.

Terra Magazine – Como você avalia as políticas públicas para a cultura, no Brasil? Houve algum avanço?
Emanoel Araújo – Olha a docidez… Doçura com acidez. Olha, meu caro, as coisas não são autóctones, elas formam um grande halo. Um país que não tem educação, não tem saúde, não pode ter cultura. Não é pela cultura que esse país ingressará em algum lugar nesse mundo. Na realidade, a fórmula usada por todos os países, de que a cultura é um patamar natural para entrar na hegemonia do mundo, aqui não serve. Eles não acreditam nisso. Não acreditam na educação, quanto mais na cultura.

E nem ligam a educação à cultura?
A cultura sofre, como sofrem todas as instituições. A cultura sofre mais porque é tida, assim, como uma coisa de diletante, de grã-fino, de homossexuais, de gays que não têm o que fazer e são culturebas (risos). Os culturebas excêntricos do Brasil. Então, esse culturebas são levados ao deboche, porque não é através disso que o Brasil vai se afirmar. Não é impondo seus criadores e suas criaturas que o Brasil vai chegar a algum lugar. Estranhamente, os artistas brasileiros são os menos conhecidos e os menos valorizados da América do Sul. No Chile, por exemplo, um artista como Roberto Matta vale muitos milhões de dólares. Ou melhor, sempre valeu muitos milhões de dólares. E outros artistas latino-americanos, da Argentina, da Venezuela, da Colômbia e até do Uruguai valem mais no mercado internacional do que a nossa pobre Tarsila do Amaral.

Há uma crise da gestão pública da cultura?
Creio que não. Por exemplo, só agora, na gestão do Serra, é que se criou as organizações sociais para administrar os museus do Estado. Uma batalha pendente de muitos anos e ainda, talvez, não totalmente resolvida. Contudo, esta foi a melhor forma para a administração das entidades culturais. Claro que isso se estende a São Paulo. Falta, de fato, uma política nacional agressiva para esse fim. Ainda não resolvida, mesmo tendo importantes ações do Ministério da Cultura. Mesmo assim, sente-se que, num País do tamanho que se tem, muitos Estados ainda sofrem pelo total abandono da cultura, do patrimônio e dos órgãos de preservação.

É um país do ressentimento?
É, do ressentimento. O sucesso faz muito mal ao brasileiro. O brasileiro não pode ver o sucesso do outro. É aquela coisa que Octávio Mangabeira dizia: "o baiano dá mil para o outro não ganhar cem".

E Mangabeira tem a imagem do coqueiro, que é ótima…
E também, qual símbolo seria pra Bahia? Um neguinho subindo no coqueiro e dez puxando pra baixo! (risos) Essa é a história. Não é só a Bahia. Pense no maior absurdo e o Brasil terá precedente. Sempre tem um precedente. Um precedente pra baixo. Houve até um tempo onde homens, pensadores da cultura, como Gustavo Capanema, Rodrigo de Mello Franco, José Mariano, Mário de Andrade e outros intelectuais brasileiros, estiveram à frente de um grande projeto cultural para o Brasil. É dessa lavra a construção do Palácio Capanema, antigo Ministério da Educação e Cultura, com arroubo de arquitetura moderna (no Rio de Janeiro), de Niemeyer, Lúcio Costa e Le Corbusier. Mas, também, é desse tempo o fracasso de Lúcio Costa quando diretor da Escola de Belas Artes e fez o salão de 1931. Era muito avançado para os conservadores daquele tempo. E assim é que vai o Brasil desde sempre, com avanços e recuos, talvez mais recuos do que avanços.

Dá pra lembrar também da demissão de Mário de Andrade no Departamento de Cultura de São Paulo. Ele teve que se mudar para o Rio.
É mesmo. Você vê: todo sujeito que pensa a modernidade e o avanço é ceifado no Brasil. Porque o Brasil tem que significar o fracasso. Isso é o que importa. Nós somos a República do fracasso. Não adianta. Não sei de onde vem essa lógica perversa. Alguns dizem que é da colonização, outros dizem que é da oligarquia, outros dizem que é da burguesia, outros dizem que é da esquerda, outros dizem que é da direita… E eu não sei do que é.

O golpe de 1964 desmontou um movimento cultural de vanguarda?
Por um lado, sim. Por outro lado, não. O golpe militar, de uma certa forma, cortou a questão da educação do Paulo Freire. Mas todos esses projetos eram embrionários, como os de Anísio Teixeira, até retomado por Darcy Ribeiro quando se construiu os muitos CIEPs. Você tem visto os CIEPs nas reportagens policiais da televisão? Sofrem de bala perdida, servem como esconderijo de droga, etc. etc. Em 1964, surgia uma juventude sequiosa de coisas e de fatos, mas que foi ceifada. Chico, Caetano, Gil, Opinião, Francisco de Assis, Capinam, Vianinha, Leon Hirszman, um monte de gente teve sua trajetória interrompida. Havia, portanto, em 1964, um projeto de País que foi interrompido e proposto um outro cheio de serviços para um classe média. E o povo, esquecido. Daí a proliferação das favelas, das inchaços das cidades, do aumento da pobreza e da miséria.

