O termo escrevivência ganhou projeção nacional a partir de maio de 2017 quando a ocupação Itaú Cultural homenageou à escritora Conceição Evaristo, quem cunhou esse termo. Tanto Conceição como vários estudiosos vêm revisitando o conceito, sendo possível observar uma evolução durante os 30 anos de sua elaboração, porém seu objetivo de dar voz e consequentemente emancipar as mulheres negras continua intacto.
Conceição diz: “Eu venho trabalhando com esse termo desde 1994, 1995, quando eu faço a minha dissertação de mestrado, e aí eu começo a fazer um jogo entre escrever-viver, escrever-se-ver, escrever-se-vendo, escrevendo-se, até chegar ao termo escrevivência”1.
Ao Nexo Jornal a autora declarou que o termo escrevivência contém em seu núcleo a estratégia para rasurar a ordem legitimada da Mãe-preta que conta histórias para adormecer a prole da casa-grande2.O professor da UFMG Eduardo de Assis Duarte diz: “A escrevivência evaristiana é afro-gendrada, seja pela presença esmagadora de dramas e personagens femininos”3.E mais adiante completa: “A escrevivência é quilombista e, como tal, encena também o contra-ataque da vítima, a clamar por seu reconhecimento enquanto individualidade e caráter”4.
A noção de escrevivência vem sendo utilizada como aporte teórico para fundamentar e ler objetos de pesquisa, como também método de escrita nas universidades, pois aproxima o fazer acadêmico das práticas cotidianas, como analisa a professora Fernanda Felisberto, professora da UFRRJ, no texto “Escrevivência como rota de escrita acadêmica”.
A escrevivência também se transformou em um meio para artistas de várias áreas do conhecimento poderem se verem legitimadas e poderem, finalmente, expressar sua arte, muitos fazeres antes mal-olhados e mal-pagos conquistaram certa visibilidade quando acompanhados da aurea que envolve a escrevivência. A escrevivência coloca em cena corpos interdidatos até então, é altamente inclusiva, por isso é um conceito revolucionário. Ao considerar a crítica literária brasileira, acostumada com critérios elaborados para analisar obras de autores não negros, é notório que a escrevivência tenha alcançado esse espaço crítico. A escrevivência caiu como um Oxé, ou machado de Xango, na estrutura da crítica nacional, abrindo uma fenda nunca vista e dessa abertura vem saindo, cada dia mais, ‘vozes afogadas na viagem negreira’, para parafrasear um poema de Conceição.
No entanto, existe hoje uma gama de obras, textos, exposições, espetáculos de dança e as mais variadas coisas tentando um lugar ao sol somente pelo fato de se autointitularem escrevivência, aproveitando-se da chancela do conceito. A escrevivência é denúncia de casos atuais como o de Sonia Maria de Jesus, não está para conferir status ou dar ar de fundamento para práticas que por ventura não tenham encontrado ainda um conceito metodologicamente mais apropriado. Nem tudo que se autointula ecrevivência é escrevivência. Sabemos, e não é de hoje, da existência de um mercado, especializado em cultura negra, interessado em cooptar nossas lutas e lucrar com cada gota das nossas lágrimas, suor e sangue, inclusive lucrar com as nossas categorias.
No final do poema “Inquisição” Conceição Evaristo escreve:
[…]
Por isso prossigo.
persigo acalentando
nessa escrevivência
não a efínge de brancos brasões,
sim o secular senso de invisíveis
e negros queloides, selo originário,
de um perdido
e sempre reinventado clã5.
Nosso trabalho é acalentar a escrevivência como se fosse uma pessoa, pois esse é o cuidado que o conceito merece em sua potência de reiventar linhagens e parantescos, criar humanidades e amor próprio. Sem esquecer que o mesmo machado que abre caminhos para dar voz às mulheres históricamente silenciadas é cultuado pela sua justiça.
11 EVARISTO, Conceição. A escrevivência das mulheres negras reconstrói a história brasileira. Entrevista concedida à Morgani Guzzo. Disponível em: https://www.geledes.org.br/conceicao-evaristo-a-escrevivencia-das-mulheres-negras-reconstroi-a-historia-brasileira/. Acesso em 20 dez. 2024.
22 FONSECA, Maria Nazareth Soares. Escrevivência: sentidos em construção. In: DUARTE, Constância; NUNES, Isabela. Escrevivência: a escrita de nós. Reflexões sobre a obra de Conceição Evaristo. Org. Rio de Janeiro: Mina Comunicação e Arte, 2020. p. 60.
33 DUARTE, Eduardo. Escrevivência, Quilombismo e a tradição afrodiaspórica. In: DUARTE, Constância; NUNES, Isabela. Escrevivência: a escrita de nós. Reflexões sobre a obra de Conceição Evaristo. Org. Rio de Janeiro: Mina Comunicação e Arte, 2020. p. 84.
44 Op. Cit. p. 85.
555 EVARISTO, Conceição. Poemas da recordação e outros movimentos. Rio de Janeiro: Malê, 2017. p. 106.
Tatiara Pinto
Sou a Tatiara Pinto mulher negra, mãe do Daruê, catirina do Maracatu Arrasta Ilha, agbzera do Baque Mulher Floripa, doutoranda em Literatura na UFSC, pesquiso a sobrevivência da poesia e das mulheres, sou doula, aprendiz da cultura popular, vivo de poesia no mato, conselheira de saúde do bairro, gosto de estar em coletivos e cozinhar, as vezes pinto mulheres em aquarela, quero aprender a fazer cerâmica.
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