Entrevista integral de Cidinha da Silva​ ao jornal Pampulha

Cidinha da Silva é prosadora, ensaísta e dramaturga. Organizou os livros Ações afirmativas em educação: experiências brasileiras (Summus, 2003, 3ª edição) e Africanidades e relações raciais: insumos para políticas públicas na área do livro, leitura, literatura e bibliotecas no Brasil (FCP, 2014). Tem oito livros de literatura publicados, sendo os mais recentes, Racismo no Brasil e afetos correlatos (Conversê, 2013) e Baú de miudezas, sol e chuva (Mazza Edições, 2014). É doutoranda no Programa Multi-Institucional e Multidisciplinar em Difusão do Conhecimento da Universidade Federal da Bahia. é editora do blogue http://cidinhadasilva.blogspot.com.br/

Enviado por Cidinha da Silva via Guest Post para o Portal Geledés

Quando decidiu que queria ser escritora?
Desde que aprendi a ler, leio muito e à medida que lia, queria criar minhas próprias histórias. Essa foi a motivação e veio desde a infância.

Seus textos são sempre permeados pela temática negra, o que te inspira para escrever? E o que te motiva?
Não, nem sempre. Racismo, discriminação racial, desigualdades raciais decorrentes e suas manifestações no cotidiano brasileiro são temas centrais no meu trabalho literário, mas não o monopolizam. Minha escrita busca ser múltipla, polifônica. O que me motiva é o meu desejo de me comunicar com o mundo a partir do meu olhar para o mundo e suas coisas, pessoas e relações.

Você acredita da existência de uma escrita negra? Digo, fala-se em escrita feminina, mas também o modo de experienciar o mundo e exprimi-lo em palavras é diferente de uma perspectiva negra e de uma perspectiva branca. Há diferença? Como? Por que?

Sou uma mulher negra afro-centrada, isso me define e me inscreve no mundo. Serei assim como escritora, médica, gari, cozinheira, professora universitária, catadora de mariscos, funkeira, partideira, etc. Logo, professo a escrita negra da mulher negra afro-centrada que sou. Haverá outras escritoras negras que se definirão apenas como escritoras e será uma definição tão legítima e lícita quanto a minha. Ou seja, as pessoas são livres e podem ou devem se definir como quiserem, se quiserem. Penso então que a literatura negra, como se convencionou dizer, é um conceito em construção, mas, um elemento fundamental em minha compreensão do tema é que haja uma definição de pertencimento que parta de quem escreve, de dentro para fora.

Minha experiência como mulher negra é única, no sentido de que sou um ser individual que se dedica à criação literária, mas é também coletiva, no sentido da pertença a uma comunidade de destino que faz com que negras garis e negras médicas no Brasil experimentem desigualdades decretadas pelo racismo e pela branquitude. Temos então uma singularidade que, imagino, reflita-se em nossa escrita, não importando a forma que utilizemos para nos auto-definir.

Na sua profissão, você percebe preconceitos de gênero? E racial? Pode me contar situações? (Fique livre para contar “casos”, como uma boa mineira, rs).

Todas as mulheres enfrentam discriminação de gênero em sociedades machistas, patriarcais e misóginas. Todas as lésbicas enfrentam discriminações em sociedades heteronormativas. Todas as pessoas negras enfrentam discriminação racial em sociedades racistas. A discriminação faz parte da ontologia dessas sociedades. Os exemplos, em regra empobrecem o todo, porque dão a impressão de que o todo discriminatório é sazonal, assim, prefiro usar exemplos coletivos e gostaria que, se forem citados, que o sejam com o preâmbulo que escrevi:
1 – Existe discriminação quando se espera que uma escritora negra escreva apenas sobre determinados temas, que não fale de flores, amores e coisas que não tenham a ver com sofrimento, racismo, etc.
2 – Existe discriminação quando jovens negros são assassinados à razão de 83 por dia, num país que não tem pena de morte oficial, mas convive pacificamente com o assassinato de jovens negros justificado pela condição de suspeitos preferenciais.

Você concorda com o tipo de crítica, acima descrita, ao discurso da Arquette?
Sim, concordo, mas não acho que ela tenha obrigação de contemplar as mulheres negras e latinas em seu discurso, lamento que ela não tenha visão ampliada e politicamente comprometida para fazê-lo. Ela se restringiu à realidade do mundo euro-descendente ao qual pertence. Suas colegas de trabalho negras têm questões anteriores à briga por salários iguais, elas sequer conseguem trabalho.

O movimento feminista daqui também é “cindido” pela questão racial?
Essa questão dá pano pra manga, mas é muito interessante e complexa.