O que você enfrentou para desenvolver projetos hoje considerados inovadores, como o da Pinacoteca de São Paulo e o do Museu Afro-Brasil? Em Salvador, você dirigiu também o Museu de Arte da Bahia. O que você identifica em comum, de enfrentamento, em todos eles?
Nós temos o péssimo hábito de que as coisas acontecem sempre em nome de alguém e não de um processo continuado que seja abraçado conscientemente por todos, seja da direita ou da esquerda, branco ou preto, azul ou amarelo. Fui uma pessoa que, num dado momento, encontrei Antonio Carlos Magalhães e com ele foi possível renovar, restaurar e mudar o Museu de Arte da Bahia, que vivia achincalhado numa pequena casa do bairro de Nazaré. Muitas peças do seu acervo foram desviadas, até para o Museu de Petrópolis. Os quadros de Pancetti, que estavam expostos no palácio do governador, tinham desaparecido. Até o Museu de Sergipe recebeu uma grande tela do seu filho mais ilustre, mandado pelo secretário da Educação da época.

Anos depois, me vi na Pinacoteca com Adilson Monteiro Alves, Ricardo Ohtake e Marcos Mendonça. Começamos um projeto da sua reforma e foram fundamentais os recursos do ministro Francisco Weffort e do governador Mário Covas. Agora, o Museu Afro-Brasil, criado no final da gestão de Marta Suplicy, mas, por sorte, o governador José Serra o trouxe para a Secretaria Estadual de Cultura de São Paulo. São fatos com uma direção e um respaldo específicos. Isso não vale pra todo mundo. Isso não transbordou. Pelo contrário, teve ponta de ciúme, ponta de inveja de gente que se sentiu ameaçada por um neguinho baiano.

Havia essa conotação racial?
Claro. Absolutamente racista. Quando eu fui nomeado por Adilson Monteiro Alves, o jornal Estado de S. Paulo publicou: "Foi nomeado diretor da Pinacoteca Emanoel Alves (sic), em lugar da professora e doutora Maria Alice Milliet". Eu vivia em São Paulo tinha muito tempo, mas era como se eu estivesse chegando naquele momento. Muita gente chegou na Pinacoteca e me disse: "Mas, como um baiano vai dirigir a Pinacoteca?". Na época, o governador Fleury recebeu montes de pedidos para revogar a nomeação e até foi publicado um abaixo-assinado com a assinatura de muitas pessoas conhecidas e ditas amigas.

Havia o quê antes disso? Um parasitismo?
(imita vozes arrastadas) As coisas são assim… Letárgicas… Ai… Arma-se um altar… Ficavam lá se incensando uns aos outros e não faziam nada. Então, o Fleury recebeu um monte de queixas. Ele chamou Adilson Monteiro Alves e reclamou da nomeação. Adilson, por sua vez, pediu o apoio de todas as associações de negros de São Paulo e mais de 300 telegramas de apoio a minha nomeação foram dirigidos ao governador Fleury. Foi assim que eu recebi a grande loa da minha vida, o graaaaaaande mimo da Pinacoteca do Estado de São Paulo.

E qual era o estado da Pinacoteca?
Na segunda noite do começo da minha gestão, choveu, como sempre chove em São Paulo, de maneira absurda. No meio da noite, o vigilante me liga e avisa dos estragos das águas. Cheguei por volta de quinze minutos depois. Tudo estava inundado. O andar térreo parecia Veneza, a água era um espelho que refletia toda a arquitetura. Havia um pequeno muro de um palmo de tijolo, que isolava a reserva técnica. A desgraça poderia ter sido pior. Aí, eu fiquei pensando: "Este é o grande mimo que eu recebia sob protesto de muitos dos paulistanos?". Era mesmo esse mimo que serviu a todos que usaram o prédio da Pinacoteca? Que assistiram a sua derrocada, sua decadência, sua depredação, suas paredes violadas por pichações imbecis, seu mezanino que cortava as portas de pinho-de-riga e seu telhado apodrecido? E muitos deles achavam mesmo que era importante demais para esse pobre marquês!

O que você pensou quando viu a reação dessa mesma sociedade, cheia de elogios, no momento da entrega da nova Pinacoteca?
Eu? Vi aquele sorriso de calango… (risos) Vocês estão recebendo o que vocês não merecem, mas estão recebendo o trabalho de dez anos de um brasileiro que acreditava e acredita na cultura como fator de desenvolvimento humano, não só de São Paulo, mas do Brasil.

