Estudar não é para filho(a) de pobre, não!

Inicio esse texto como uma das frases mais marcantes, na minha opinião, do escritor Paulo Freire: “Seria uma atitude ingênua esperar que as classes dominantes desenvolvessem uma forma de educação que proporcionasse às classes dominadas perceber as injustiças sociais de maneira crítica”

Nesse momento de pandemia e desmontes de Políticas Públicas faz todo o sentido analisarmos como seria nosso País se a educação crítica e libertadora fosse de qualidade para todos e todas. Talvez eu esteja sendo muito otimista ao pensar que se todos nós tivéssemos acesso a boas leituras, escolas equipadas, professores capacitadas e valorizados o Brasil estaria quase próximo de uma nação igualitária.

Trago nesse texto vivências na minha memória que carrego até hoje. Essa vivência diz respeito a construção social que muitos carregam como tatuagem ao dizer que ensino superior não é para pobre. Sabemos que o Brasil foi o último País da América do Sul a abolir a escravidão, sabemos também que todo teatro armado no dia 13 de Maio (Dia da Abolição da Escravidão) continua sendo reproduzido em muitas instituições educacionais até hoje. Afinal, princesa Isabel era branca e nesse País racistas quem tem o mérito de receber o título de “Fada Sensata” são as mulheres brancas. Nesse momento não vou me aprofundar no sistema escravocrata que deixou a herança que nós do segmento negro enfrentamos até hoje. Afinal, a branquitude não reconhece seus privilégios.

Como muitas mulheres negras, vim de uma família com poucos recursos financeiros. Tenho 2 irmãs e 2 irmãos, sou a mais nova. Meu pai e minha mãe sempre nos incentivaram a ir à escola e a valorizar o conhecimento, muito embora não tenham acessado o ensino superior. Para ambos o ensino superior era visto como a única herança que poderiam deixar para mim, meus irmãos e irmãs. Passados os anos, foram se finalizando as etapas de ensino fundamental e ensino médio. Minha irmã, Vanessa foi a primeira a terminar o ensino médio e não titubeou, disse que queria entrar na faculdade. Em 2005 ainda não haviam políticas afirmativas de inclusão.

Infelizmente, o ensino das escolas públicas em 1999 não era tão diferente do que é hoje. Minha irmã prestou seu primeiro de muitos vestibulares: Unicamp, Unesp, UFTM; chegou em casa com os olhos inchados. Descobriu de forma dolorosa que universidade pública não era para pobre.

Nesse período de desgaste emocional e de autocobrança ainda tivemos que lidar com membros da família extensa, credores e vizinhos dizendo que ensino superior não é para pobre. Foi um período em nossas vidas de envergar, mas não quebrar. Minha irmã sempre foi uma das melhores alunas da sala e devido a defasagem da escola pública minha mãe resolveu pedir uma bolsa de estudos no Colégio Objetivo da cidade de Uberaba. E sim, ela conseguiu a tão almejada bolsa no curso de pré-vestibular. Não tenho dúvidas que esse foi o divisor de água em nossas vidas. Em 2002 minha irmã passa no curso de Enfermagem Padrão da Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro, hoje UFTM.

Lembro-me como se fosse hoje o sorriso estampado em nossos rostos, as lágrimas de alegria e o gostinho de satisfação salivando. Em 2005 a família toda reunida na colação. Até os que disseram que faculdade não é para pobre estavam lá.

Minha irmã foi referência para todos nós, abriu os caminhos. Com a gestão do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva foram implantados PROUNI e políticas de cotas nas Universidades Públicas. Esses ações foram de suma importância para que meus outros 2 irmãos e irmã também pudessem entrar no ensino superior: PROUNI em Direito, Odontologia e Medicina.

No final de 2019 quando li a notícia de que, pela primeira vez, a população que se declara de cor preta ou parda passou a representar mais da metade – o número exato é 50,3% – dos estudantes de ensino superior da rede pública, de acordo com a pesquisa Desigualdades Sociais por Cor ou Raça Brasil, divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), me veio um filme e vários questionamentos, sem muitas respostas. Nesse processo de perguntas e respostas, não pude deixar de questionar que corpos negros de acordo com os dados do IBGE são a maioria no ensino superior. Mas em quais cursos? Medicina, Direito e Engenharia? É provável que nossos corpos ainda não estejam ocupando cadeiras nos cursos elitizados.
Nessas reflexões também não deixei de fora minha aprovação no Mestrado Profissional de Planejamento de Análise de Políticas Públicas na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”(Unesp), Campus de Franca. Em uma sala de 26 alunos(as), sou a única mulher negra.

Apesar de ter tido pouco contato com colegas de sala e com o corpo docente, pois logo no início das aulas foi decretado estado de calamidade pública devido a pandemia (COVID-19), sou graduada em Serviço Social pela Unesp e no ano que entrei não havia nenhuma política afirmativa nessa instituição.

Entrei na Universidade em 2008 e foi um grande aprendizado. A universidade pública é também um espaço que reproduz o racismo estrutural e o machismo estrutural. Nos meus 4 anos de curso, todos(as) meus professores e professoras eram brancos.

A falta de diversidade que permeia a academia atrofia o desenvolvimento da diversidade que é inerente do ser humano.

