Bárbara Querino mobiliza rede social, que cita racismo e pede a liberdade dela; vítimas a reconheceram pelo cabelo encaracolado. Condenada alega que fotografava no litoral no dia do crime.
Eu não estava no ato”, escreve a modelo Bárbara Querino, de 20 anos, numa das cartas enviadas a uma amiga para negar a acusação de pertencer à quadrilha armada que, na tarde de 10 de setembro de 2017, roubou um carro e joias de luxo num bairro nobre da Zona Sul de São Paulo
Presa desde 16 de janeiro deste ano em Franco da Rocha, na Grande São Paulo, Babiy, como Bárbara se apresenta profissionalmente, gerou comoção nas redes sociais, principalmente entre o movimento negro. Internautas pedem a liberdade da jovem negra por acreditarem que ela esteja sendo vítima de preconceito racial.
A modelo alega ser inocente. Diz que estava trabalhando, passando por uma sessão de fotografias e filmagens no Guarujá, no litoral paulista, no mesmo dia e horário do crime ocorrido na capital.
“Estava no Guarujá. Estava gravando vídeo”, se defendeu Bárbara na audiência judicial em maio de 2018. Além de modelar, ela é dançarina e promotora de eventos.
Para tentar comprovar seu álibi, ela apresentou fotos, vídeos onde aparece de biquíni e shorts ao lado de outras modelos. As imagens postadas no Facebook, Instagram e WhatsApp com a mesma data do dia do crime foram anexados ao processo.
Garotas também testemunharam a seu favor dizendo que estavam com ela no litoral, a 85 km de distância da capital, no momento do roubo.
Mas a Justiça colocou em dúvida a autenticidade dessas imagens e a veracidade dos depoimentos, e, no último dia 10 de agosto de 2018, decidiu mantê-la presa. Babiy foi condenada a cinco anos e quatro meses de prisão por assalto à mão armada.
“O que se verifica também na prova documental é a mesma imprecisão, porque dela não se pode extrair qualquer dia e horário de postagem das mensagens juntadas, provenientes de mensageria de Bárbara, quando estivesse no município mencionado”, escreveu o juiz Klaus Marouelli Arroyo na sentença que a condenou.
“O que se percebe em meridiana leitura das narrativas daquelas testemunhas, a imprecisão quanto às datas e horários nos quais Bárbara estaria no litoral, acompanhada de terceiros”, rebateu o magistrado.
“Desse modo, cumpre constatar não logrou se desincumbir, do ônus que lhe cabia, qual seja, comprovar cabalmente o álibi que invocou”, sentenciou o juiz.
‘Racismo’
Mas nas redes sociais, os apoiadores de Bárbara entendem que ela acabou condenada sem provas porque as vítimas reconheceram a modelo por causa dos cabelos cacheados. O reconhecimento ocorreu dois meses depois do crime.
Segundo os simpatizantes, uma outra garota, parecida com Babiy, estava com o grupo que roubou o Honda Civic no semáforo da Rua Beltis, no Jardim Marajoara.
Além do veículo, o bando levou carteiras e bolsas da Gucci e Prada, anéis Navete e de esmeralda, alianças H.Stern, óculos Chanel, relógio Suunto, telefones celulares e cartões bancários. As vítimas do assalto, um casal com a filha pequena, não foram feridos.
“Todos pela Liberdade de Babiy Querino. Jovem negra presa injustamente no dia 16/01”, informa texto de apresentação da comunidade #todosporbabiy no Facebook.
A página foi criada pela assistente social Mayara Alves Vieira, de 23, amiga da modelo, que encaminhou ao G1 algumas das cartas que recebeu de Bárbara.
“Foram negados dois HCs [Habeas Corpus, pedidos de liberdade à Justiça] com provas de que eu não estava no ato”, lamenta Babiy em carta datada de 23 de abril deste ano para Mayara.
“A questão da prisão de Bárbara é racismo mesmo. Como é que se reconhece alguém pelo cabelo, estatura e no escuro?”, indaga Mayara à reportagem sobre como as vítimas fizeram o reconhecimento da modelo.
Até a publicação desta reportagem a página que pede liberdade a Babiy tinha mais de 6 mil seguidores.
