“Eu, por exemplo, entre esquerda e direita, continuo sendo preta” (CARNEIRO, “Caros Amigos” n° 35, fevereiro de 2000).
2020 descortinou as desigualdades sociais brasileiras, revelando nefasta herança do sistema escravocrata, maculando nossa atual conjuntura e desafiando a cultura de Direitos Humanos, em plena crise sanitária. Evidenciou a relevância do Estado no que tange à formação e implementação das políticas públicas e políticas afirmativas, cujo conceito é dado por Gomes:
“Os objetivos das ações afirmativas são: induzir transformações de ordem cultural, pedagógica e psicológica, visando a tirar do imaginário coletivo a idéia de supremacia racial versus subordinação racial e/ou de gênero; coibir a discriminação do presente; eliminar os efeitos persistentes (psicológicos, culturais e comportamentais) da discriminação do passado, que tendem a se perpetuar e que se revelam na discriminação estrutural; implantar a diversidade e ampliar a representatividade dos grupos minoritários nos diversos setores.” (Gomes, 2001)
A pandemia em paralelo à ascensão de governos fascistas, demonstram de forma escancarada o projeto político hegemônico e heteronormativo legitimado pelo colonialismo.
A população negra sempre esteve em situação de maior vulnerabilidade social, como decorrência do sistema escravagista e da falsa abolição. Dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) demonstram que a renda da população negra era menor e a participação nos postos informais era maior em comparação aos brancos. Com a crise sanitária, as diferenças se agravaram. Os principais indicadores do Ministério da Economia e do IBGE apontam que pretos e pardos, que representam 56,8% dos brasileiros, são os mais impactados pelo desemprego e pela precarização laboral.
Não bastasse a pandemia e a perda de Direitos Humanos, a população negra ainda tem de lidar com a necropolítica que impera nesse País, há mais de 500 anos. O termo necropolítica foi cunhado pelo filósofo camaronês Achille Mbembe em 2003, que escreveu um ensaio questionando os limites da soberania quando o Estado escolhe quem deve viver e quem deve morrer.
Reinauguraram-se políticas anti-povo para defender e manter privilégios da elite branca. Segundo a ONG Oxfam, de acordo com dados do ranking de bilionários da revista Forbes, a fortuna dos 42 bilionários brasileiros cresceram US$ 34 bilhões no período da pandemia; o patrimônio líquido dos mais ricos subiu de US$ 123,1 bilhões em março para US$ 157,1 bilhões em julho deste ano, “enquanto se estima que até 52 milhões de pessoas se tornarão pobres e 40 milhões perderão seus empregos este ano.” (Oxfam, 2020)
Destarte, é ululante a necessidade de revisarmos a estrutura desigual desse País, assim como construirmos um novo projeto de sociedade. Projeto esse que tem o dever de enegrecer as instâncias de decisão, públicas e privadas.
A velocidade com que o coronavírus se propagou pelo mundo e os efeitos catastróficos sob a população negra, reafirmam o que os movimentos negros ecoam há anos: o capitalismo e os atuais governos autoritários, conservadores e falsos moralistas não querem perder seus privilégios, tampouco asseguram os direitos positivados na Constituição de 1988 e em outros tratados internacionais do qual o Brasil é signatário. Tais governos são majoritariamente compostos por homens brancos e detentores de capital. A falta de diversidade nas instâncias de decisão é fator determinante para que as minorias continuem sendo excluídas da formulação e implementação de políticas públicas.
O negacionismo, seguido pela falta de investimento nas políticas públicas que estão sendo deslegitimadas pelo atual (DES)governo, de fato é um ato genocida e nessa conjuntura sabemos muito bem quem sofrerá os ônus. Não foi por acaso, que a primeira vítima da covid-19 foi uma empregada doméstica, de 63 anos, que foi a óbito no dia 16 de março no Rio de Janeiro. A vítima se contaminou após sua patroa voltar de uma viagem da Itália, então epicentro da epidemia na Europa.
Mesmo diante da crise sanitária o racismo não dá trégua, corpos negros estão expostos diariamente a todos os tipos de violência, seja a caminho do trabalho informal, seja nos logradouros públicos, ou até mesmo dentro de sua própria casa; como ocorreu em maio a morte de João Pedro Mattos, junto com outras vidas ceifadas de forma prematura. Infelizmente são corpos que entram para estatísticas da política de extermínio do Estado brasileiro.
A respeito da desigualdade racial, Barreto assevera:
Com uma população formada por maioria autodeclarada negra – 46,7% pardos e 8,2% pretos -, o Brasil possui dados oficiais que evidenciam o abismo racial no qual vivemos: a taxa de analfabetismo entre negros é maior que o dobro da taxa entre brancos (negros: 9,9%; brancos: 4,4%); o rendimento médio dos trabalhadores negros é inferior ao dos brancos (pretos: R$ 1.570,00; pardos: R$ 1.606,00; brancos: R$ 2.814,00); a maioria das crianças em situação de trabalho infantil é negra (63,8% das crianças de 5 a 7 anos encontradas trabalhando em 2016 eram negras); o desemprego entre brancos é menor (pardos: 14,5%; pretos: 13,6%; brancos: 9,5%); em meio a muitos outros números do IBGE (2018) nesse sentido. (BARRETO, 2020)
Enquanto esse País continuar excluindo mais de 50% da população das instâncias de decisão, a democracia continuará sendo uma falácia alimentada na mente da consciência humana, mesma consciência que forja que vivemos em uma democracia racial.
É importante refletirmos que a democracia não pode ser restrita a uma pequena parcela da população que goza de todos os direitos, que se enriquecem às custas dos oprimidos. Um país comprometido com a democracia, promove a cidadania com políticas de redistribuição de renda, trabalho com remuneração adequada, saúde de qualidade, terra, habitação, educação, cultura, mobilidade, lazer, assistência social e participação da população negra em espaços decisórios de poder.
“Eles combinaram de nos matar. E nós combinamos de não morrer.” Conceição Evaristo.
Sibele Gabriela dos Santos é assistente social, graduada em Serviço Social pela Unesp, Pós-graduada Políticas Públicas-SUAS, MBA em Administração Pública e Gerência de Cidades, curso profissional em Neurociência pela PUCRS, Especialista em Africanidades e Cultura Afro-Brasileira, Mestranda em Planejamento e Análise de Políticas Públicas na Unesp, Pós-graduanda em Direitos Humanos, Responsabilidade Social e Cidadania Global pela PUCRS, cursando MBA em Gestão de Projetos pela USP, graduanda em Formação Pedagógica para Docentes pelo IFSP, Mestranda em Educação pela USP e Líder do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco pelo Fundo Baobá
Referências bibliográficas
BARRETO, Luiz de Freitas Souza. Quanto vale a vida de uma pessoa negra? Portal Geledés: 2020. Disponível em: < https://www.geledes.org.br/quanto-vale-a-vida-de-uma-pessoa-negra/ >. Acesso em 07/12/2020.
GOMES, J. B. B. Ação afirmativa e princípio constitucional da igualdade: o direito como instrumento de transformação social. Rio de Janeiro/RJ: Renovar, 2001.
** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.