Escravidão persiste porque Brasil ainda aceita servidão na sala de casa.
A brutalidade que atravessa de forma recorrente alguns acontecimentos neste país desafia nossa crença de que se tratam da realidade e não de uma peça de ficção. Especialmente quando envolvem as experiências negras.
Escravidão persiste
Na última sexta-feira (13), em meio aos debates sobre a efeméride dos 134 anos da Abolição da Escravatura, veio à público a história da mais longa exploração de escravidão contemporânea registrada no país: 72 anos. Não por acaso, tratava-se de uma trabalhadora doméstica, dessas que são chamadas “da família”, mas não recebem salário pelo trabalho que realizam. O episódio estarrecedor mostra que o Brasil não vê profissionais de serviços domésticos como sujeitos de direitos.
No mesmo dia que esse caso ganhou notoriedade, circulavam na mídia nacional análises sobre a Lei Áurea. No período que antecedeu à abolição, havia inúmeras propostas e ações comprometidas com a superação da ordem escravocrata e seus mecanismos raciais de exclusão. Todavia, o projeto abolicionista vitorioso em 13 de maio de 1888 manteve o viés conservador, favorecendo a manutenção das desigualdades raciais. Apesar de suas limitações, o dispositivo jurídico de 1888 tornou ilegal o trabalho escravo no Brasil.
Apesar de conter as mesmas práticas desumanizadoras que expressam continuidade em termos de método e de mentalidade, o trabalho análogo à escravidão persiste nos dias de de hoje e difere do trabalho escravo dos períodos colonial e imperial devido a sua natureza legal e econômica.
Também chamado de escravidão contemporânea, o trabalho análogo à escravidão é caracterizado pela submissão de pessoas à realização de trabalhos forçados com jornadas exaustivas e sujeitas a condições degradantes. Em geral, as pessoas têm sua liberdade cerceada pela impossibilidade de romper o vínculo com o empregador. Frequentemente são impedidas de se locomover pela imposição de dívidas fraudulentas relacionadas a transporte, alimentação e hospedagem. As pessoas negras e pobres são as principais vítimas dessa super exploração.
Entre 2003 a 2020, o Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas compilou os seguintes dados para pessoas que foram resgatadas:
- 45% eram pardas;
- 13% se identificavam como preta;
- 23% como branca e;
- 16% como amarela.
No que se refere à atividade laboral desempenhada no momento do resgate, a organização identificou as seguintes áreas:
- 70% atuavam agropecuária em geral;
- 3% na pecuária (bovinos);
- 2% como pedreiro;
- 2% como trabalhador volante da agricultura;
- 2% na cultura de cana de açúcar;
- 1% na cultura de café e;
- 1% como carvoeiro.
Rompendo com a invisibilidade
Estes dados, porém, revelam outra realidade: a invisibilidade do trabalho doméstico na discussão sobre escravidão contemporânea. A esse respeito, a pesquisadora Raissa Roussenq Alves considera, em seu livro “Escravidão Contemporânea”, que isso se deve ao peso da cultura escravocrata na definição do lugar da mulher negra.
Na mesma direção, a filósofa Lélia Gonzalez afirma no artigo “A mulher negra no Brasil” que elas são vistas pela sociedade brasileira como um corpo que trabalha e é super explorado economicamente.
De certo modo, somente em 2020, com a repercussão do caso da trabalhadora Madalena Gordiano em Patos de Minas, o número de denúncias sobre espaço doméstico começou a aumentar. Na semana passada, se tornou público o pedido do Ministério Público Federal (MPF) para a família que manteve Madalena por 38 anos em condições análogas à escravidão indenizá-la em R$ 3,5 milhões. Em 2022, já foram cinco casos.
Em 1943, as trabalhadoras domésticas foram excluídas dos direitos trabalhistas previstos na Consolidação das Leis do Trabalho, do Governo Vargas (1930-1945). Essa situação colocou essas trabalhadoras em desvantagem em relação aos demais setores da classe trabalhadora. Apenas em 2013, com a Emenda Constitucional n° 72/2013, que elas ganharam direitos, como ao limite da jornada de trabalho, com duração não superior a 8 horas diárias e 44 semanais. Até aquele momento, não havia como tipificar uma jornada exaustiva como trabalho escravo para essas trabalhadoras.
Em relação à fiscalização, somente com a Lei Complementar n° 150/2015, que foi aberta a possibilidade de inspeção dos locais de trabalho pelos auditores fiscais do trabalho. Nesse quesito, a dificuldade de comprovar as condições de trabalho degradantes por meio da fiscalização acontece pelo fato de ser um trabalho exercido no âmbito residencial. A Constituição Federal de 1988 assegura a inviolabilidade do lar.
Esse contexto jurídico favoreceu que a Auditoria Fiscal do Trabalho no Rio, contando com a participação do Ministério Público do Trabalho e do Projeto Ação Integrada, resgatasse a mulher negra de 84 anos, que trabalhou durante sete décadas em condições análogas à escravidão, conforme relata reportagem do UOL, assinada por Leonardo Sakamoto e Daniel Camargos. Durante esse período, ela labutou diariamente, sem receber salário, em uma casa no Rio. Ela se mudou aos 12 para a residência dos Mattos Maia para realizar serviços domésticos. Depois de o casal falecer, ela foi levada para a casa da filha, mantendo as atividades domésticas. O que incluía cuidar das crianças.
Deslocando-se da invisibilidade e construindo imaginários outros, produções literárias têm criado personagens negras que sobrevivem em situações análogas à escravidão. Em seu livro “Solitária”, escritora Eliana Alves Cruz adentra o trabalho doméstico, apresentando um diagnóstico do presente. Na trama, Eunice é uma empregada doméstica que mora no trabalho, em um condomínio de luxo. Sua filha, Mabel, vive naquele espaço desde pequena.
Eliana entrelaça as experiências do trabalho doméstico no Brasil com as permanências do passado escravocrata, que se expressam nos espaços, nos gestos e na linguagem. Naquele prédio de luxo, são cometidos crimes motivados por um ódio racial que não é nomeado. A escravidão persiste. A trama revela como é difícil e, ao mesmo tempo, necessário denunciar o que acontece nos bastidores. Em dado momento, Eunice se sente “renovada, livre do sentimento de servidão e gratidão por receber muito menos do que merecia durante anos de dedicação e trabalho incessante”. Sua potente percepção borra as fronteiras entre a ficção e a realidade, entre o individual e o coletivo.
*Mariléa de Almeida é integrante da Rede de Historiadoras Negras e Historiadores Negros