Eu, mulher

Num lugar em que as mulheres são mortas pelos maridos, agredidas pelos filhos, torturadas pelas mini-saias, saltos altos e outras “burcas” do Ocidente, escolhi casar e ter crias, e trabalhar na comunidade. Preta, pobre, favelada, escolho não estar à venda. Nascida na Rua dos Ossos, escolho formar consciências

A fêmea é fêmea em virtude de certa falta de qualidade. A mulher é mais vulnerável à piedade, chora com maior facilidade, é mais chegada à inveja, à lamúria e à injúria. Facilmente se deixa abater pelo desespero. É menos digna de confiança.” Aristóteles

E por que será que eu, pobre, preta, favelada, nascida na Rua dos Ossos, seria interesse para alguém? Seriam precisos quantos crimes, suicídios, ou quantas almas eu teria que vender? (Se o cabra dizia, era Deus, eu tinha que obedecer?)

Devia falar de amor, calar sobre a distribuição de renda, ou dizer retoricamente apenas o que convinha?

Devia mandar à merda toda a minha família? Botar Deus e o diabo em um mesmo caldeirão?

Devia ter pouco pudor. (Tudo o que teu olho toca caberá em tuas mãos).

Porque é preciso entender que o leite e a luta são juntos, no caso de nós, as mulheres. E o que tantas pessoas confundem é que não há um valor para a luta. Militância não é emprego e guerreiras não recebem salários.

Mas eu, preta, pobre, favelada, nascida na Rua dos Ossos, agora estou em evidência – e não como vítima, reparem.

Num lugar em que as mulheres são mortas pelos maridos, agredidas pelos filhos, torturadas pelas mini-saias, saltos altos e outras “burcas” do Ocidente, escolhi casar e ter filhos, e trabalhar na comunidade. Plantamos, casal, sementes de resistência.

Mas quantos crimes precisava cometer para poder estar na mídia?

Pequena, migrante, eu sabia: competência nenhuma eu tinha para seguir os caminhos “normais”. Então escolhi a escola. Sonhei que a educação era a chave para um outro mundo (im)possível. Um mundo em que, menina, nunca mais seria humilhada, nunca mais seria agredida, nunca mais seria violentada.

Mas depois percebi que o respeito aqui não se tem, se compra. O deus pobre do capitalismo cabe em cinco notas de cem.

Por isso escolhi a favela e escolho ser Aqualtune. E quem sabe avó de quantos Zumbis eu serei? Se da serra da barriga das minhas filhas quantos quilombos virão?

Se os Domingos Jorges Velhos já estão na nossa lista…

Mas vou começar outra vez.

Meu nome é Maria Nilda. Nasci na Rua dos Ossos, cidade de Milagres, Ceará, em dezembro de 78. Fui a sétima de oito crianças. Seríamos dez, não houvessem morrido dois.
Cheguei em São Paulo em abril de 79, aos quatro meses de idade, nos braços de minha mãe. Na rabeira da família.

Moramos no Jardim Miriam, numa ladeira que findava lá no Buraco do Sapo.

Não fugi às estatísticas.

Minha primeira filha nasceu no auge dos meus 16 anos de idade.

Casei aos 15. Separei aos 25. Casei novamente aos 28. Hoje beiro os 30.

Aos 8 anos, no Bristol, foram os meus primeiros passos para o que viria a ser minha “tripla jornada”: o grupo de crianças armava a festa comunitária recolhendo os ingredientes do bolo.

O 12 de outubro era nosso.

Na quarta série, a primeira passeata rumo à casa da “psora”, que mais faltava do que ia – e a sua substituta errava o acento da palavra “água”.

Doze anos depois veio a Posse. A reunião de grupos de Hip Hop com o objetivo de “mudar o mundo”, começando por nossos bairros. No mesmo ano, veio o resultado do “encontro” com Paulo Freire no Cursinho Comunitário do ano anterior, 1998: ingressei no curso de letras da USP.

O leite, a luta e letra se uniram de novo.

No ano de 2006 publiquei meu primeiro livro 1, que juntava os muitos fanzines literários, os poezines, distribuídos gratuitamente para quem quisesse ler.

Em 2008, esse livro será relançado pela Global Editora, Coleção Literatura Periférica.
Hoje, a vida de verdade é o trabalho no bairro, o Maloca Espaço Cultural, o segundo casamento (último e para sempre), o amor grande, imenso, multiplicante, a família, extensa, a comunidade, a pesquisa de poesia africana no mestrado e a esperança de interferir verdadeiramente em assuntos importantes.

O meu objetivo é ferir.

É vingar os meninos mortos.

Ativar a Periferia.

Então, será que é por isso que eu, pobre, preta, favelada, nascida na Rua dos Ossos, já sou do interesse de alguém?

É que o sonho capitalista consiste em comprar nossas as armas: o Hip Hop, as lideranças comunitárias, transformar a capoeira em brinquedo e as pessoas que não brincam em exemplo a ser seguido – o que dá no mesmo.

Mas, neste Brasil, onde uma em cada quatro mulheres enfrenta violência doméstica; onde, de cada dez mulheres agredidas, mais de sete são vítimas de maridos, pais, irmãos, padrastos ou filhos; onde, de cada dez mulheres que sofrem violência sexual, seis a sofrem em relações familiares; onde 66% dos assassinatos contra mulheres são cometidos por companheiros ou ex-companheiros 2; pretendo não ser a vítima.

É por isso que eu, preta, pobre, favelada, nascida na Rua dos Ossos, escolho formar consciências. Escolho informar que a luta (ainda) é uma luta entre classes.

Preta, pobre, favelada, escolho não estar à venda. Botar o dedo na ferida feia da nossa péssima distribuição de renda.

Nascida na Rua dos Ossos, escolho cuidar das minhas crias.

Nós vamos mudar o mundo acreditando nas bases, liderando um exército de crianças, nos armando de dentro pra fora, cuidando das nossas crias, negando a acumulação financeira capitalista, suas invenções protecionistas (machismo, racismo etc.) e sua censura, que no “oito de março original” assassinou mulheres operárias.

Olhos abertos para mulheres e homens. A luta ainda é a única saída.

Por: Dinha

 

Fonte: Diplomatique

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