“Jovem é acusada de assalto. Vítima a ‘reconhece’ pelo cabelo, admitindo não ter segurança disso. A jovem apresenta provas de que estava trabalhando em outra cidade (incluindo imagens)”, postou um internauta.
“O judiciário brasileiro é podre, corrompido, classicista e racista!”, escreveu outra pessoa na comunidade.
Irmãos e primo presos
Além de Bárbara, o irmão dela, Wesley Victor Querino de Oliveira, 19 anos, e o primo deles, William Wagner de Paula da Silva, de 24, também estão presos e foram condenados pelo mesmo crime cometido em 10 de setembro de 2017. Os dois também foram reconhecidos por fotografias pelas vítimas.
Dos três presos, apenas Wesley confessou o roubo ao Honda Civic. Ele inocentou, porém, Bárbara e William, que já haviam negado terem participado do assalto. Alegou ainda que a irmã e o primo não faziam parte do grupo que levou o carro e os pertences da família.
Segundo o casal assaltado, o veículo tinha seguro, mas os outros pertences, não. “Vítimas estimam prejuízo total de R$ 170 mil”, diz trecho do boletim de ocorrência do caso registrado na Polícia Civil. Elas alegaram ainda que os bens não foram recuperados.
“As vítimas informam que a ação foi muito rápida e não têm mais dados sobre os autores”, continua o registro oficial do roubo, em que não constam detalhes ou mais características dos bandidos, além de que eram “cinco desconhecidos”, do “sexo masculino” e de pele “parda”.
Reconhecimento
O reconhecimento de Bárbara, Wesley e William como os criminosos que participaram do roubo de 10 de setembro do ano passado ocorreu após eles serem detidos pela Polícia Militar (PM) quase dois meses depois, em 4 de novembro de 2017.
Os irmãos e o primo, mais quatro pessoas, sendo Renato Willian Souza Santos, 22, e Felipe Francisco Pereira, 27, e duas garotas, foram levados da comunidade onde moravam, em Cidade Ademar, Zona Sul, para uma delegacia por suspeita de participarem do roubo de três automóveis naquele dia.
Uma BMW, um Audi e um Nissan tinham sido roubados de seus donos. Neles estavam carteira Montblanc, óculos, celulares, laptop, relógio de luxo Tag Heuer, aliança, joias de ouro, produtos que, somados, totalizavam o valor de mais de R$ 320 mil, segundo o registro policial do caso.
Os donos dos veículos foram ao Distrito Policial e reconheceram Wesley, William, Renato e Felipe. Bárbara e as outras duas garotas não foram reconhecidas e acabaram liberadas.
Antes, porém, policiais haviam tirado fotos dela, das garotas, do irmão, do primo e dos dois rapazes na delegacia. As imagens acabaram compartilhadas em grupos particulares de WhatsApp com a mensagem para que moradores que os reconhecessem por crimes no bairro Marajoara fossem ao 99º Distrito Policial (DP), Campo Grande, para a “instauração de inquérito policial”.
Ainda em novembro do ano passado, um delegado não identificado teria mostrado as fotografias ao casal dono do Honda Civic que tinha sido roubado. O policial moraria no mesmo condomínio das vítimas.
De acordo com a denúncia do MP, o casal foi ao 99º DP em 7 de novembro de 2017 e reconheceu por fotos Wesley, William e Bárbara como membros da quadrilha que roubou seu Honda Civic.
“Magra, cabelos de cor escuro, longos e encaracolados, olhos escuros, altura aproximadamente de 1,68m, aparentando a idade entre 18 a 20 anos”, disse o casal, que após ver fotos de pessoas com as mesmas características, “informou reconhecer, sem sombra de dúvidas, a fotografia de Barbara Querino de Oliveira (…) como sendo o indivíduo (que) abordou a declarante pelo lado do passageiro, que também subtraiu seus pertences”.
“E com 100% de certeza, sendo a pessoa que estava coordenando o local, juntamente com Wesley”, disse a mulher do motorista sobre a participação de Bárbara no crime.
Em 29 de maio deste ano, durante audiência na Justiça, o dono do Honda Civic foi ouvido novamente sobre os criminosos que o roubaram.
