Escolas ainda confundem racismo com bullying

– Levanta a mão quem aqui já sofreu racismo. – Essa é a primeira frase que eu digo para os meus alunos antes de iniciar o tema do racismo e seus desdobramentos na sala de aula, nas turmas do ensino médio.

Por Luanda Julião, do Justificando 

Fatcamera via Getty Images

Muitos deles, inclusive eu, levantam a mão. Até mesmo meninos e meninas brancas.

Peço então que alguns deles se pronunciem.

– Me chamaram de gordo, baleia, orca, Nonho. – expõe um aluno.

– Me chamaram de Pinóquio por causa do meu nariz. – conta uma aluna.

– Vivem me chamando de mulherzinha, mariquinha, bichinha, gazela. – fala outro aluno.

– Prô, me chamam o tempo todo de Gasparzinho. Eu vivo sofrendo racismo porque sou muito branca. – descreve a aluna, esfregando a cútis para dar ênfase a sua branquitude.

– Me zoam o tempo todo porque eu sou manco. – intercepta outro aluno.

Eu interrompo: – Vocês estão confundindo as coisas. Estamos falando de racismo e não de bulliyng, preconceito.

Em geral, eles me olham espantados, confusos. Inclusive é muito comum os meus alunos negros permanecerem em silêncio, talvez tão confusos quanto os outros.

Racismo é diferente de bullying! Há uma linha tênue que os separa, afinal, tanto um quanto o outro agride físico e psicologicamente, ou seja, ofende, humilha, violenta, por isso em geral confundimos e as escolas tendem a colocar duas coisas díspares num único discurso, isto é, num único “conteúdo”. Mas eu insisto: bullying, preconceito é diferente de racismo.

– Levanta a mão quem aqui já foi seguido no supermercado pelo segurança, quem aqui tem medo da polícia ou quem já apanhou da polícia, quem aqui já foi humilhado, maltratado sem saber a razão ou o porquê.

De repente, um aluno negro comenta:

– Esses dias eu estava numa drogaria esperando pra ser atendido e nada. Não tinha ninguém pra ser atendido, só eu, mas ninguém me atendia. Quando perguntei ao balconista: Oh, você não vai me atender? Tô plantado aqui, cansado de esperar, não vai me atender? Ele me respondeu: – Sua raça está acostumada a esperar.

– Isso não é racismo – intercepta uma aluna – seria se ele tivesse te xingado de macaco ou encardido.

Sim, isso é racismo e prossigo:

 

– Vocês sabiam que um jovem negro, de 15 a 29 anos tem até 147% mais chances de ser assassinado que um jovem branco[1]? Vocês sabiam que há vidas que quando são perdidas, sequer são lamentadas, nem pelo Estado, nem por uma parte da população? Que há vidas supérfluas a quem os direitos básicos são negados? Vocês sabiam que 73,3% dos beneficiários do Bolsa Família são negros, desses mais de 50% tem menos de 24 anos e 60% tem apenas o ensino fundamental incompleto[2]? Vocês sabiam que 96% dos apresentadores de telejornais e 94% dos jornalistas desse país são brancos[3]?
Vocês sabiam que um trabalhador negro no Brasil ganha em média pouco mais da metade (57%) do rendimento recebido pelos trabalhadores de cor branca? Em termos numéricos, trabalhadores negros ganham em média R$ 1.374,79 e os trabalhadores brancos em média R$ 2.396,74?[4]Vocês sabiam que 86,5% dos magistrados brasileiros são brancos[5]?
Com quem nós, ou melhor, com quem a elite quer se assemelhar: ao povo que ela dirige ou àqueles, considerados superiores, dos países desenvolvidos aos quais ela tem como referência? Qual a imagem que temos de um ladrão e de um bandido? Quantos presidentes negros o Brasil já teve? Já houve algum papa na história da igreja católica negro?

 

– Eu não sou racista – dizem alguns alunos.

– Todos nós somos iguais. Racismo é coisa da cabeça de gente fraca.

