“ESSE CURSO É PARA MENINAS RICAS”: Kate Silva, mulher negra no curso de Terapia ocupacional da PUC Campinas, 24 anos atrás.

1- Kate, ouvi sua história alguns anos atrás e me tocou a sua trajetória na Universidade Católica de Campinas. Poderia nos contar em que ano ingressou, qual curso escolheu e por quê?

Ingressei na vida acadêmica em 1994, no curso de Terapia Ocupacional (TO). A escolha pelo curso foi uma opção que me deixaria na área da saúde, porque, na verdade, embora resolvida hoje com a minha escolha, confesso que abortei o sonho da medicina. Dois anos antes de eu ingressar na TO, prestei medicina em várias faculdades públicas e privadas. E, mesmo com muito esforço, não foi possível. Interessante que anos depois, eu já formada, me deparei refletindo sobre duas questões.

Primeiro que aos 17 anos, eu não tinha autoestima suficiente para acreditar na possibilidade de cursar medicina. Existia um grande desejo, mas ao mesmo tempo, uma sensação de pretensão demais para a minha realidade. Numa família de origem pobre, tinha plena consciência das dificuldades financeiras que enfrentaria na trajetória acadêmica. E, segundo, quando releio esse passado, percebo claramente o quanto que, inconscientemente, pratiquei o que hoje atendo com o nome de auto sabotagem. Por várias vezes, eu reproduzia um discurso para tentar justificar o ingresso na TO. Trabalhei dois anos num hospital de Jundiaí antes de ingressar na universidade e percebia a rotina dos médicos, de vários plantões e me convenci que seria penoso. Eu dizia para mim “Ah! Médicos não tem vida própria. Se matam para sobreviver. Salvo os que já têm condições para sair da universidade com a garantia do consultório próprio”. Esses pensamentos se consolidaram porque até antes de trabalhar neste hospital, aos 14 anos eu já estava no mercado informal, vendendo lanche natural na rua para custear o cursinho.

2- Qual a sua maior dificuldade durante os anos de Universidade?

As condições financeiras e o tempo de dedicação aos estudos.

O desafio já começou para efetuar a matrícula. Passar no vestibular numa universidade privada e de alto custo, podíamos imaginar que começariam as primeiras dificuldades financeiras, até porque naquele mesmo ano, uma das minhas irmãs também iniciou o curso de Serviço Social na PUC. Na época, a mãe de um amigo de cursinho me emprestou o dinheiro da matrícula e, posteriormente, devolvi com o meu primeiro salário. Eu tinha plena consciência que teria que trabalhar e estudar se quisesse me manter no curso. E assim o fiz. O curso era matutino, eu saía da faculdade na hora do almoço e enfrentava um contra turno no Mac Donald’s em Campinas até a noite.

Arrastei inadimplências de um ano para o outro. A dívida crescia. Consegui outro trabalho na época, como secretária de Centro Acadêmico. O salário também era baixo, mas de certa forma, me dava um pouco mais de flexibilidade para estudar durante o expediente. Mesmo assim, para dar conta das despesas, tive que pensar em outra renda extra. E de repente, me vi novamente conciliando atividades do mercado informal. Comecei a preparar quitutes, vendia roupas em consignação para as alunas do curso e fora de lá também, e, eventualmente, saía no horário de expediente para embelezar as unhas das alunas de república. Curso de manicure, nunca fiz, mas, agraciada por uma habilidade manual, incorporei essa atividade no rol da renda extra. Tive muita sorte porque era subordinada por alunos que entendiam as minhas reais necessidades e consentiam as minhas saídas.

A minha família também teve uma participação muito efetiva neste processo. Durante os quatro anos, por vezes, realizávamos eventos sociais (almoços beneficentes) para tentar colocar em dia as mensalidades pendentes. A minha mãe também preparava algumas iguarias e vendia na escola onde trabalhava como merendeira e o meu pai auxiliava nos preparativos.

Algumas amigas do meu curso me ajudavam, às vezes, a vender os ingressos de festas universitárias para contribuir com as despesas. E, por muitas vezes, me esperavam chegar do trabalho para repassar as matérias em semana de provas.

