Em 18 de dezembro de 2024, tive a honra de participar da cerimônia de assinatura da portaria conjunta que recria o Comitê Nacional do Brasil do Programa Memória do Mundo da UNESCO (MoWBR), a convite da Diretora do Arquivo Nacional, Ana Flávia Magalhães Pinto. A cerimônia foi realizada no Palácio do Itamaraty, em Brasília, com a assinatura oficial da Ministra da Cultura, Margareth Menezes, da Ministra da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, Esther Dweck, e do Ministro de Relações Exteriores, Mauro Vieira. A reconstituição do comitê visa promover a valorização da memória e do patrimônio documental nacional.
Liderada pelo Arquivo Nacional (AN), a iniciativa é um passo fundamental para a proteção do patrimônio cultural, bom como um gesto inequívoco em prol da preservação da memória, por justiça epistêmica e pelo direito à memória. Além disso, a proposta demonstra a liderança do Brasil no esforço global para preservar e promover a memória de grupos marginalizados, incluindo afrodescendentes, comunidades indígenas e outros grupos cuja memória foi historicamente apagada das narrativas dominantes.
A preservação da memória contra apagamentos sistêmicos
Durante a cerimônia, Ana Flávia Magalhães Pinto (AN) fez um discurso enfático, onde ressaltou a centralidade da memória na construção de um mundo mais justo. Como afirmou a Diretora, “É importante que nós entendamos o papel da memória para a edificação de um mundo em que a vida possa ser vivida com dignidade, com respeito, livre de perspectivas de silenciamento e esquecimento criminoso. O esquecimento é constitutivo da humanidade, mas não pode ser legitimado por projetos de genocídio, epistemicídio e necromemória”. Ana Flávia destacou a necessidade urgente de criar políticas públicas que abordem o silenciamento de histórias por meio de reparações epistêmicas. Este processo reparador trata do reconhecimento e correção de um projeto colonial de desapropriação de formas de conhecimento que moldou as identidades culturais e as normas sociais ocidentais vigentes.
Preservar o patrimônio documental, que é a principal missão do Programa Memória do Mundo (MoW) da UNESCO, vai além da identificação e preservação de registros; trata-se de proteger os diversos sistemas de memória que atravessam nossa compreensão do mundo. Além dos arquivos tradicionais, esses sistemas de memória são mantidos por várias comunidades em formas escritas, orais, performáticas e territoriais, e pertencem ao público, como nos lembrou Ana Flávia.
Ainda na cerimônia, o embaixador Marco Antonio Nakata, diretor do Instituto Guimarães Rosa, destacou que a preservação da memória não se limita apenas a salvaguardar documentos históricos, mas também a garantir que esses materiais contribuam para uma compreensão mais ampla das injustiças históricas constitutivas do Brasil. Nakata frisou que a memória coletiva não deve ser apenas protegida, mas ativamente celebrada e respeitada, sendo entendida como parte do processo global de justiça reparatória, acrescento eu.
Nesse sentido, a recriação do Comitê Nacional tem como objetivo apoiar a preservação da memória em instituições públicas, privadas e comunitárias, ampliando a participação e a inclusão social nesse esforço.
O Programa Memória do Mundo no Brasil: antes e agora
O Comitê Nacional do Brasil para o Programa Memória do Mundo da UNESCO foi criado em 2004, mas encerrado em 2019. O programa apoia a preservação de arquivos e acervos, e promove transparência, responsabilidade e uma abordagem inclusiva na proteção de registros históricos. Entre 2007 e 2018, 111 coleções foram adicionadas ao Registro Nacional do Programa Memória do Mundo do Brasil, incluindo obras de intelectuais brasileiros e registros de movimentos sociais que construíram a história do país.
O primeiro passo nesse processo de retomada será o lançamento de um edital, no dia 13 de janeiro de 2025, para selecionar representantes de organizações de ensino e pesquisa, arquivos públicos e acervos comunitários para o Comitê Nacional, que contará com uma Comissão Consultiva formada exclusivamente por representantes da sociedade civil. Esta iniciativa visa ampliar a participação de organizações e membros da sociedade, além de aumentar a conscientização sobre o direito à memória.
A criação de um novo Comitê reflete o compromisso de diversas instituições do Brasil com uma estrutura de preservação da memória pública e propõe que essa memória seja acessível a todos, possibilitando o envolvimento da sociedade com sistemas de preservação de conhecimento de forma significativa e transformadora.
O direito à memória: Um fundamento básico para a justiça epistêmica
O direito à memória é um elemento fundamental para a justiça epistêmica. Na história do colonialismo, escravidão e subjugação de povos, sistemas inteiros de conhecimento foram desmantelados, quando não eliminados, privando populações da capacidade de criar suas próprias narrativas. Quando respeitado, o direito à memória pode estruturar processos de reparações epistêmicas, pois possibilita o reconhecimento de violências históricas que continuam a moldar as estruturas de poder contemporâneas e oferece vias para autorrepresentação.
Dito de outra forma, o modelo de justiça epistêmica desafia a normalidade da narrativa colonial ainda vigente nas visões de mundo atuais e propõe um modelo de representação enraizado na autodeterminação, priorizando o reconhecimento das memórias coletivas.
O papel da UNESCO para a justiça reparatória
O Programa Memória do Mundo da UNESCO pode desempenhar um papel fundamental no movimento global por reparações epistêmicas. Ao incentivar o engajamento global com os legados do colonialismo, da escravidão e de outras formas de violência histórica, o programa convida para o espaço de defesa de direitos humanos formas de atuação elaboradas a partir de propostas de reparação desses e de outros danos.
Portanto, a colaboração entre a UNESCO, governos nacionais, museus, arquivos e sociedade civil é fundamental para evitar o silenciamento, o esquecimento e a necromemória, que continuam a perpetuar injustiças históricas.
Uma nova década para a justiça epistêmica
Em 17 de dezembro de 2024, foi anunciada a Segunda Década Internacional para Afrodescendentes da ONU, com o tema “Reconhecimento, Justiça e Desenvolvimento”. Esta declaração apresenta uma oportunidade única para a expansão do modelo de justiça reparatória e para o fortalecimento de programas que recuperem a memória coletiva da diáspora africana. A recriação do Comitê Nacional ocorre em um momento favorável para o fortalecimento do direito à memória da maior parte da população brasileira. Ao investir na preservação da memória e promover uma participação social mais ampla, o Brasil tem a chance de contribuir significativamente para um esforço global que reconheça o epistemicídio sistêmico que afetou a maior diáspora das Américas, criando, assim, modelos de representação em que essas narrativas sejam reconhecidas e protegidas.
Leonora Souza Paula é professora na Michigan State University e membro dos programas American Council of Learned Societies (ACLS), Human Rights Center at the University of California Berkeley School of Law e Vital Voices Global Partnership.
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