Eu negra.

Não vou começar esse texto dizendo que sou filha de mãe branca e pai negro, porque até é um pouco isso, mas não bem assim. Minha mãe é o que costumamos chamar de morena com o cabelo liso, numa aparência mais indígena (e sabemos que cabelo liso automaticamente branqueia um brasileiro). Meu pai era negro, mas com traços caucasianos (ou “finos” como dizem, ao descrevê-lo). Ele, sim, filho de pai branco e mãe negra.

Por:

E nasci eu, uma criança “embaralhada nesse ser-não-ser negra”, como perfeitamente definiu Lia Siqueira (“Nós resistimos, negra soy!”). Assim vivi minha infância: podendo ser considerada fenotipicamente branca, de pele clara (fui chamada de galega por anos), cabelos bem cacheados castanhos quase loiros (“cachinhos de ouro” foi meu apelido dado por minha avó), mas com traços de negro: nariz e lábios “grossos”, por exemplo. E, à medida que o tempo ia passando, no corpo também a minha miscigenação ia se pronunciando mais ainda. Não a toa fui uma criança hipersexualizada. O assédio de rua que sofri começou cedo: 9 anos é minha lembrança mais remota. Hoje, tenho plena clareza que isso também passava pelo racismo.

Clareza que veio lenta, de um jeito que nem foi racional, mas que foi me ajudando a identificar diversas outras situações que sofri ao longo da vida. Costumava dizer que era mal atendida em loja de roupa no shopping Rio Sul (morei no Rio por dez anos) “porque tenho cara de pobre”. E daí não passava. Nunca ia fundo nisso. Afinal, o que me fazia “ter cara de pobre”, aos olhos dxs vendedorxs? Meu sotaque abaianado de mineira do sertão (sotaque de “paraíba”, essa expressão tão violentamente preconceituosa que eu conheci quando morei lá)? Talvez. Mas, obviamente, não era só isso. Eu só não conseguia ver.

Sim, eu frequentava salão de beleza desde os 5, 6 anos. E quando meus cabelos apareciam mais lisos, eram mais festejados. Elogiavam meus cachos, mas não era “cabelo de festa”. E só foi adulta que eu consegui enxergar que isso era racismo. Mesma coisa quando as pessoas apertavam o meu nariz “para afilá-lo”. E muitos o fizeram. Até pregador de roupa me recomendaram usar!

Já não é de hoje que vivo a busca por minha identidade étnica. No começo, era uma coisa escamoteada, enviesada, tentando sublimar meus próprios preconceitos (porque, no final do dia, eu me dizia branca). Talvez, minha primeira tomada de consciência tenha sido quando me mudei do Brasil para Lima, no Peru. Lá, eu era “la morena brasileña”, e nós sabemos o tanto de significado que essa definição carrega. Sabemos, inclusive, que em países hispanohablantes ainda é comum usar o eufemismo “moreno/a” para identificar pessoas negras, como se “negro” fosse palavrão.

E foi lá, me vendo nos olhos deles, que comecei a me ver também. Foi lá,
“morena”, que descobri que eu tinha deixado de ser a criança branca que todo o mundo me dizia que eu era. Minha pele não é branca. Já não mais. E, provavelmente, isso tinha acontecido há bem mais tempo que a temporada limenha me mostrou. Eu só não tinha percebido.

Mas, definitivo mesmo foi um episódio que nos aconteceu na loja da Doce Mania do Itaim Bibi, em São Paulo, dois dias depois que voltamos a morar no Brasil. Atravessamos a rua de mãos dadas, mas nos soltamos entrando na loja. Meu filho mais velho, com 7 anos na época, entrou entre nós dois (meu marido e eu), mas um pouco apartado, talvez. Eu estava ajeitando a bolsa no espaldar da cadeira quando nos demos conta que o segurança da loja estava retirando o meu filho, pelo braço.

Nos segundos que duraram nosso estupor e a reação, o segurança nos perguntou, nervoso e irônico: “a criança está com vocês?” Bom, fizemos um escândalo, a gerente veio se desculpar, tornamos o caso público, a loja nos mandou uma mensagem formal e leviana de desculpas (daquelas que se isentam da responsabilidade “porque o pessoal é terceirizado”), mas, no final das contas, não a denunciamos judicialmente. E, até hoje, no meio das minha reflexões, me pergunto por quê. Por que não denunciamos a loja por racismo?

Meu filho estava vestido como qualquer criança de classe média, obviamente o motivo de expulsá-lo não foi social. Como em tantos casos semelhantes ao nosso, foi racial. E eu soube disso no exato momento em que aconteceu. Mas, não fizemos a denúncia.

Aliás, sempre me perguntei também como o segurança não presumiu que ele estava com a gente. Finalmente, meu marido e eu não somos brancos. Nosso filho é a perfeita combinação de nós dois.

Nosso filho é negro.

E vê-lo negro, identificá-lo negro, tem sido fundamental para o meu processo de reconhecimento. Se bem aquele momento me paralisou, pelo inesperado, foi também uma epifania: a partir dali, não dava mais fingir que não seríamos vítimas de injúria e/ou atos racistas. Porque se o “meu ser-não-ser negra” tinha me colocado em situações por vezes difusas de preconceito mas me poupado de ser expulsa dos lugares, não pouparia o meu filho. E todo o meu processo de autoidentificação também passou a ser sobre nós, não apenas sobre mim.

E tem sido por causa disso tudo que me alinho mais ainda à militância.

Para saber educá-lo, para saber me educar, para empoderá-lo, para me empoderar, para protegê-lo, para me proteger. Para que ele e eu aprendamos juntos a tratar como devem ser tratadas situações como a da Doce Mania. Não apenas com um desabafo nas redes sociais – embora sua publicização seja importantíssima para confrontar e expor o racismo estrutural que baliza nossas relações -, mas, com a gravidade que merece.

Principalmente, porque, indo para os 13 anos, ele vai se tornando cada vez mais vulnerável ao extermínio, nessa nossa cultura que violenta e mata adolescentes negros.

De um ano pra cá, me disse que quer usar o cabelo blackpower. Nem ele tem clareza do que isso representa, pode parecer até que é por modinha, mas sei que o cabelão crespo que ele vem cultivando é hype entre seus colegas negros. E se ele se identifica com isso e se sente belo como eles, vejo claramente que sua busca também já começou, ainda que ele não saiba.

E, na verdade, entre o meu processo e o dele, acho que esse texto longuíssimo foi só pra citar o Marcelo D2 nessa música que eu adoro “eu me desenvolvo e evoluo com meu filho.”

PS: Pra encerrar, clipe lindo da Ellen Oléria, num “brinde à ancestralidade”, como ela mesma disse em sua fanpage.

Fonte: Brasil post

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