O quarto de empregada e a morte de Miguel

No dia 02 de junho de 2020 ficamos todos em choque com a notícia da morte de uma criança negra de cinco anos que, após ser deixada sozinha no elevador de um prédio de luxo em Recife pela patroa de sua mãe, caiu do nono andar. Miguel era uma criança negra, filho de Mirtes, uma empregada doméstica que foi obrigada a continuar trabalhando durante a pandemia de Covid-19. A patroa de Mirtes chama-se Sari Corte Real e é esposa de Sergio Hacker, prefeito de Tamandaré, um município do interior de Pernambuco. Apesar disso, aparentemente a família reside na capital do estado, localizada cerca de 104 km da cidade de Tamandaré, no condomínio de luxo Píer Maurício de Nassau, que é um símbolo da especulação imobiliária, na capital pernambucana. Interessante notar que tanto o sobrenome da patroa quanto o nome do edifício remetem ao período colonial do nosso país. 

Ao mesmo tempo que esse caso nos causa revolta, ele revela a verdadeira face da elite branca brasileira: do alto de seus luxuosos apartamentos ou de suas mansões ela pouco se importa com a vida daqueles que cuidam da sua e, mais ainda, se negam a virar a página de um passado colonial e escravagista relativamente recente. Embora tenham-se passados 132 anos da abolição da escravatura no Brasil sem nenhuma política social de reparação ou suporte ao povo preto, muito ainda precisa ser feito para que isto efetivamente se torne uma realidade. Para pensar essas questões, fui convidado pela equipe do Grupo de Estudos Corpo, Discurso e Território, da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia, para participar de uma live no dia 09 de junho pelo Instagram. Minha interlocutora foi Gabriela Leandro Pereira, coordenadora do grupo e uma das poucas professoras negras da referida faculdade. 

O título da live, que posteriormente foi disponibilizada como podcast[2], foi o mesmo deste texto, pois, assim como o quarto de empregada, a morte de Miguel mostra mais uma vez o desvalor que é atribuído às vidas pretas no Brasil. Digo mais uma vez porque a morte de uma criança preta em uma sociedade estruturada pelo racismo e pelo derramamento de sangue do povo preto não é um episódio isolado. O contexto social em que isto aconteceu também não é incomum, já que famílias como a de Sari Corte Real não costumam elas mesmas fazer suas atividades domésticas. Por isso, todos os dias muitas mulheres (e homens) saem de suas casas, geralmente das periferias, para trabalhar nas residências da elite brasileira, onde cuidam da casa, preparam as refeições de seus patrões, cuidam das crianças, entre tantos outros afazeres.

Sendo o racismo estrutural no nosso país, ele se expressa das mais distintas maneiras e nas mais diferentes dimensões de nossa sociedade. Não seria diferente no tocante à forma como nossas cidades se estruturam, tampouco na produção da arquitetura residencial dessa elite. Aqui reside nosso maior interesse de discussão neste texto. Que lugar é destinado às trabalhadoras domésticas na arquitetura das casas daqueles que as contratam? Como o racismo estrutura as relações entre patrões e empregadas? Como o racismo estrutura as cidades onde vivem patrões e empregadas domésticas? Queremos aqui discutir essas questões a partir da morte de Miguel, a partir de uma perspectiva mais abrangente que nos ajude a compreender diversas questões que atravessam esta situação. 

Mirtes e tantas outras mulheres que exercem o trabalho doméstico teve seus direitos trabalhistas garantidos apenas em 2015, com a aprovação da Lei Complementar nº 150, de 1º de junho de 2015[3]. De acordo com as pesquisadoras Marta Rodriguez de Assis Machado e Márcia Lima, cerca de 6% das pessoas ocupadas no país realizam trabalho doméstico, 60% dessas pessoas possuem apenas o ensino fundamental incompleto, 61,6% delas são negras e 94,4% são mulheres[4]. Portanto, o trabalho doméstico é predominantemente exercido por pessoas negras e mulheres. 