Recentemente, você teve um enfrentamento com Museu Rodin Bahia. Deveu-se também a problemas de gestão?
Sabe o que aconteceu? O secretário de Cultura da Bahia (Márcio Meirelles) me convidou para fazer uma exposição, à guisa de me prestar uma homenagem por ter idealizado o projeto do Museu Rodin, no dia em que as obras do escultor francês inauguravam definitivamente o Rodin na Bahia. Então, me esqueci de como as coisas são na Bahia e comecei a tratar dos trâmites para levar a minha exposição retrospectiva de 50 anos para aquele espaço. Tinha conseguido substanciais descontos de embalagem, transporte ida e volta, montagem, cenografia. Faltava, portanto, R$ 200 mil reais para custeio dos folders, catálogos, transporte de pessoal e iluminação. Aí começou a grande lenga-lenga de como pagar essa mixórdia para a exposição de um artista da minha envergadura e do meu prestígio nacional, voltando a sua terra natal. Foram momentos muito desagradáveis daquele bando de incompetentes que cerca Sua Excelência incompetente também.

Por fim, o resultado: não foi possível executar o projeto diante das prerrogativas para tal projeto. Lamentável a falta de brio e sensibilidade da coisa pública na Bahia. Nisso, ela se perdeu na mão desses incompetentes e incorretos sujeitos que até hoje lá estão. Assim, a cultura brasileira vive a reboque desses magarefes fantasiados de bons moços. Aliás, o Diário Oficial da Bahia publica sempre fatos estapafúrdios e exorbitantes verbas para exposições e remanejamentos de acervos de museus. De estarrecer. Quem sabe que se o Juca Ferreira, que é uma pessoa ética, voltando à Bahia, vira secretário de Cultura com a propriedade que lhe é peculiar.

Mas houve críticas suas à primeira exposição do museu Rodin, não? Quais foram?
Sim. Quando propus ao Jacques Villain a criação do Museu Rodin da Bahia, era com a intenção de transformar e, de uma certa forma, desengessar a arte baiana daqueles mesmos senões de sempre. Havia também no projeto uma parceria com a Fundação Coubertin, para levar jovens artistas da Bahia para a França e torná-los conhecedores do processo de fundição das obras escultóricas de muitos artistas antigos e contemporâneos da França. Havia também uma proposta de um museu educativo, voltado para a escultura brasileira, sua história, seus fundamentos, seus criadores. Mas dez anos se passaram sem que o antigo secretário resolvesse de fato sua infra-estrutura e seu funcionamento. Dez anos se passaram e os trâmites da vinda das obras, afinal, chegavam na época para sua inauguração.

Foi lamentável ver as obras originais em gesso do Rodin jogadas a reboque nos espaços da velha casa (Palacete Bernardo Marthins Catarino) sem o mínimo cuidado, sem o mínimo respeito às suas proporções e às suas instalações, sem o mínimo respeito museográfico ao grande mestre Rodin, que na Bahia virou vendedor de acarajé. Até uma sala suja de gesso, salpicado por todos os lados, do chão até o teto, à guisa de um atelier de um escultor. Ora, qualquer pessoa de bom senso sabe que o gesso não é matéria para se esculpir, porque ela é pastosa e não se levanta para o gesto escultórico. O gesso é a substância que fará permanecer a obra esculpida anteriormente em barro. Ele é o condutor da obra para cera perdida e, posteriormente, para a fundição. Portanto, o equívoco daquela sala é um desserviço. Enfim, conseguiram avacalhar com a grande escultura de um dos maiores escultores do mundo. Isso é pra dizer que Mangabeira tinha mesmo razão: pense num absurdo e a Bahia terá precedente.

O projeto Pinacoteca, como você idealizou, foi preservado?
O que falta às instituições é a sua definição tipológica. A tipologia da Pinacoteca é uma, a do Masp é outra… Agora, aqui no Brasil, se instituiu a chamada arte contemporânea como a idéia nacionalista do up to date. Só aqui, porque os museus do mundo continuam expondo seus acervos dentro do que, tipologicamente, se propõem. E ai de quem não estiver enquadrado dentro dos dogmas contemporâneos! Acabou, morreu, mataram para sempre os chamados "movimentos defasados" da arte brasileira. Tudo aqui agora é arte contemporânea. É lamentável, agora mesmo, ver a fachada do Museu de Arte de São Paulo, que faria sair do túmulo Lina Bo Bardi e o próprio (Pietro Maria) Bardi, coberta com uma plotagem decorativa de alguma proposta contemporânea. (risos) Outro dia mesmo, o jornal Estado de S. Paulo publicou o curador Ivo Mesquita de corpo inteiro, saindo da maquete da Pinacoteca do Estado, segundo idealizada pela Unicamp, com braços cruzados e seu sorriso de pura zombaria. Alguém disse alguma coisa? Não acredito que essa seja a postura para um curador de uma instituição dita centenária de São Paulo.

Aos 70 anos, sua tolerância está próxima de zero?
Hein? A minha tolerância é zero! (gargalhadas) Zero nos setenta.

Fonte: Terra

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