Estudante negro de medicina faz relato chocante sobre Brasil…

O relato chocante de um estudante do Togo sobre o racismo no brasil pode até parecer surpresa para alguns, mas não para quem é negro e nativo, pois isso é nossa realidade cotidiana desde que nos demos conta de quem somos dentro dessa sociedade hipócrita em que vivemos. Eu tenho um monte de história a esse respeito, mas não vou nem perder meu tempo, pois o relado desse jovem é mais que o bastante no momento.  Para quem não sabe o Togo é um pais Africano que fica localizado no oeste da África. Para ser mais especifico  o nome é República Togolesa, limitado a norte por Burkina Faso, a leste pelo Benin, a sul pelo OceanoAtlântico e a oeste por Ghana. A sua capital é Lomé.

Por Fleury Johnson Do Afro21

Um olhar externo pode até trazer nova luz sobre o que os nativos brasileiro sofrem por aqui cotidianamente, porém não chega nem perto do cotidiano de quem vive nas periferias suburbanas. O estudante de medicina Fleury Johnson veio do Togo, para estudar na Universidade Federal do Rio de Janeiro em 2011, esperando encontrar um país livre de racismos, xenofobias e outras doenças sociais, um pais em que negros e brancos vivem harmoniosamente como tenta sugerir a propaganda do Brasilno exterior. Imaginava que aqui os negros teriam acesso a tudo e as oportunidades eram iguais para todos. Porém a realidade do Brasil,  lhe atropelou feito uma desagradável surpresa.

Fleury então escreveu um impactante depoimento em seu blog, detalhando esse confronto com a realidade que lhe marcou profundamente, e que merece ser transcrito aqui – sob a estranha sensação de reconhecermos uma vergonhosa porém evidentemente e verdadeira realidade brasileira:

Sou Fleury, estudante de medicina na UFRJ. Cheguei no Brasil em 2011 através de um programa de convênio entre o governo brasileiro e o governo do meu país. Fora do Brasil, temos a visão de um país onde os negros têm acesso a todos os patamares. Chegando aqui, a realidade é completamente outra:

Eu me lembro que quando eu dizia que eu sou do Togo, as pessoas me perguntavam: o que é isso? Outros ainda perguntavam: fica em qual país da Angola? É o Congo? Eu dizia “não, é o Togo”, e tem infelizes que respondiam – “é tudo a mesma coisa”. A minha resposta era: então Argentina e Brasil é tudo a mesma coisa. O que mais me surpreendeu foi o dia que eu estava no ponto de ônibus na ilha do fundão e parou um carro na minha frente, e os alunos que estavam dentro do carro, e vestiam camisas da “engenharia UFRJ”, gritaram para mim: volta para o seu país, angolano. Eu fiquei triste mas não por mim, por eles. Fiquei me perguntando como alguém consegue passar para o curso de engenharia e não sabe que ser preto com cara de estrangeiro, não quer dizer ser angolano. Eu fui entender esse pensamento defeituoso um tempo depois: a imagem de que a África é um país, não um continente que tem 54 países. Outra coisa a mencionar é a história da África aqui vendida de pobreza e de miséria.

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Dá para contar os negros na faculdade de medicina:

Em 2011 (ano em que eu fazia curso de português para estrangeiros), eu disse para um amigo que iria começar a faculdade de medicina em 2012, ele me disse: você sabe que você seria praticamente o único negro da sua sala? Eu disse: como assim?

Realmente em 2012, quando entrei na faculdade, dava para contar os negros na faculdade.

Confesso que antes de entrar na faculdade, eu era contra o sistema de cota, mas devido à realidade vivenciada dentro da faculdade de medicina isso mudou. Um certo dia no ano de 2012, eu estava sentado em um banco no campo de Santana, eu vi uma mãe dando banho no seu filho nas lagoazinhas do parque, e depois lhe colocou o uniforme da escola. É óbvio que essa criança não tem as mesmas oportunidades que outras crianças que estudam em um colégio particular, volta para casa no almoço, descansa, come e volta para a escola. É muito importante o sistema de cota numa perspectiva de mudar a história, a situação financeira de muitos negros, indígenas, porém vemos que o sistema sofre muitas fraudes. A justificativa dos fraudadores do sistema de cota é a “autodeclaração”. Tem que ficar escuro para todo mundo que não é negro quem quer mas realmente quem tem o fenótipo. Umas das justificativas, por exemplo, é “ahh eu sou branco mas meu tataravô é negro”. Não importa! Ter sangue negro na sua família não quer dizer que você com todo o fenótipo caucasiano seja negro.

É importante ressaltar que tendo uma gota de sangue preto na árvore genealógica não faz a pessoa ser negro, senão seria como se a gente partisse da lógica que o sangue negro fosse sujo (referência a” one-drop role” regra de uma gota” lei racista utilizada ainda hoje por alguns americanos). Eu sou um exemplo, meu sobrenome é Johnson, porque sou descendente distante de um inglês branco, e isso faz de mim um branco?! Repense. Quem sofre racismo nas ruas é o negro, quem sempre é o primeiro suspeito de roubo é o negro, não é você que se autodeclarou sem ter nem o fenótipo da raça negra, e que acha o lábio grosso feio.