É difícil de acreditar, mas em pleno século XXI houve quem se levantasse contra a Lei Complementar nº 150/ 2015, logo contra a garantia de direitos trabalhistas ou mesmo que não considerassem as domésticas como trabalhadoras igualmente merecedoras dos mesmos. O ranço escravocrata que está enraizado na mentalidade colonial da elite brasileira recusa-se a desaparecer. É essa mentalidade que obriga empregadas domésticas a continuarem trabalhando em plena pandemia de Covid-19, pondo a si e a sua família em risco de infecção. A isto a historiadora e professora da UFRB Luciana Cruz Britto chamou de “delírios escravistas coloniais da sociedade brasileira”[5], revelando seu desprezo em relação à vida de seus empregados. Vale ressaltar que após seus patrões contraírem Covid-19, Mirtes e seu filho Miguel também foram infectados, tendo sintomas leves[6].  

Mirtes precisava se deslocar diariamente de um bairro periférico até a casa de seus patrões, no Centro da cidade. Esse movimento é feito todos os dias por muitos trabalhadores negros das periferias urbanas das cidades brasileiras, cujas estruturas também são expressões do racismo que estrutura nosso país. Nas grandes cidades brasileiras, onde as desigualdades costumam ser mais acirradas, as diferenças entre bairros centrais e/ou nobres e as periferias são inúmeras. Centros culturais, museus, galerias de arte e outros equipamentos culturais tendem a se localizar nas áreas centrais e bairros valorizados, onde também há o predomínio de uma população branca e de renda mais alta. Já as periferias, onde vive boa parte da população negra, apresentam uma ausência não só de equipamentos culturais, mas também de infraestrutura urbana básica[7]. É claro que esses poucos exemplos não esgotam as diferenças entre bairros marcados por diferenças socioeconômicas e raciais e profundas desigualdades, mas revelam a atenção que é dada a cada área pelo poder público.

Se a (re)produção do espaço urbano é marcada pelo racismo, a produção de arquitetura residencial das classes média e alta não é diferente. Nas fazendas do período escravagista havia moradias distintas para senhores e pessoas escravizadas. Os brancos, donos das fazendas moravam nas “casas grandes”, edificações imponentes, grandes e que poderiam acomodar seus proprietários da melhor forma. Por outro lado, os negros e negras que estavam sob o regime da escravidão dormiam nas “senzalas”, que eram edificações precárias, sem qualquer preocupação com o conforto e a salubridade dessas pessoas, afinal sua humanidade lhes era negada[8]. O historiador e professor da USP Rafael de Bivar Marquese explica que nas casas grandes o pavimento inferior era destinado às dependências de serviço, enquanto no andar superior ficavam os cômodos dos senhores[9]. Isto evidencia as relações de poder existentes também presentes na arquitetura das residências. 

Mesmo após 130 anos da abolição da escravatura, a elite brasileira não parece querer virar a página. Isto pode ser observado pela existência (e exigência) do quarto de empregada – quarto de serviço ou dependência, como também é chamado, nos imóveis das classes mais abastadas. Assim como no Edifício Píer Maurício de Nassau, via de regra esse cômodo localiza-se nos fundos da casa ou apartamento, após a cozinha, na área de serviço. O quarto de empregada também costuma ser muito pequeno, suficiente apenas para uma cama de solteiro e, quando muito, uma cômoda ou pequeno guarda-roupas (Figura 1). A dimensão muito reduzida desse cômodo independe do tamanho do imóvel, ou seja, mesmo em casas e apartamentos muito grandes, o quarto de empregada costuma ser minúsculo[10]. A preocupação com a qualidade dos acabamentos nessa área da casa também não é o mesmo que se tem com as áreas “sociais”, ou melhor dizendo, com outros cômodos de maior uso dos moradores (quartos, salas, varandas etc.). 