Confesso que as preocupações e o desgaste psíquico eram enormes. Nunca pensei em desistir, mas tinha um sentimento de menos valia em relação às colegas de classe e de república. Não deixava transparecer, até porque é esperado de nós, crianças, meninas e mulheres negras, a fortaleza, mas eu sonhava sim, poder desfrutar com elas tardes de estudos, descanso, lazer, mas o meu mundo real era outro. Interessante, estou compartilhando isso agora porque guardei esse sentimento comigo todos esses anos.

Kate Silva (Foto: Arquivo Pessoal)

3- Como você viveu a questão do racismo e quais foram suas estratégias de sobrevivência?

Avalio dois momentos cruciais onde o racismo velado se desmascarou. Primeiro numa sala de assistência social. No primeiro ano me inscrevi no programa de bolsa universitária (crédito educativo) onde eu teria um fôlego para pagar as mensalidades após a formação. Durante a entrevista, a assistente aocial, depois de várias indagações, me apontou, sem a menor cerimônia, que o meu curso era de “menininhas ricas” e que eu não tinha perfil para aquele curso. Ela se recusou a me contemplar com a bolsa e mantinha um tom de intimidação, uma postura hostil. Lembro-me que, a única coisa que respondi foi se aquela devolutiva era a única coisa que ela tinha para me dizer. Ficou um silêncio na sala e eu guardei todo choro para liberar durante o trajeto para o trabalho. Semanas depois, um grupo de estudantes denunciou o caso na reitoria e na carta resposta foi deferido que a profissional estava apenas cumprindo com o seu papel e ela tinha que apontar a minha realidade financeira. Apesar do choque pelo inesperado, a atitude dela teve um impacto contrário na minha vida. Recordo-me que passada a emoção momentânea, afirmei para mim: “Ela tentou me intimidar, mas não teve efeito, porque daqui eu só saio formada”.

E um segundo momento foi durante o processo de desenvolvimento da monografia. Tive dificuldade para delimitar o tema e esperava que a orientadora me ajudasse a resolver o problema. Nós não criamos um vínculo saudável, por vezes, eu percebia uma tratativa diferente em relação às demais orientandas. Tentei mudar de orientadora, mas a coordenação do curso resistiu. Nas últimas semanas de aula eu ainda não tinha finalizado o trabalho. No último encontro de dessabor, antes da banca, a orientadora fez afirmações severas ao meu respeito, disse que eu tinha comportamento vitimista e que talvez eu nem conseguisse trabalhar como TO, dentre outras pérolas. Saí tão perturbada da casa dela que eu estava aceitando tudo aquilo como verdade. Pra piorar chegou o dia da banca. Eles me reprovaram na disciplina alegando que o meu trabalho estava mal escrito e que não havia condições de aprovação. A sala parecia um velório, porque as colegas de turma me homenageariam na formatura pelo exemplo de luta. Alguns professores disseram para as alunas que aquelas cenas eles nunca tinham presenciado nem em banca de mestrado. E pra reforçar estereótipos, a orientadora me abordou na saída da banca para dizer que ela iria me aprovar com nota 5,0/10, mas que diante das colocações do debatedor, ela não teve outra opção. Na verdade, ela atribuía que eu não teria condições de tirar uma nota maior que cinco, mas jamais assumiria a sua negligência e indiferença enquanto orientadora.

Por fim, participei simbolicamente da formatura com a minha turma, recebi a homenagem. No ano seguinte, cursei a disciplina novamente e uma professora que assistiu à banca se ofereceu para orientar o meu trabalho. Sugeriu mudança do tema e, assim, fechei com chave de ouro. Lógico que nessa segunda experiência fiquei sob os holofotes de parte dos professores, mas consegui desmistificar o estigma da “aluna problema”, concluindo o trabalho em menos tempo e com nota dez.

4- À distância de anos, como você olha a sua trajetória como negra no curso e o que você tem a dizer para a branquitude?