Um dia eu fui procurar estágio em um hospital e disse:

– “Sou estudante de medicina e marquei para conversar com o Dr fulano hoje por causa do estágio”. – A mulher branca que me atendeu me perguntou: você quer estágio para aluno de fisioterapia? – Eu disse não, estágio para aluno de medicina – Ela repetiu de novo: estágio para alunos de fisioterapia? Alguém sabe a semelhança entre as duas palavras? Porque eu não vejo.

Outra caso que aconteceu é que no sexto período da faculdade, eu examinava uma paciente todos os dias, pois era responsável junto com outro colega pelo leito em que ela estava. E sempre que eu chegava para examinar, eram vários xingamentos e ela me pedia para chamar o médico. Eu achava que era porque eu sou estudante, até que, um dia, eu cheguei quando ela estava sendo examinada por uma enfermeira branca, e ela disse: o enfermeiro chegou. A enfermeira lhe disse que eu que era o médico e ela a enfermeira. Entendi então o porque ela me pedia para chamar o médico.

Esses são alguns casos entres tantos outros que aconteceram comigo e com outros estudantes de medicina negros, como o caso da Suzane Pereira da Silva, estudante de medicina da universidade Santa Marcelina em São Paulo. A Suzane, ao postar uma foto segurando um cartaz escrito “A casa grande surta quando a senzala vira médica”, foi agredida por uma médica que disse: você acha que vai entrar no hospital com esse cabelo?

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Descobri que o padrão de beleza no mundo era ser loiro de olhos azuis:

Em 2012 uma amiga me perguntou se eu sabia qual o estado padrão de beleza no Brasil. Eu pensei: a Bahia tem mais negros, logicamente é a Bahia. Ela disse “não”, e então chutei o Rio de Janeiro, pois após a Bahia é o estado com maior número de negros. Ela respondeu “não. É o Rio grande do Sul e Florianópolis SC”, e ela emendou ainda: é padrão de beleza no mundo inteiro. Fiz-me uns questionamentos como: será que é mesmo? Em que mundo eu vivia e não sabia disso?

As crianças nas escolas sofrem agressões psicológicas como: seu cabelo é ruim (outra coisa que eu me espantei quando eu ouvi; o cabelo é ruim porque é crespo?). Devemos entender que esse padrão de beleza é só europeu e foi imposto para a maioria do países do mundo. E não é nada universal porque eu já visitei 7 países da África e tenho certeza que na África negra, o padrão de beleza é outro. É bonito ter cabelo crespo, enrolado, lábios e nariz grande.

Tem realmente graça no olho verde ou azul e cabelo liso? Será que quem nasceu num país onde o padrão de beleza é igual ao do Brasil acaba achando bonito porque desde pequeno ouvia falar disso? Na África valorizamos a diversidade e cada povo tem a sua beleza. Assim como negro é bonito e o branco também.

Ano passado a estudante de medicina da UERJ Mirna Moreira e outras pretas foram agredidas em uma rede social quando participaram de um concurso de beleza por algumas pessoas que se acham superiores ou melhores. Não podemos dizer que o racismo não existe que é coisa da cabeça do negro.

Os relacionamentos afro-afetivos são uma forma de resistência, de luta porque desafia esse padrão de beleza estabelecido, pelo fato dos negros se relacionarem entre si. Um negro e uma negra com ensino superior se casando e construindo uma família, dariam oportunidade aos filhos de ingressar à universidade também. Isso aos poucos começaria a mudar a imagem da sociedade brasileira. Isso é importante para que o policial ao ver um preto não pense logo que é um bandido.

Fui parado um dia frio às 19h. O policial me disse que me parou porque ele tem implicância com o tipo de casaco que eu estava usando, uma falta de respeito. Duvido que se eu fosse branco e loiro, ele teria me parado porque tem implicância com meu casaco.

Aqui em casa meus amigos (todos pretos) falaram para a gente ir até para o mercado arrumado. A primeira vez que fui desarrumado, uma mulher que estava na minha frente atravessou a rua rapidamente. Depois que ela percebeu que entrei no mercado, ela também entrou e foi puxar assunto comigo porque percebeu que eu estava indo só comprar. Ela percebeu então pelo meu sotaque que eu sou estrangeiro e se animou em conversar mais. Imagina o que passa o negro pobre da favela.

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Nós negros do continente africano não devemos achar que a luta pela igualdade racial é só dos negros brasileiros, porque quando estamos calados, andando na rua, sofremos preconceito até abrir a boca e falar com sotaque.

Um canal de televisão disse que a nova série que está passando no seu canal que tem como protagonistas um casal negro tem como objetivo de mostrar aos telespectadores um casal negro poderoso. Na série o casal canta, nada novo de baixo do sol. Todos nós sabemos que a música e futebol sempre foram um meio de ascendência do negro no Brasil. Por quê não se inspirar na nova onda? Novos médicos e engenheiros pretos? Não seria mais inspirador? Não faria sonhar aquele jovem negro que sonha em ser médico, mas acha que não pode porque nunca viu um médico negro? Não faria refletir aquela mulher que me disse na academia que eu não tenho cara de médico mas de pagodeiro quando ficou sabendo que eu estudava medicina?

É claro que o Brasil tem mais infraestruturas que o meu país até porque é a 7ª economia do mundo, mas eu não quero ficar em um país onde o cabelo dos meus filhos seria motivo de piada na sala de aula (isso é expor a criança à agressões psicológicas), num país onde meus filhos seriam considerados como potenciais bandidos, onde quando eu estaria dentro do meu carro, posso ser parado achando que eu roubei o carro.

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