Escondam, escondam a cara do povo brasileiro! A branquitude está incomodada

Este é um texto em resposta à colunista Anna Marina, do jornal Estado de Minas, devido ao seu texto publicado no dia 4 de janeiro de 2023, intitulado “Mulher de Lula chega com força total”. De mineira para mineira, de escritora para jornalista, de mulher para mulher. Com as devidas diferenças: eu fui representada no “circo” da posse de Luís Inácio Lula da Silva, como mulher e negra, enquanto a minha conterrânea teve espasmos coronarianos. 

Aqui na Europa, de onde escrevo, a burguesia tinha o costume de esconder familiares com deficiência física ou mental, de jamais os expor por motivo de vergonha. Era um estigma social até poucas décadas atrás. Na Itália, os filhos mestiços, nascidos depois da Segunda Guerra Mundial, fruto do relacionamento de mulheres italianas com soldados americanos e ingleses negros, também eram mantidos em casa, para não envergonharem a nação branca. Felizmente, superamos esta fase sombria, em alguns lugares do mundo, onde alguns se sentiam no direito de representar a “cara oficial”, ou seja, aquela que poderia ser mostrada em espaços públicos. Contudo, a jornalista, como muitos outros meus compatriotas, permanece ligada à “tradição”. Diga-se de passagem, obsoleta para a nossa mistura racial e cultural. Aquela onde gente como ela, branca, “saudável”, “sem manchas” podia aparecer, deixando escondido os “índios”, diga-se “indígenas”, os negros e os “estropiados”, diga-se pessoas com deficiência. 

No trecho “podemos ter índios, pretos e estropiados compondo nosso povo, mas colocar essa seleção na cara da nação me pareceu forçada de mão”, o que ela está dizendo? Nada mais do que: “olha, eu até permito que vocês existam, desde que não apareçam, não façam parte da tradição, formada por brancos, ricos e héteros. Até permito uma brecha para o uso excessivo de Botox e o sorriso embranquecido”. Essa gente, que “forçou a mão”, nas palavras da jornalista, é a mesma que, todos os dias, levanta às quatro horas da manhã, pega dois ou três ônibus para chegar ao trabalho, abre comércios, liga máquinas de fábricas, coloca o pão para assar nas padarias, faz funcionar os metrôs, as cozinhas e as portarias dos prédios. Nunca fizeram parte da tradição oficial, é verdade, mas, tradições mudam e, foi para isso que o povo escolheu o projeto eleito. Pois é, Anna Marina, como essa gente ousa subir a rampa presidencial que, por séculos, é papel de uma elite branca? “Ah! Lula, quanto mal gosto!”, murmurou a branquitude brasileira sentada, assistindo a posse do seu canapé.  

Anna Marina precisa, urgentemente, descolonizar o olhar e o que ela chama de “bom gosto” e tradição. Os ares são outros, tem preto, indígena, homossexuais, transexuais e favelados assumindo o poder. Viemos para ficar e esta será a tradição. Esse Brasil mudou, embora a branquitude brasileira insista em permanecer no mesmo lugar.

Cara jornalista, circo, como você chamou a posse de Lula, também é tradição. E foi esta a escolha do povo brasileiro. Se fosse para continuar com a cara da branquitude, a saber, monótona, sem sal e azeda, ele tinha votado como você votou. Não, a senhora não é negativista, só não conhece a diversidade do seu próprio país e o que seja um Projeto Político Popular. Um dia, talvez, eu possa ensinar-te.

Beijos de Paris, cidade que comemorou a posse e onde a branquitude brasileira adora passar férias.

Fabiane Albuquerque (Arquivo Pessoal)

Fabiane Albuquerque é escritora, autora do livro Cartas a um homem que amei.


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