Não tive contato com intelectuais negras. Ou seja, meu curso em especial desconsiderou a literatura produzida por mulheres negras e toda resistência que elas representam: são a continuação de nossa ancestralidade. O epistemicídio que nega a elas o lugar de sujeitos de conhecimento tem que ser combatido especialmente nas Universidades Públicas. Faço essa crítica, pois sou formada em um curso formado majoritariamente por mulheres. Perdemos uma grande oportunidade de mulheres lerem mulheres na academia, no curso de Serviço Social e em todos os outros espaços possíveis.

Estamos em 2020 e as mulheres negras continuam sendo invisibilizadas. Basta olharmos para as bibliografias utilizadas em milhares de trabalhos acadêmicos para nos deparamos com um sistema hegemônico e heteronormativo que privilegia o homem branco.

Ocupar esse espaço que dizem que não é para mim é um ato político e ao mesmo tempo um desafio. Desafio de tantos outros(as) estudantes negros que foram alijados do ensino continuado e do acesso ao nível superior de ensino, seja mediante condutas comissivas, tais como ouvir que aquele espaço não lhe pertence, seja através de condutas omissivas, travestidas de uma meritocracia obscurantista e irreflexiva.

Compreendo que sermos maioria quantitativa no ensino superior público é um grande passo, entretanto, ainda somos vítimas do genocídio do Estado que enterra sonhos, habilidades, competências, histórias, corpos negros.

Igualmente, o fato de sermos maioria percentual da sociedade não significa que sejamos a predominantes no Estado, esse ente juridicamente estruturado mas que é composto essencialmente de pessoas, refletindo uma estrutura de dominação.

Entramos na faculdade, mas de que forma estamos permanecendo? Manter-se no ensino superior exige recursos financeiros. O Brasil é extenso e composto na maioria por cidades pequenas. As faculdades e universidades públicas em sua maioria estão concentradas cidades médias e de grande porte. Não basta o acesso.

Não podemos minimizar nossas vitórias. Entrementes, o momento exige enfrentamentos e um olhar coerente para educação, pois ela ainda é para poucos. Passamos de um período em que o acesso a livros era vedado, a outro em que é amplo, dentro de um contexto de discursos avessos à censura. Não obstante, o ensino superior guarda em si um ranço antidemocrático elitista, em que a forma, a gramática e até mesmo as palavras são apresentadas de modo tal a dificultar não o acesso, mas a compreensão do texto, mesmo pelos pares. O ambiente acadêmico não é homogêneo, certamente, de modo que reclama abertura para a diversidade. Abertura para a pesquisas mais próximas das diferentes identidades e realidades que se inserem nessa ambiência. Consigno meu posicionamento de que as universidades precisam estar mais próximas do público em geral, sem prejuízo da acuidade científica, mas cautelosa de sua compreensibilidade na maior medida possível, inclusive pelos leigos.

A garantia setorial de acesso ao ensino superior ainda não refletiu de forma substancial na organicidade universitária e nas rotinas de pesquisa e extensão que ainda preservam o modelo eurocêntrico.

A manutenção das rotinas e metodologias pré-inclusivas dentro do ambiente universitário escamoteia um processo silencioso de alienação do segmento negro ingresso, o que reforça a homeostasia do sistema hegemônico que privilegia a branquitude: mudanças pontuais para preservação do próprio sistema.

A falta de acesso a políticas públicas afirmativas é um entrave ao pleno desenvolvimento de toda uma nação que se propõe pluralista e democrática. Alertemos que em pleno Século XXI, o conhecimento ainda é privilégio de poucos; a maioria das escolas públicas ainda não contam com bibliotecas diversificadas; nem todas residências têm acesso à internet.
De fato, conhecimento é poder; informação uma arma. Arma no sentido de manipulação, prova disso é que estamos vivendo a era de fake news. Pseudointelectuais escrevem sobre vários assuntos e o leitor que não estiver atento de forma crítica poderia vir a crer, inclusive, que a terra é plana. O conhecimento adquirido por leituras transversais é fundamental para construirmos nossas opiniões. Se remontarmos à época da Idade Média, perceberemos o medo que toma o opressor que vislumbra a possibilidade de o oprimido ter acesso ao conhecimento.

Em tempos de retrocesso, é imprescindível que nos descolonizemos de nossos opressores.

Sibele Gabriela dos Santos, assistente social, graduada em Serviço Social pela Unesp, Pós-graduada Políticas Públicas-SUAS, MBA em Administração Pública e Gerência de Cidades, Mestranda em Planejamento e Análise de Políticas Públicas na Unesp, Pós-graduanda em Africanidades e Cultura Afro-Brasileira, Pós-graduanda em Direitos Humanos, Responsabilidade Social e Cidadania Global pela PUCRS e Líder do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco pelo Fundo Baobá.

Leandro Bozzola Guitarrara, advogado, Bacharel em Direito pela Unesp, Pós-graduado em Direito Previdenciário e Pós-graduando em Direito Público com Ênfase em Gestão Pública pelo Demásio.

 

Leia Também:

Branquitude acadêmica, ações afirmativas e o “ethos” acadêmico nas universidades brasileiras


1-  FREIRE, Paulo. Disponível em: https://www.pensador.com/paulo_freire_frases_educacao/, acesso em 23 de maio de 2020 ás 21h35m.


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