Há tempos venho ensaiando falar de algo que muito me incomoda, uma das estratégias mais recorrentes do racismo em suas variadas dimensões, o silenciamento de pessoas negras como meio de deslegitimar e massacrar subjetivamente aqueles (as) que ousam ter opiniões e práticas divergentes do micro poder hegemônico estabelecido em dado espaço (leia- se também, poder da branquitude).
Quantos (as) de nós em seus ambientes de trabalho, de estudo, de lazer, tivemos ideias insistemente rejeitadas e recepcionadas pelo grupo marcadamente dominante com descaso, desprezo ou repulsa? Para exemplificar, imaginemos que o grupo precise tomar uma decisão acerca da cor azul ou da cor roxa, sem implicações posteriores sobre uma escolha totalmente casual e você, pessoa negra, divergindo de uma pessoa branca opta pela cor roxa. Percebam que é algo extremamente simples, mas que as atitudes e os argumentos do grupo podem revelar muito acerca do poder circundante e do sistema de dominação estabelecido.
“ Melhor azul, é mais tranquilo”.
“Azul porque faz mais sentido”.
“ Azul é mais coerente, mais bonito”.
Exemplos banais que podem muito bem traduzir o cotidiano de pessoas negras em espaços de consulta e tomada de decisão. E a linguagem, através também dos estudos sobre o discurso, apresenta-se como fator preponderante para desvelar os ocultamentos realizados por gestos aparentemente “ingênuos” no que se refere às frequentes negativas, discordâncias e objeções realizadas por grupos forjados nas engrenagens da branquitude e do racismo.
Maria Aparecida Silva Bento em sua tese de doutorado intitulada de “Pactos Narcísicos no Racismo: Branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público” pontua a convergência de sujeitos brancos em face da defesa de seus privilégios, bem como relata que ao se afirmar em posição de igualdade com os brancos, pessoas negras são tomadas como agressivas, pois o estilo subserviente, embora criticado, ainda é o mais aceito, não sendo entendido como competição ou concorrência ao espaço do branco (BENTO, 2002, p. 134). Por sua vez elucida que “Branquitude pode ser vista como territorialidade e como lugar de privilégio e poder não compartilhável” (BENTO, 2002, p. 134).
Ou seja, desde que não pense por si mesmo, não externe opiniões contrárias, não compartilhe espaço, não respire…”Você será tolerado!” (com ressalvas). “Talvez seja exposto, mas apenas para fins recreativos!”. “Linchamentos simbólicos apenas para os que teimam em professar seus pontos de vista!”.
A autora evidencia ainda que o (a) negro (a) que ascende teve estereótipos transformados ao longo do tempo e que na contemporaneidade aquele (a) que ocupa determinados espaços de prestígio, são considerados (as) agressivos (as), arrogantes e indivíduos que ultrapassam limites dentro das organizações (BENTO, 2002, p. 59).
Já o professor e pesquisador Lourenço Cardoso, no artigo “O Branco-Objeto: o movimento negro situando a branquitude”, ao se referir ao lugar ocupado pela branquitude na sociedade contemporânea, expressa que continua significando poder e que a identidade racial branca permanece ocupando lugar de privilégios simbólicos, subjetivos e materiais (CARDOSO, 2011, p. 81).
Cardoso (2011) retoma os estudos de Bento (2002) para salientar que:
A autora, com o mesmo conceito, sustenta a tese de que a branquitude traz vantagens que se acumulam e reproduzem as desigualdades raciais. Em outras palavras, para compreender melhor as desigualdades raciais em nossa sociedade, seria importante entender o pacto entre os brancos, ou seja, seria necessário refletir sobre os preconceitos e práticas racistas que ocorrem “por interesse”, porque tanto a prática racista oriunda da ignorância (leia-se preconceito) quanto por interesse resultam na manutenção dos privilégios da branquitude. Mesmo porque a desigualdade racial entre negro e branco não ocorre apenas pelo preconceito da pessoa ou grupo branco, mas também pelo interesse da pessoa e grupo branco de proteger e preservar suas vantagens raciais. Se o pacto narcísico ocorre também pelo interesse dos brancos em preservarem seus privilégios étnicos-raciais, obviamente podemos considerar que o branco ao se compactuar se enxerga enquanto pessoa e grupo racializado (CARDOSO, 2011, p. 89).
Neste sentido, a presença em certos espaços notórios pode ser compreendida como terreno austero para pessoas negras, afinal, dependendo do grupo e seus interesses, mesmo que se coloque de modo sensato e coerente, “importa” mais o modo com que sujeitos constituídos na branquitude recepcionam o que lhe é apresentado. E não obstante, aguarda-se o veredicto do grupo, quase sempre conduzido por alguém com maior expressividade e “prestígio”, afinal, o papel de juiz não lhe foi delegado à toa. Cabe a este indivíduo, situar o júri, digo grupo, e a pessoa negra que lhe ousa apresentar algo. A questão em voga não é sobre a pertinência da proposta, mas sobre posicionamento e a autoria … então, novamente, o fantasma da competição, o medo branco aparecem.