 

O racismo não é uma deformação do comportamento, ou seja, não está preso ao campo subjetivo, como acontece na prática do bullying, o qual está totalmente ligado a ideia de preconceito (um juízo antecipado que não passa pelo crivo da razão, juízo este que existe na cabeça de um indivíduo ou grupo de indivíduos que rejeita ou não aceita o outro devido à cultura, sexualidade, religião, etnia, nacionalidade, idade, etc). O que acontece em relação ao racismo é que essa lógica da rejeição, da exclusão, da aversão, da humilhação evade o campo subjetivo e invade o campo objetivo[6], isto é, o campo da norma, normatizando-se e naturalizando-se, uma vez que é semeado e equalizado pelo campo político, jurídico, econômico, cultural e social.

Trata-se então de explicitar que as sequelas deixadas pelo racismo são muito mais profundas e sutis, embora muitas vezes olvidadas no ambiente escolar e na sociedade de um modo geral, pois ao contrário do bullying que é uma violência física ou psicológica considerada fora da norma, isto é, anormal, fora daquilo que é aceito e por isso deve ser combatido. O racismo está dentro da norma ou normalidade, uma vez que é assegurado pela própria estrutura da sociedade e do Estado.

Cumpre, portanto, enfatizar que o racismo está no DNA do Brasil, isto é, o racismo é uma ferramenta que está na gênese do Brasil e que se consolidou estruturalmente, permitindo, inclusive, que o Brasil abolisse os escravos sem que se rompessem as hierarquias sociais engendradas durante o período da escravatura. A cidadania do negro, tão almejada durante o período colonial e escravocrata não se deu de modo pleno, pois basta olharmos a paisagem social atentamente para nos certificar que homens negros e mulheres negras perseveram em desvantagens, continuam se sujeitando as piores condições de trabalho e tratados como sub-cidadãos. Certamente, a abolição permitiu que o negro se evadisse da sua condição de objeto, de coisa, de mercadoria, entrementes, não pulverizou sua condição subalterna.

Falar em racismo em sala de aula significa destrinçar o nervo crítico da subalternização do sujeito negro brasileiro, uma vez que nesse país é a cor da pele que atua como mecanismo de diferenciação de oportunidades, significa desmascarar o mito da democracia racial e desnudar que o problema racial no Brasil não está preso ao campo individual ou a uma variação do preconceito de natureza subjetiva. Obviamente, as ações individuais devem ser combatidas e denunciadas, mas é preciso também falar nas escolas da ideologia racista e hierarquizadora da condição humana, usada para perpetuar os privilégios cada vez mais inacessíveis para a maioria da população. É inegável que é preciso elucidar as questões mais estruturais do capitalismo brasileiro que sustenta e assegura o racismo, escancarando fratura existente entre negros e brancos.

Ou seja, ser racista não significa apenas rejeitar, humilhar, ofender, aviltar física e psicologicamente alguém, como sem dúvida também acontece no bullying, mas concordar com a função assassina e excludente do Estado que ceifa a vida daqueles considerados delinquentes, degenerados, supérfluos ou semi-cidadãos. E aqui, parafraseando Foucault, tirar a vida não significa necessariamente o assassinato direto, mas também tudo o que pode ser assassínio indireto: o fato de expor à morte, de multiplicar para alguns  o  risco  de  morte  ou,  pura  e  simplesmente,  a  morte  política,  a  expulsão,  a  rejeição. Descortina-se assim, que o racismo é um mecanismo indispensável como condição para se tirar a vida de alguém ou tratar alguém como cidadão de segunda classe, numa sociedade normalizada, ou seja, o racismo não está no campo do anormal, do patológico, daquilo que deve ser prevenido e combatido.

Se a escola é a primeira arena onde o racismo deve ser discutido e combatido é urgente, portanto, que se disseque a raiz do racismo, escancarando como ele se apresenta no Brasil desde a sua formação e seus ressignificados durante o Brasil república e no neoliberalismo atual, pois só conseguiremos superá-lo no dia em que o negro for arrancado da sua cidadania restrita e for cingido com a mesma cidadania universal dos brancos, no dia em que todos os cidadãos tiverem igual acesso aos palcos da política, do trabalho digno e instâncias econômicas, sociais e jurídicas.

Luanda Julião é Doutoranda em Filosofia Francesa Contemporânea pela Universidade Federal de São Carlos. Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de São Paulo. Professora de História e Filosofia na Escola Estadual Visconde de Itaúna.

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