Estado de exceção barra avanços no enfrentamento ao racismo

O estado de exceção [coalizão dos segmentos conservadores e reacionários] poderá – se não for freada a tempo – desarticular as principais conquistas políticas do movimento negro, nos últimos anos.

Por Juarez Xavier Do Alma Preta

O foco político em áreas estratégicas – como a educação superior -, com o estrangulamento de recursos [cortes de verbas para a pesquisa e para a contratação de servidores docentes e técnico-administrativos], objetiva afetar as políticas públicas favorecedora [políticas de cotas raciais] dos avanços políticos e sociais no enfrentamento ao preconceito, à discriminação e ao racismo.

O congelamento do orçamento público implica nas universidades públicas desmontarem as políticas institucionais na pesquisa [financiamento de linhas, redução dos programas, enxugamento das bolsas e desarticulação da mobilidade], e esfacela as ações de permanência universitária [redução das vagas em restaurante universitário e residência estudantil].

Essa política – em médio e longo prazos – manterá o privilegio do acesso à educação superior de qualidade nas mãos da classe média, branca, urbanizada, patrimonialista e protofascistas, para manter o monopólio das funções estratégicas do estado e do mercado, característica do ensino universitário no século 20.

As políticas de acesso ao ensino público e inclusivo – reivindicada ao longo de quatro décadas e asseguradas como políticas públicas no século 21 por força do movimento negro – põem em xeque esse dispositivo que converte direitos em privilégios.

De todos “os capitais”, o cultural é o mais poroso. Seu controle é estratégico. Ele é capaz de questionar os demais “capitais” [econômico, político e social], no plano das ideias políticas, e denunciar a “ilegitimidade” da concentração de renda, cultura, política e poder numa reduzida franja social.

O capital econômico –segundo Jessé Souza com base nos dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA)- concentra-se nas mãos de 1% da população brasileira: os super-ricos.

Esse reduzido núcleo –desde o século 19- apropria-se das riquezas materiais e simbólicas [infraestrutura de produção e reprodução do capital e das “ideias”], e constrói uma das mais perversas estruturas sociais, entre as maiores economias do mundo.

O apartheid territorial –“cidades iluminadas” (condomínios de luxo) versus “cidades opacas” (aglomerados vulneráveis nas periferias)- é a materialidade da discriminação racial. A população negra concentra-se nas regionais mais pobres, vulneráveis e desassistidas.

O capital social – arranjo produtivo local que alimenta o sistema de privilégios da burguesia e da classe média patrimonialista (empregados domésticos, carpinteiros, varredores, jardineiros)- é uma estrutura que congela a população pobre na base da pirâmide da sociedade, com a articulação das violências de raça/etnia, gênero e classes sociais.

Sua função é naturalizar as desigualdades e disseminar “as fábulas” que alimentam o conformismo (“democracia racial”, “passividade do brasileiro”, “jeitinho” para viver na miséria, “meritocracia” e “merecimento” dos “superiores”).

Ele dá sustentação material ao “racismo científico” [classes “superiores” e classes “inferiores”] e às diversas formas de violência social, base da política das classes dominantes no país há séculos (abolição sem indenização, financiamento da imigração para o “branqueamento” da população, criminalização da pobreza, encarceramento em massa de pobres e pretos).

A função do capital político é dar base legal ao racismo institucional.

Difunde-se uma falsa “verdade” de que há leis que pegam e leis que não pegam.

Omite-se, no entanto, que “todas” as leis que favorecem o capital “pegam”, e que “todas” as leis favorecem o enfrentamento ao capital “não pegam”.

A legislação do imposto progressivo, da taxação das grandes fortunas e do direito de herança (mecanismos adotados em diversos países capitalistas há mais de um século) “dormem” no “berço esplendido” da burocracia do congresso (câmara e senado).

São Paulo - Estudantes da rede pública de ensino fizeram uma passeata pedindo melhorias na educação, a participação da comunidade na gestão do ensino e criticam a reorganização escolar (Rovena Rosa/Agência Brasil)

As ações políticas adotadas pelo movimento negro nos últimos anos [identificação do estado como agente do racismo, argumentação política baseada em dados e informações macroambientais, elaboração de políticas públicas, adoção de políticas públicas governamentais] fragilizaram, mas não paralisaram a máquina genocida da violência seletiva: aparelho destruidor de corpos não normatizáveis e “indisciplinados”. Matam-se, todos os dias e todas as horas, negros, mulheres, gays, lésbicas, travestis e pobres.