 

Figura 1: Planta baixa de apartamentos no Edifício Píer Maurício de Nassau, Recife-PE[11]

A disposição do quarto de empregada em relação aos demais espaços da casa tem a ver não com o programa de necessidades, mas com as relações de poder que se dão nesse espaço doméstico entre os patrões e as empregadas. Considerando que uma empregada durma no serviço, o que justifica seu quarto ser um cubículo e localizar-se ao lado da área de serviço, se não lhe mostrar o seu lugar nessa casa? Cabe ressaltar também que é frequente a existência de um “elevador de serviço”, de modo a evitar que os funcionários do prédio utilizem o chamado “elevador social”. Mais uma vez, cabe aqui questionar o porquê de tal segregação se não for para demonstrar que as funcionárias não merecem utilizar os mesmos espaços de seus patrões. 

Edite Galote Carranza explica que a inclusão do elevador de serviço nos apartamentos paulistanos, no começo do século XX, teve o objetivo de atrair compradores da classe média que cobiçavam a casa burguesa. Segundo Carranza, “Com o intuito de reproduzir o acesso de serviço, que nas casas era feito pelo quintal, surgiu o acesso de serviço com escada e elevador próprio.  A sociedade aceitava e adotava francamente a separação social, nela incluindo um comportamento racista e discriminatório de etnias.”[12] Muitas empregadas domésticas e outros funcionários nesse contexto no Brasil são pessoas negras, então essa arquitetura residencial nos lembra que a escravidão não foi há tanto tempo assim e essa mentalidade colonial e escravagista continua a influenciar na configuração e nas relações sociais. 

Esse aspecto também coloca um questionamento ético do campo da arquitetura e na atuação dos arquitetos. A arquitetura não é apenas produzida de acordo com as demandas da sociedade, ela pode e deve também ser usada para questionar e propor mudanças nesta mesma sociedade. Um fato que chama atenção é o ressurgimento do quarto de empregada nos imóveis residenciais recentes em Portugal para atender à demanda dos brasileiros que emigraram para lá nos últimos anos.[13] Neste caso, a arquitetura está contribuindo para trazer de volta algo que estava em desuso nesse país desde os anos 1970. Contudo, não é desse tipo de mudança que me refiro, mas de um esforço no sentido de superar desigualdades e assimetrias sociais e urbanas. 

Se o mercado imobiliário está preocupado apenas com a venda de imóveis, como os arquitetos se inserem nessa questão? Não são apenas certos compradores que querem ter uma dependência em seu imóvel, nas escolas de arquitetura e urbanismo ainda há professores de projeto que exigem que os estudantes incluam o quarto de empregada e o elevador de serviço em seus projetos residenciais. Se do ponto de vista comercial a existência desse cômodo na configuração descrita acima não parece desqualificar um projeto arquitetônico pelo comprador, do ponto de vista ético isto é extremamente reprovável. É importante lembrar que as escolas de arquitetura são historicamente elitistas, costumam ter um quadro docente predominantemente branco, como ainda é na Faculdade de Arquitetura da UFBA, uma universidade pública em Salvador – cidade mais negra fora da África – e que, no caso desta faculdade, apenas recentemente a discussão sobre questões raciais e étnicas na arquitetura e no urbanismo tem sido objeto de discussão. 

A reflexão sobre essa questão cabe aos arquitetos, mas não apenas. É urgente que todos nós pensemos sobre a manutenção e/ou atualização dessa mentalidade colonial e escravocrata nas mais diversas esferas da sociedade. No que se refere à arquitetura e ao urbanismo, é preciso refletir sobre o ensino de projeto, bem como o arcabouço teórico que é mobilizado nas faculdades. Então, cabe a arquitetos, professores e estudantes questionarem em sua prática esse padrão perverso que perpetua lugares de subalternidade nos projetos de arquitetura e materializa relações de hierarquia e poder que deveriam ter sido superadas há muito tempo. Essa reflexão só é possível pelo reconhecimento de como a arquitetura tem contribuído para a manutenção do racismo e da segregação a partir desse tipo de projeto, por exemplo, e pelo entendimento deste problema em sua perspectiva mais ampla e em toda a sua complexidade. 

