Eu não ando só: por que mulheres negras precisam umas das outras

FONTEPor Cris Guterres, de Universa
"Gosto de pensar que o meu padrão é melaninado e sou grata por cada mana preta que teve o caminho cruzado com o meu" (Foto: Getty Images)

A escritora Conceição Evaristo nos consagrou com o termo ‘escrevivência’, e é com ele que inicio esse texto para falar de nós, mulheres pretas, e da importância de nos fortalecermos umas às outras. Eu, que venho de uma família matriarcal, com muitas mulheres, sempre fui impulsionada por elas, dia após dia, ano após ano.

Um processo que começou pelo olhar cirúrgico e cuidadoso da minha avó materna, dona Lourdes, e foi passando de geração em geração. E ainda há quem duvide da potência da ancestralidade.

É comum, para mim, em momentos como esse, recorrer ao meu mapa afetivo quando me pego refletindo sobre essas questões, pois, assim, tenho um ponto de referência. E, já que estamos falando de referencial, compartilho com vocês uma vivência da infância e como ela foi significativa para que eu entendesse a importância da troca, de construir pontes e partilhar travessias.

Quando eu tinha uns 8, 9 anos, um colega de sala me disse que se a princesa Isabel estivesse viva, eu seria escrava dele. Na época, não havia entendido muito bem o significado daquelas palavras, mas sei que elas me atravessaram e, após, compartilhar sobre o ocorrido com as mulheres da família, entendi real o significado de rede de apoio.

Elas buscaram ferramentas para que eu pudesse me ver de outras formas e tentaram, minimamente, me poupar de qualquer lógica eurocêntrica e racista. Foram, e ainda são, o meu refúgio. Por elas e por causa delas é que consigo tocar as pessoas com as palavras, é por elas que escrevo, porque eu sei o quanto foram invisibilizadas. Quando eu escrevo, eu sou a minha avó, minha mãe, tias e irmã.

Com o passar do tempo, essa rede de apoio se reconfigurou. Saiu da bolha familiar e se expandiu para outras relações. Gosto de pensar que o meu padrão é melaninado e sou grata por cada mana preta que teve o caminho cruzado ao meu. E eis que escrevo a elas por toda coletividade e companheirismo: somos a nossa própria pequena África, em abundância e união.

São histórias, vivências, dores, abraços, afetos e o mundo sendo dividido. São meninas e mulheres com quem tenho o prazer de dividir a mesa e a vida. Pessoas que, mesmo sem compartilhar o mesmo ponto de dor, transitaram por situações semelhantes. Se as conquistas aparecem, e geram resultados, vibramos juntas, em coletivo. Se as adversidades se fazem presentes, somos reativas e seguimos na linha de frente para mudar o jogo, também em coletivo.

Ainda que a sociedade nos veja como a mulher forte, que dá conta de tudo mesmo nos dias mais sombrios, em que racismo, machismo e qualquer outra violência perpassa sobre nós, ter um semelhante ao lado que seja apoio faz toda diferença. Uma ou tantas de nós, que nos coloque para cima, pontuando o protagonismo que exercemos em nossas vidas.

A verdade é que não andamos sós. Recentemente, fui marcada em um post no Linkedin que falava sobre a importância de se “aquilombar”. Sobre a importância de possibilitar um espaço de identificação e acolhimento e me peguei na certeza do quanto essa rede de apoio é potente.

Não há nada mais gratificante do que ver mulheres pretas em movimento, indo na contramão de qualquer estigma negativo que recaia sobre nós. Não apenas uma de nós, mas todas.

E, se você, preta, se sente sozinha, olhe para o lado, porque juntas, todas nós, estaremos lá. Compreenda a importância e a essência de ter com quem contar, experimente sentir medo, insegurança, raiva, amor, alegria, tudo, para além da força. Retire a sua negritude do armário e some com quem multiplica com você. Se fortalecer com a potência da semelhança do próximo nos tira da lógica da sobrevivência. Nós estamos aqui, e eu sou porque nós somos.

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