“Vejo umas cinco pessoas, estatura baixa até”, disse o homem ao juiz. “Um armado apontando a arma no vidro” e “acho que eram duas meninas e três meninos, eu achei até que eram menores”.
Perguntado pela defesa de Bárbara se ficou olhando para os criminosos durante o roubo, o motorista respondeu que “não, até porque, na situação eu fui o cara que teve que ficar deitado olhando para o chão”.
Apesar disso, a vítima falou que foi possível vê-los por alguns segundos. “Sim, eu não pude olhar muito, eu não lembro na totalidade, eu lembro de rostos que marcaram um pouco mais”.
Indagado pelo juiz sobre Bárbara, o homem disse “eu lembro dela”, que, segundo ele, “estava acompanhando” os bandidos.
Mas perguntado pela defesa se “tem convicção do reconhecimento que fez” dos criminosos, o homem responde “não, dos que eu vi não”.
Também ouvida pela Justiça em maio deste ano, a mulher do motorista foi mais taxativa: “Jamais esqueceria da fisionomia dos assaltantes, mesmo passados dois meses”.
Para a Promotoria, a principal prova de que o trio participou do crime foi o reconhecimento dele pelas vítimas, mesmo feito quase 60 dias após o assalto.
Outros dois suspeitos detidos pelo crime, Renato e Felipe não foram reconhecidos pelas vítimas.
Como eles também negaram o roubo, a Justiça os absolveu. Apesar disso, eles ainda estariam presos por envolvimento em outro roubo a veículo, no dia 26 de setembro de 2017, do qual Bárbara também está sendo acusada de ter participado.
Os três foram reconhecidos por outras vítimas nesse processo, que ainda não foi julgado. Mayara conta que a amiga estava em casa, cuidando dos irmãos mais novos no dia que ocorreu esse outro assalto.
O que dizem
O G1 não conseguiu falar com Bárbara ou sua família. A reportagem também não encontrou a empresa Nytmodel, que seria a responsável por promover o encontro de modelos no Guarujá em setembro de 2017, para comentar o assunto.
As defesas dos acusados não foram localizadas para dar a versão dos presos.
Procurada, a assessoria do Tribunal de Justiça (TJ) respondeu que “não se manifesta sobre questões jurisdicionais. Os processos são analisados, caso a caso, com base nas provas e documentos juntados aos autos, respeitada a independência dos magistrados.”
“Quando não há decretação de sigilo no processo, o mesmo fica disponível para consulta para conhecimento dos andamentos e das decisões, que são passíveis de recurso à instância superior pelas partes”, finaliza o TJ por meio de nota.
Questionada, a assessoria de imprensa da Secretaria da Segurança Pública (SSP) informou que a “Polícia Civil investigou o caso e as provas testemunhais e periciais foram anexadas ao inquérito, que foi relatado. A análise e a posterior condenação cabem ao Poder Judiciário. A instituição afirma não haver nos registros qualquer informação sobre vazamentos de eventuais fotografias”.
“Os supostos fatos citados à reportagem e qualquer denúncia a respeito de eventual irregularidade cometida por policiais devem ser formalizadas às Corregedorias das polícias Civil e Militar”, termina a nota da pasta da Segurança.
Procurados, os promotores do caso informaram, por meio da comunicação do Ministério Público, que não iriam falar.
“Willian se pôs à frente do carro, apontando-lhes uma arma de fogo. Wesley abordou a mulher, obrigando-a a entregar-lhes os seus pertences. E Bárbara, que estivera com os assaltantes o tempo todo, dando-lhes cobertura, montou no carro e fugiu com eles, levando consigo tudo o que havia dentro do veículo”, chegou a escrever o promotor Fábio José Bueno na denúncia contra Bárbara, seu irmão e o primo.
Bárbara é a mais velha de seis irmãos e ajudava a mãe nas despesas da casa. Estudou até o ensino médio e ganhava de R$ 1.200 a R$ 2 mil por mês modelando ou dançando.
Ela completou 20 anos no dia 3 de fevereiro deste ano, já detida. Entre lágrimas e saudade expressas nas cartas, a modelo manifesta sua esperança de tentar provar sua inocência na frase “black is power! (algo como negro é poder, numa tradução livre do inglês para o português)”.