Eu, cidade – os centros urbanos africanos fora de estereótipos

“É realmente difícil separar eu mesma de você porque, diferentemente de  todos ao meu redor, eu não tenho outro lugar para chamar de casa. Nós conversamos muito sobre você. Você é fria e severa, mas ao mesmo tempo colorida e divertida. Obrigada por me tolerar”

por Alessandra Alves no Afreaka

 

Frame do curta de Jeff Rikhotso’s, um dos trabalhos de “30 Days and A City” (Divulgação)
Frame do curta de Jeff Rikhotso’s, um dos trabalhos de “30 Days and A City” (Divulgação)

As palavras da fotógrafa Nozuko Mapoma são um diálogo entre ela e sua cidade, Johannesburgo, que mostra a complexidade que caracteriza as relações entre as pessoas e os lugares onde vivem. Essa é a ideia do projeto “30 Dias e a cidade”, criado pelo designer Rendani Missblacdropp nas ruas de Johannesburgo e do qual Mapoma participa: apresentar perspectivas mais amplas e não dicotômicas entre cidades e seus habitantes a partir de intervenções artísticas.

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Em entrevista ao portal This is Africa, Rendani explica que as ideias clichês sobre Johannesburgo o incentivaram a desenvolver a iniciativa: “Ela nasce do sentimento de frustração com os estereótipos sobre a cidade. As pessoas visitam mas não interagem realmente com ela.” A partir de um post em seu blog, Rendani convidou moradores de Johannesburgo a documentarem em poemas, vídeos e ilustrações suas experiências cotidianas com a cidade.

O projeto, de caráter colaborativo, fez Rendani selecionar seis pessoas, entre fotógrafos, designers, ilustradores, escritores e músicos, para dar início à empreitada. O grupo teve trinta dias para propor intervenções que contassem a história da cidade e que dialogassem com seus moradores – uma tentativa de jovens artistas reconstruírem não só Johannesburgo, mas também outras grandes cidades do mundo.

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Na experiência, os participantes realizaram diferentes propostas a partir de variadas linguagens artísticas. Além de fotos, Nozuko Mapoma, por exemplo, também escreveu pequenos relatos diários de sua relação com a cidade, mostrando como a grandeza do centro urbano pode não ser uma parte agradável da experiência de habitá-lo.

 

Esse é o exemplo do relato “Tenho que sair do apartamento”, de 16 de Fevereiro de 2014. Nele, Mapoma diz que detesta dias corridos porque situações sufocantes são terríveis “quando tudo o que você quer é espaço e silêncio”. Outro fato destacado pela artista é a experiência com o transporte público. Para ela, o mais excitante ao usar os ônibus como meio de transporte é a “habilidade de ser parte da cidade sem ser realmente afetada por isso”, sendo o ônibus uma espécie de bilhete de entrada para uma galeria de assentos que te dá acesso a um reality show televisivo.

“Femme” – Andile Buka (Divulgação)
“Femme” – Andile Buka (Divulgação)

Outra proposta intrigante de “30 Dias e a Cidade” é a série “Mulher”, elaborada pelo fotógrafo Andile Buka. Segundo texto publicado pelo fotógrafo no blog de Rendani, o intuito da série “Mulher” era acabar com a necessidade das mulheres dizerem “me amem, me desejem, me reverenciem”. De acordo com Buka, mulheres africanas nem sempre estão preocupadas com sexualidade, como ocorre no Ocidente: “Nós estamos quase sempre elaborando os nossos próprios padrões e redefinindo o que é sexualidade.”

“Femme” – Andile Buka (Divulgação)
“Femme” – Andile Buka (Divulgação)

Talvez unir mulheres e cidades a partir de fotos que exponham as vulnerabilidades de ambas produzisse objetos apenas frágeis. Mas não é isso que as fotos de Buka fazem. Ao mostrar a a subjetividade sedutora, vulnerável e livre da mulher e da cidade, o fotógrafo ressignifica o lugar de ambas, colocando-as como protagonistas de suas próprias narrativas. “É difícil imaginar que ainda hoje as mulheres precisam de permissão para justapor estereótipos sexuais”, analisa Buka.

 

Assim, uma das problemáticas centrais para a realização do “30 Dias e a cidade” é a tentativa de fazer intervenções que mostrem não só a violência, mas também a gentileza dos centros urbanos. A arte pensada a fim de mostrar as contradições e a diversidade de narrativas que traduzem as cidades – dentro e fora da África.

“Femme” – Andile Buka (Divulgação)
“Femme” – Andile Buka (Divulgação)

A partir de uma perspectiva densa, o projeto não dicotomiza as metrópoles africanas a fim de reproduzir estereótipos, mas concebe as contradições desses lugares como mola propulsora para a mudança. Como se expor a ferida fosse etapa fundamental para produzir a vacina contra a correria, a falta de tempo e a desumanidade que podem habitar essas grandes cidades.

 

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