Por falar da distância de anos, eu gostaria de voltar um pouco mais ainda nessa trajetória escolar. Já na infância experimentamos os primeiros desafios para nos manter nesse universo da “Educação”. O silêncio, a indiferença e a perversidade podem ter um papel relevante no futuro acadêmico e na vida de alunos negros. Dentre algumas experiências marcantes da infância, não posso deixar de relatar que, por tanta timidez, baixa estima e tristeza ao perceber a diferença de tratamento e hostilidade de educadores, eu reagia com choro. Eu cursava a 2ª série do ensino fundamental, quando uma professora sugeriu que minha mãe me levasse ao médico porque eu era “muito nervosa”. Fui medicada por alguns dias e graças à sensatez de minha mãe, a medicação foi suspensa, porque eu só dormia. Anos se passaram e eu pude compreender que aos sete anos eu me deparava com uma professora racista, mas no jogo psicológico ela transferia a responsabilidade do nervosismo para mim.

Eu olho para toda essa trajetória compreendendo que ainda vivemos os mesmos problemas e que se mantém uma forte estrutura do racismo que não rompe com essas práticas discriminatórias, nem por parte dos professores, nem dos alunos. Há um desinteresse de mudança de paradigma e uma perpetuação desse modelo colonialista.

Como passei boa parte da experiência escolar sem encontrar os pares, tive que fazer um exercício interno para lidar com as adversidades e sempre assumi uma postura que me garantisse respeito e colaboração. Noto que a maturidade foi me permitindo mudar a performance a cada etapa da minha vida.

Sinceramente, à branquitude eu nem quero falar muito. Apenas que o problema do racismo não é nosso. Eles que terão que se resolver porque foram eles que criaram esse problema e são eles que têm dificuldades em nos aceitar. Rejeitam a nossa cor, o nosso cabelo e a nossa existência. Demonstram, com este comportamento, uma certa fragilidade e se sentem ameaçados de perder a autoridade, o status e o poder.

Gostaria de deixar aqui algumas reflexões à nossa negritude. Não podemos mais perder tempo com os olhares ou julgamentos alheios. Nós não somos o que eles dizem ou pensam ao nosso respeito. Muitas vezes, se faz necessário desviar a atenção e não se deixar intimidar. Ser muito bom naquilo que desejar ser ou fazer aumenta a segurança e a autoconfiança. Isso nos torna menos reativos, porque só reagem negativamente aqueles que não se reconhecem na sua totalidade. Devemos sim, fortalecer as nossas crianças, ensiná-las a construir conhecimentos para que se tornem jovens e adultos com um boa autoestima e preparados para enfrentar as circunstâncias da vida de forma mais assertiva e com perspectivas de vida mais prósperas.

5- Como é sua vida profissional em uma das cidades mais racistas do país, o antro da ostentação da descendência italiana?

Há tempos venho fazendo da minha vida pessoal e profissional um grande observatório. Faço leituras das situações que envolvem o meu cotidiano sem me deixar contaminar pelas mazelas. Tenho me concentrado em reconstruir conhecimentos, e acima de tudo, redesenhar o meu futuro. São 24 anos de trajetória profissional que me trouxeram expertise na forma de me relacionar com o outro. Tenho sempre em mente que aquele que te subjuga, diz mais de si próprio. Então, tenho preferido observar atentamente onde e como eu posso me inserir no contexto, na postura e no diálogo com os profissionais e clientes que acompanho e quem são as pessoas que estão ao meu redor.

Nos últimos oito anos vivenciei experiências com pessoas de diferentes classes sociais e tive uma grande oportunidade de exercitar o novo em mim. Várias situações de racismo velado, de um viés inconsciente, no entanto, eu lançava o meu olhar sobre aquelas pessoas e me perguntava: “Porque eu haveria de dar tanta importância ao pensamento de alguém que eu mal conheço? Como essa fala pode impactar nas minhas emoções?” O que o outro pensa sobre mim não me diz respeito. Então, em relação à Jundiaí, eu sigo livremente, focando no meu trabalho, pois há sempre alguém precisando do que eu sei fazer…

Fabiane Albuquerque (Arquivo Pessoal)

Por Fabiane Albuquerque, doutora em sociologia

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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