Os números comprovam o fenômeno.

Cinquenta e oito mil, quinhentos e cinquenta e nove pessoas foram assassinadas, vítimas de homicídios dolosos, lesões corporais seguidas de morte, latrocínios e ações policiais (Anuários do Fórum Brasileiro de Segurança Pública).

A maioria das vítimas é de jovens, negros e moradores nas periferias (Mapa da Violência/2015).

As políticas públicas de governos asseguraram avanços sociais importantes [a criminalização do racismo, o estudo da história da África e dos africanos, que alterou a LDB, à constitucionalidade das políticas públicas de acesso ao ensino superior na modalidade de cotas raciais], mas não paralisaram as letalidades seletivas do estado. Houve conquistas desde a constituição de 1988. Entretanto, foram mantidas as bases que sustentam o dispositivo repressivo contra a população pobre, em geral, e negra, em particular.

As pesquisas da jovem intelectualidade negra –e aliados intelectuais na academia- pós-fundação do discurso moderno do movimento negro [com o lançamento do Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial, em 1978, em plena ditadura civil-militar] contribuíram e contribuem para desvendar esse paradoxo: avanços nas políticas públicas, mas aumento do genocídio.

Elas mostram que são necessárias políticas de estado, e não “apenas” de governo.

Enquanto as políticas públicas de governo atraem o movimento negro às fronteiras das igualdades de oportunidades, as políticas públicas de estado questionam as bases de sustentação dos privilégios dos segmentos sociais beneficiados pela segregação.

A adoção de políticas públicas de estado contra o racismo implica a desconcentração do capital econômico [no extremo dessa política, leva à “expropriação” dos “expropriadores”, como se viu em países africanos], do capital social [quebra a dinâmica da apropriação do estado por um grupo reduzido da população para “fruir” de seus privilégios], do capital cultural [amplia o acesso dos segmentos segregados ao ensino superior e aos postos fundamentais do estado e do mercado] e do capital político [os representados se apresentam e passam a reivindicar políticas que atendam aos seus interesses étnico-raciais, gênero e classe].

A história de adoção de políticas públicas de estado [construção do estado de bem estar social] evidencia esse processo, hegemônico entre os anos de 1950 e 1980, antes do Consenso de Washington, em 1989, que generalizou o projeto “neoliberal”.

Ao pesquisar as bases dos privilégios da sociedade brasileira, a partir do viés étnico-racial, e criticar as condições sociais da burguesia e da classe média patrimonialista [segmentos que usufruem da concentração dos capitais econômico, cultural, social e político], a intelectualidade negra contribui com a aceleração do “processo da revolução” social no país.

Esses estudos evidenciam que a disputa pelas políticas públicas fundamentais é, na realidade, a disputa pelos recursos –materiais e simbólicos- do estado, e das suas possibilidades de realização.

Se o estado é o promotor do racismo institucional, como reconheceu o governo na década de 1990, sob a pressão do movimento negro, cabe ao estado, então, a responsabilidade pela superação das condições que reproduzem o preconceito, a discriminação e o racismo, que implicam a morbidade da população negra.

Ao satanizar o estado [locus de tudo que é mau] e divinizar o mercado [locus de tudo que é bom], segundo a retórica do governo que impôs o estado de exceção, procura-se legitimar o desmonte do estado, e justificar a privatização dos direitos sociais, que passam a ser considerados “serviços”.

Essa política –adotada na primeira eleição presidencial pós-ditadura civil-miliar- e reproduzida nos dois governos seguintes, foi derrotada em três eleições presidenciais consecutivas, e volta à baila com o golpe constitucional em curso.

A posse do estado, portanto, pelo núcleo golpista afeta as lutas políticas de enfrentamento ao racismo, e são as bases do “fascismo social” que retroalimentam o apartheid.

Enfrentar essas políticas de desmonte do estado –desarticulação da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial [Seppir], espaço de articulação de políticas públicas reversivas- é dar continuidade às ações de combate ao preconceito, à discriminação racial e ao racismo.

É, em síntese, contribuir para frear o retrocesso político do estado de exceção e suas consequências sociais devastadoras, no presente e no futuro, para a população afrodescendente.

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