A existência do quarto de empregada nas casas da elite e o contexto da morte de Miguel fazem parte de um mesmo problema: a desvalorização da vida da população negra e dos pobres que construíram esse país com seu suor e seu sangue. Portanto, repensar a produção da arquitetura é uma questão incontornável dentre tantas outras para a superação do fantasma colonial e escravocrata que se arrastou até 2020. Essa é uma tarefa de todos nós e deve ser enfrentada nas mais diversas esferas da nossa sociedade. 


[1] – Urbanista (UNEB), mestre e doutor em Arquitetura e Urbanismo (UFBA). Foi professor na Faculdade de Arquitetura da UFBA e nos cursos de arquitetura e urbanismo da UniRuy e UNEF e atualmente é urbanista do Ministério Público do Estado da Bahia (MPBA). Tem interesse nas relações entre espaço urbano, sexualidade, raça e gênero.

[2] – Cf.: Podcast Corpo, Discurso e Território E#11: O quarto de empregada e a morte de Miguel. Disponível em: <https://medium.com/@gcorpo.discurso.territorio/o-quarto-de-empregada-e-a-morte-de-miguel-add4336892bd>. Acesso em: 19 jun. 2020. 

[3] Cf.: Lei Complementar nº 150/ 2015. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp150.htm>. Acesso em 10 jun. 2020.

[4]  MACHADO, Marta Rodriguez de Assis; LIMA, Márcia. Trabalho doméstico no Brasil: afetos desiguais e as interfaces de classe, raça e gênero. Disponível em: <https://www.geledes.org.br/trabalho-domestico-no-brasil-afetos-desiguais-e-as-interfaces-de-classe-raca-e-genero/>. Acesso em: 22 jun. 2020.

[5] Cf.: COSTA, Camilla. Caso Miguel: morte de menino no Recife mostra ‘como supremacia branca funciona no Brasil’, diz historiadora. BBC News | Brasil, 05 de junho de 2020. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52932110>. Acesso em: 21 jun. 2020. 

[6] Cf.: Yahoo Notícias. Mesmo após diagnóstico de Covid-19, patroa não liberou mãe de Miguel do trabalho de doméstica. Disponível em: <https://br.noticias.yahoo.com/coronavirus-mae-miguel-domestica-145148991.html>. Acesso em: 20 jun. 2020.

[7] PENA, João Soares; BOUÇAS, Rose Laila de Jesus. Racismo, luta e resistência da população negra na cidade segregada. Minha Cidade, São Paulo, ano 15, n. 180.01, Vitruvius, jul. 2015 <https://www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/15.180/5594>. Acesso em 22 jun. 2020.

[8] CARRANZA, Edite Galote. O quartinho de empregada e a tradição. 5% Arquitetura+Arte, São Paulo, ano 1, v.4, n.4, 2005. <http://www.revista5.arquitetonica.com/index.php/magazine-1/arquitetura/o-quartinho-de-empregada-e-a-tradicao>. Acesso em: 23 jun. 2020. 

[9]  MARQUESE, Rafael de Bivar. Revisitando casas-grandes e senzalas: a arquitetura das plantations escravistas americanas no século XIX. Anais do Museu Paulista, São Paulo, vol. 14 n. 1, jan.- jun. 2006, p. 11-57. Disponível em: <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-47142006000100002#back2>. Acesso em: 11 jun. 2020.

[10]  Carranza, op. cit. 

[11] Cf.: Anúncio de apartamento no Edifício Píer Maurício de Nassau disponível em: <http://sites.smartimobiliario.com.br/machu-picchu/imovel/apartamentos-comprar-vender-sao-jose-recife-pernambuco/AP01683302/lvFFfqgGCcTHW4bwftjaY9EPDiWem3QeSu2DC497/en/US>. Acesso em: 22 jun. 2020.

[12] Carranza, op. cit.

[13]  GOUSSINSKY, Eugênio. Portugal: imóveis ganham quarto de empregada para agradar brasileiros. R7 Notícias, 28 de Março de 2018. Disponível em: <https://noticias.r7.com/internacional/portugal-imoveis-ganham-quarto-de-empregada-para-agradar-brasileiros-28032018>. Acesso em 11 jun. 2020.


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