De um modo geral diria que, durante toda a década de 1980, pensadoras negras como Lélia Gonzales e Sueli Carneiro fizeram três movimentos distintos e complementares:
1-      Provocaram o feminismo (que naquele momento histórico podia ser chamado de feminismo branco) a debater sua responsabilidade na produção de lugares subalternizados que as mulheres brancas reproduziam para as mulheres negras, em nome da conquista de sua própria liberdade. Por exemplo, as mulheres brancas que brigavam pelo direito ao trabalho e salários iguais aos homens, não viam problema algum em ter em casa uma empregada doméstica negra com direitos trabalhistas precarizados, super-exploradas, mal remuneradas e muitas vezes sujeitas a abusos sexuais praticados por homens da casa.
2-      Instaram o feminismo branco e as mulheres negras organizadas a pensar o lugar de privilégio das brancas e o lugar subalternizado das negras.
3-      Por meio de suas reflexões e ativismo político, pavimentaram o caminho para a organização autônoma das mulheres em coletivos de mulheres negras e ONGs, movimento de mulheres e organizações feministas negras. Parte significativa dessa impulsão e da consolidação de espaço social e político para a representação das mulheres negras se deu a partir de ensaios de políticas públicas para o setor propostos pelo Conselho Nacional dos Direitos da Mulher.

Na década de 1990, o fortalecimento da autonomia das mulheres negras fez crescer a tensão com o movimento feminista que continuava branco, mas contava com número crescente de mulheres negras que se identificavam com o feminismo e lutavam para enegrecê-lo. Organizações como Geledés-Instituto da Mulher (SP) e Criola – Organização de Mulheres Negras (RJ) tiveram papel fundamental no processo. Já nessa década, o feminismo é forçado a interagir mais com as mulheres negras organizadas e algumas frestas se abrem.

Na década de 2000, a partir do processo organizativo da III Conferência Mundial Contra o Racismo (ONU, África do Sul, 2001) cria-se a AMNB – Associação de Mulheres Negras Brasileiras que soluciona um problema histórico de representação coletiva das mulheres negras. A luta e as conquistas da saúde da população negra tem um impulso fantástico dado por mulheres da área. O movimento feminista, consequentemente, foi forçado a se abrir. Ali começaram os primeiros passos do movimento feminista antirracista que se consolidaria na década seguinte. Desenha-se uma perspectiva teórica de feminismo negro, atuante em universidades e em alguns grupos de mulheres negras espalhados pelo país.

Hoje temos alguns grupos feministas que rejeitam a ideia de feminismo branco, são organizações que, simplesmente, só compreendem o sentido da luta feminista se ela for também antirracista. Por outro lado, as mulheres negras continuam fortalecendo sua autonomia e aprofundam o diálogo e a discussão das contradições vividas com as feministas brancas. As organizações de mulheres negras programam para o dia 18 de novembro de 2015 a Marcha das Mulheres Negras Contra o Racismo, a Violência e pelo Bem Viver, em Brasília, um momento político que prevê a participação de milhares de mulheres negras de todo o país.

Como é ser uma mulher negra no país?
Basta dizer que as mulheres negras ocupam a base da pirâmide socioeconômica e, mesmo sendo mais escolarizadas que os homens negros, ganham menores salários. Além disso, existem os estereótipos de hipersexualização e em pleno século XXI somos submetidas a séries televisivas ridículas e racistas tais como O sexo e as negas, recentemente veiculada pela Rede Globo.

Como a questão salarial apontada por Arquette, quais são as principais demandas das mulheres negras?
Olha, sugiro consultar o blogue http://www.2015marchamulheresnegras.com.br/, elaborado pelas ativistas negras mais atuantes no país hoje. Já fui ativista, mas hoje, sou apenas uma escritora.

Aqui, proponho uma “brincadeira”: se você estivesse no lugar da atriz Patricia Arquette, como todos os holofotes virados pra si em uma das cerimônias mais vistas do mundo, qual seria seu discurso?

Seria algo bem elaborado que não terei tempo de fazer aqui, opto então, por elencar dois pontos que seriam desenvolvidos nesse discurso:
1 – Destacaria a necessidade de ações afirmativas para promover mulheres negras nas funções de roteiristas, produtoras e diretoras, entre outras funções prioritárias na indústria cinematográfica.
2 – Mostraria em um quadro comparativo a frequência de trabalhos desenvolvidos por artistas brancas e negras que tenham a mesma formação artística, como também compararia os salários de artistas negras e artistas brancas. Também me ocuparia de demonstrar que artistas negras recebem menos oportunidades de trabalho que as brancas e isso impede que elas aprimorem sua técnica, logo, cada vez receberão menos convites porque são consideradas atrizes inexperientes e não tão boas.

** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

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