Entenda como assassinato de jovem negro há 10 anos resultou no Black Lives Matter

Trayvon Martin foi morto a tiros, aos 17 anos, por um vigilante comunitário, cuja absolvição detonou uma onda de protestos por justiça racial nos EUA

O assassinato a tiros do adolescente negro ​Trayvon Martin pelo vigilante comunitário branco e hispânico George Zimmerman, ocorrido há exatos 10 anos nos Estados Unidos, lançou as bases para uma nova onda de ativismo político negro a partir de uma hashtag tão simples quanto impactante: Black Lives Matter (BLM), ou vidas negras importam.

O movimento por vidas negras sacudiu o debate sobre racismo e violência armada no país, evidenciou os estigmas criminalizantes que pesavam (e ainda pesam) sobre a identidade de jovens negros e mobilizou milhares de pessoas nas redes sociais e nas ruas em torno de justiça racial e transformação social.

Como pivô do BLM, o assassinato de Martin é também gênese de mudanças importantes nas paisagens política, social e cultural dos EUA. Colocou em xeque o racismo institucional do sistema de Justiça. E engajou, de parte a parte, figuras públicas de dentro e de fora da política institucional americana, aumentando a visibilidade tanto de grupos antirracistas quanto de grupos supremacistas brancos de extrema-direita.

Entre ações e reações, a série de eventos iniciada uma década atrás contribuíram até mesmo para a eleição do ex-presidente Donald Trump em 2016, numa campanha marcada por conflitos entre manifestantes que gritavam “Black Lives Matter” e aqueles que reclamavam “All Lives Matter” (todas as vidas importam, em inglês).

Tudo começou na noite do dia 26 de fevereiro de 2012. Martin, então com 17 anos, estava na casa da namorada de seu pai, num condomínio fechado em Sanford, na Flórida. Saiu para comprar balas e nunca mais voltou.

Ele caminhava pelas ruas do condomínio, vestindo moletom com capuz , quando percebeu que seus passos eram seguidos por Zimmerman, que estava num carro, armado com uma pistola 9 milímetros, e que integrava um sistema de vigilância comunitária do bairro.

Zimmerman ligou para a polícia para informar a presença de um suspeito. “Houve alguns arrombamentos recentemente e agora há outro cara suspeito na vizinhança”, disse ele ao atendente, que pediu para identificar se o rapaz era negro. O vigilante confirmou e disse: “Parece que ele está disposto a aprontar alguma coisa”.

Zimmerman ignorou o pedido do policial para que parasse de perseguir o rapaz. Alguns minutos depois, vizinhos ligaram 911 ao ouvir gritos na rua e, depois, um tiro —o único disparado na cena do crime, que atingiu Martin em cheio no peito. Após prestar depoimento, Zimmerman foi solto.

Um mês depois, milhares de pessoas se reuniram na Union Square, em Nova York, para pedir justiça pela morte do jovem negro. Havia 40 anos que os EUA não assistiam a tamanha mobilização em torno da questão racial.

Entre os manifestantes —boa parte dos quais usava capuz, como Martin ao ser morto—​ estavam estrelas pop como Beyoncé e Jay Z, rapper que anos depois financiou uma série sobre o caso, sob consultoria da própria família do jovem, intitulada “Rest in Power” (Descanse em poder, em inglês, um trocadilho com a expressão “rest in peace”, descanse em paz).

“Nosso filho não estava cometendo nenhum crime. Nosso filho é o seu filho. Isso não é sobre negros e brancos, isso é sobre certo e errado”, discursou Sybrina Fulton, mãe de Trayvon, durante os protestos. E o então presidente Barack Obama expressou suas condolências à família: “Se eu tivesse um filho, ele se pareceria com Trayvon”. Os protestos pressionaram as autoridades a investigarem o caso, que foi parar nos tribunais.

Criadas as bases de uma nova mobilização, foi a absolvição de Zimmerman das acusações de assassinato em segundo grau e homicídio culposo, após um júri de 16 horas no dia 13 de julho de 2013, que lançou a faísca de um movimento por justiça racial articulado via internet.

O veredito gerou protestos em várias partes do país e incitou a ativista Alicia Garza, de Oakland, Califórnia, a escrever uma “Carta de amor para as pessoas negras” em seu perfil no Facebook. O texto termina com um triste “nossas vidas importam”.

A postagem viralizou. E a ativista Patricia Cullors, amiga de Garza que atuava no campo do abolicionismo penal, começou a marcar todas as menções ao caso Trayvon Martin com a hashtag #blacklivesmatter.

Na semana seguinte, outra ativista ligada à dupla, Opal Tometi, diretora de uma ONG de direitos de imigrantes de Nova York, comprou o domínio www.blacklivesmatter.com para iniciar uma campanha nacional, na esteira de outras articulações online importantes como Occupy Wall Street e a Primavera Árabe.

O grupo passou a organizar protestos a cada assassinato de uma pessoa negra por policiais ou vigilantes armados, fomentando a criação de células locais do BLM. E foram muitas dessas mortes em 2013 e 2014. Jonathan Ferrel, 24, em Charlotte, na Carolina do Norte. Renisha McBride, 19, em Dearbon Heights, Michigan. Dontre Hamilton, 31, em Milwalkee. Eric Garner, 43, em Nova York. John Crawford, 22, em Ohio. Michael Brown, 18, em Ferguson, Missouri —caso que gerou dias de protestos e incêndios, acompanhados globalmente.

Anos depois, o assassinato de George Floyd extrapolaria as fronteiras americanas, gerando manifestações antirracistas em várias partes do mundo.

“Vivíamos um período em que morte de jovens negros havia se tornado algo tão banal que era preciso sacudir as pessoas e lembrá-las: ‘Ei, nossas vidas importam!’. Por mais óbvio que isso seja”, disse à Folha Opal Tometi. “Nossos movimentos agiram de maneira tão efetiva que as coisas começaram a mudar, e os conservadores e a extrema-direita se desesperaram, e elegeram este tipo [Donald Trump]”.

Durante a campanha de Donald Trump, Zimmerman voltou à cena. Ostentando a bandeira dos estados confederados (símbolo dos estados contrários à abolição da escravidão nos EUA) como imagem de seu perfil em redes sociais, o algoz de Trayvon Martin anunciou a venda de sua pistola 9mm num site de armas americano.

O anúncio especificava que a arma havia sido usada na “legítima defesa” contra Trayvon Martin. “É uma oportunidade de adquirir um pedaço da história americana”, anunciava. “E os recursos obtidos serão usados na luta contra a violência do BLM contra agentes de segurança […] e contra a retórica anti-armas de Hillary Clinton.”

Além da reação conservadora que se espalhou pelo país, da qual o anúncio de Zimmerman é um ícone, o assassinato de Martin e o movimento que ele deflagrou mudaram o modo como a triste recorrência de mortes violentas de pessoas negras é vista.

Se, em 2013, a juíza do tribunal que absolveu George Zimmerman não aceitou nem sequer a menção da questão racial nos autos, na semana passada a Justiça condenou por crime de ódio três homens brancos que perseguiram e mataram o jovem negro Ahmaud Arbery, que praticava corrida em um bairro de maioria branca. O júri concluiu que Arbery foi morto por ser negro.

O percurso até esse entendimento passa também pela morte de Trayvon Martin.

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