E qual nosso papel ante a racialização de nossa participação social?
As contranarrativas felizmente vem ocupando mais espaços, tanto nas mídias alternativas, quanto nos meios acadêmicos, nos movimentos e espaços públicos. Não podemos dizer que há equidade, porém é possível afirmar que diversos grupos se organizam para desmistificar a harmonia das relações raciais, para recontar as histórias por outros ângulos, quando não outras histórias, para descolonizar a realidade e pautar outras formas de ser, de resistir e lutar!
Cardoso (2011, p. 91) destaca a papel do movimento negro, tanto em relação ao questionamento do lugar do branco (branquitude), quanto da luta pelo reconhecimento do negro como pessoa, como constituinte da humanidade, ampliando assim o que significa ser humano.
(…) Se por um lado, o movimento negro – movimento social dos oprimidos –, ao assumir sua identidade cultural como uma forma de afirmação na luta contra a opressão, ascenderia à universalidade de condição humana, deixando de ser inumana, ou humano numa hierarquia inferior, por outro lado, o branco terá maior dificuldade de se identificar como branco. A queda do branco do lugar de universalidade onde se encontrava resultará, primeiramente, em uma postura defensiva, pois qualquer identificação racial, étnica e coletiva seria uma degradação do seu estatuto anterior, enquanto para o negro ocorre justamente o contrário (CARDOSO, 2011, p. 91).
No documentário “Eu Não Sou Seu Negro” dirigido por Raoul Peck e lançado em 2017, sobre os últimos escritos[1] produzidos por James Baldwin, que narra as histórias de Medgar Evers, Martin Luther King e Malcolm X na luta pelos direitos civis de negros estadunidenses, o autor traz à cena a tônica da humanidade em seu contexto universal, ou seja, também incluindo pessoas negras: “I am a man”[2] em referência ao fato de sujeitos negros também serem humanos, serem cidadãos e cidadãs de direitos.
Não ser o negro de ninguém significa sair do papel de subserviência que a branquitude espera de nós em diferentes espaços que ocupamos e papéis que exercemos. Somos seres humanos que vivem num mundo racializado, que invisibiliza o legado cultural de povos não brancos e que se estrutura em torno de privilégios e desigualdades, gerando políticas para a morte, do corpo, da mente e do espiríto.
Há muito, muito tempo mesmo, constata-se a necessidade de expor o mal estar que nos acomete quando vítimas do silenciamento provocado pelo racismo e quando espectadores do pacto narcísico da branquitude. Há muito tempo não estamos pedindo permissão, não estamos pedindo misericórdia … há muito a branquitude vem sendo desmascarada, o mito desmentido e a ideia de humano universal que só contempla gente branca exposta, pois que se busque meios justos de nos relacionarmos e que haja espaço e dignidade para todos e todas, porque um povo que resiste e se reinventa a tanto tempo não está aqui por acaso, ou sorte…somos sementes e parte de um todo sagrado.
REFERÊNCIAS
BENTO, Maria Aparecida da Silva. Pactos narcísicos no racismo: Branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público. (Tese de doutorado), São Paulo: Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade, 2002. Disponível em:<https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47131/tde-18062019-181514/publico/bento_do_2002.pdf>. Acesso em: 14 de jun. de 2020.
CARDOSO, Lourenço. O Branco-Objeto: o movimento negro situando a branquitude. In. Instrumento: R. Est. Pesq. Educ. Juiz de Fora, v. 13, n. 1, jan.-jun., 2011. Disponível em:<https://periodicos.ufjf.br/index.php/revistainstrumento/article/view/18706>. Acesso em: 14 de jun. de 2020.
EU Não Sou Seu Negro (I Am Not Your Negro). Direção de Raoul Peck. França, Estados Unidos, Bélgica e Suíça: Imovision, 2017. 1 DVD (94 min.).
Sobre a autora
*Daniela é professora adjunta de língua portuguesa da SME-Campinas, mãe e estudante de pós-graduação da Faculdade de Educação da Unicamp.
[1] Ver ‘Eu Não Sou Seu Negro’ é um documentário brilhante sobre o livro nunca terminado de James Baldwin. Disponível em:< https://www.vice.com/pt_br/article/mgxv88/eu-nao-sou-seu-negro-documentario-livro-james-baldwin> Acesso em: 14 de jun. de 2017
[2] Eu sou um homem, condizente com a luta pelos direitos civis de pessoas negras estadunidenses.