“Eu sei parir e meu filho sabe nascer”

A “epidemia de cesáreas” que acomete o Brasil deixa claro que a mulher não tem sido protagonista de seu parto, e que o nascimento é encarado por aqui como um evento médico, e não fisiológico e natural. Na contramão, cresce o número de gestantes que aderem ao parto humanizado como forma de buscar uma experiência menos fria e mecânica

Por Anna Beatriz Anjos e Maíra Streit | Foto de capa: Reprodução/Facebook na Revista Fórum

“Fiquei mais de 20 horas em trabalho de parto e cheguei a oito centímetros de dilatação. Teve [exame de] toque de hora em hora, tomei soro, não pude comer, beber água, me movimentar. Até que o meu médico chegou, o que fez meu pré-natal, e falou que não iria mais esperar, que iria fazer a cesárea. Eu protestei, disse que queria um parto normal e iria até o fim, e ele falou que era ele quem decidia, que eu não tinha direito de escolha – ‘não vou te deixar morrer por causa dessa irresponsabilidade de parto normal’, ele disse. Falou ainda que, se não fizesse a cesárea, ficaria à mercê do plantão. Fiquei com medo, não sabia quem ia entrar, como ia ser. Fui chorando para o centro cirúrgico. A cirurgia foi horrível. Não vi o Davi nascer, só senti na hora que puxaram. Aí apaguei. Só conheci meu filho mesmo três horas depois, quando acordei, porque eu fui sedada.”

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Este é o relato da funcionária pública Cinthia Pinto de Souza, de 27 anos. Seu primeiro filho, Davi, hoje com dois anos, nasceu em um hospital privado da cidade de Ipatinga, em Minas Gerais, por meio de uma cesárea indesejada. Apesar de ter dito a seu médico, durante todo o processo pré-natal, que queria um parto normal, acabou “caindo em uma desnecessária”, como ela mesmo diz. E contra a sua vontade.

Casos como o de Cinthia há muito tempo deixaram de ser exceção para se tornar regra no Brasil (conheça outros aqui). Segundo a pesquisa “Nascer no Brasil”, coordenada pela Fiocruz e lançada em maio de 2014, cerca de 52% dos nascimentos ocorrem por cesáreas no país. Na rede privada de saúde, o índice chega a 88%. Os números estão muito acima das recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), que preconiza que apenas 15% dos partos sejam realizados por meio de procedimentos cirúrgicos.

O mesmo estudo revela que 28% das mulheres entrevistadas desejavam uma cesariana já no início da gravidez. Na contramão, as 70% restantes preferiam o parto normal, mas poucas de fato alcançaram seu objetivo: em apenas 15% dos casos de primeira gestação na rede privada o nascimento do bebê transcorreu sem intervenções cirúrgicas.

As estatísticas escancaram a existência de uma “cultura da cesárea” no Brasil, sustentada por diversos fatores. Para o médico obstetra Jorge Kuhn, a questão se inicia pela forma com que o momento do parto é encarado pela sociedade. “O parto é colocado como um evento muito perigoso, cirúrgico e, portanto, médico, quando, na verdade, é um evento fisiológico na vida da mulher. Assim como as funções fisiológicas não precisam, na maioria das vezes, ser acompanhadas por um profissional médico – como, por exemplo, o ato de urinar, de evacuar, de conceber –, o parto também, como evento natural, não necessita de um médico, na grande maioria das vezes”, explica.

A falácia de que a cesárea traria, portanto, mais segurança tanto para a parturiente (mulher que está em trabalho de parto), quanto para o bebê, é disseminada pelos múltiplos atores envolvidos no evento. A mulher, rodeada por seus familiares e conhecidos, acaba aderindo à ideia. Mas, de acordo com Kuhn, há outros dois agentes igualmente responsáveis pela manutenção do que ele chama de “epidemia criminosa”: os hospitais (sobretudo, privados) e os próprios médicos.

“Os hospitais são agentes importantes nessa cultura da cesárea. Primeiro, porque não há nenhum hospital no Brasil, do ponto de vista privado, que conseguiria atender uma demanda adequada de partos normais, que seria por volta de 85% das vezes”, destaca o médico. “Segundo, porque não há grande interesse dos hospitais em promover partos normais, já que têm um período longo para acontecer – um parto de primeiro filho pode durar por volta de 12 horas. Como em nossa sociedade moderna, civilizada e capitalista tempo é dinheiro, não há interesse nenhum em privilegiar partos fisiológicos.”

A obstetriz Ana Cristina Duarte, coordenadora do Grupo de Apoio à Maternidade Ativa (GAMA), lembra que, embora em menor escala, a rede pública de saúde também se utiliza da conveniência que as cesáreas oferecem. “Há, no setor público, a cesariana de ‘limpeza de plantão’ – ‘durante o dia a gente espera, deu meia-noite a gente opera’. Porque aí a equipe seguinte assume o plantão e o centro obstétrico está vazio para receber as mulheres de novo”, argumenta.

Nos hospitais privados, além da banalização das cesáreas, há frequentes relatos de hostilidade contra o bebê e a mulher. O recém-nascido, por exemplo, não fica com a mãe nos primeiros momentos de sua vida, o que atrapalha a formação do vínculo (Foto: Reprodução/Facebook)
Nos hospitais privados, além da banalização das cesáreas, há frequentes relatos de hostilidade contra o bebê e a mulher. O recém-nascido, por exemplo, não fica com a mãe nos primeiros momentos de sua vida, o que atrapalha a formação do vínculo (Foto: Reprodução/Facebook)

Para os médicos, a cirurgia é menos trabalhosa e lhes possibilita planejar o atendimento aos pacientes. “A cesariana é, de fato, mais rápida. No setor privado, organiza o serviço e a agenda do médico, pois é marcada com antecedência [a chamada cesárea eletiva, planejada antes da gestante entrar em trabalho de parto]  – é o máximo possível da organização, discrimina-se até quantas bolsas de sangue serão usadas”, salienta Duarte.

Há, ainda, outro elemento apontado como determinante para que as taxas de partos cirúrgicos sejam tão exageradas no Brasil. “Hoje, as grandes faculdade de Medicina, as grandes residências médicas formam o médico mais como um cirurgião do que como um parteiro”, assinala Kuhn, que é também professor da Escola Paulista de Medicina. “Sou professor universitário e percebo que, quando o médico se especializa em ginecologia e obstetrícia, sai da faculdade um excelente cirurgião, porque fez muitas operações cesarianas, resolveu muitos casos complexos, mas não viu tantos partos assim. E cada parto é diferente do outro, já a operação cesariana segue uma sistematização.”

Caso Adelir: “Meu parto foi roubado”

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A dona de casa Adelir Góes se tornou um símbolo da luta contra a violência obstétrica no país. Em abril do ano passado, a moradora da cidade de Torres, no litoral gaúcho, foi submetida a uma cesariana contra a sua própria vontade, após determinação da Justiça do estado.

A gestante optou pelo parto normal, mas a equipe do hospital alegou que o procedimento colocaria em risco a vida dela e a do bebê. Segundo a médica responsável, o fato de o bebê estar pélvico (sentado) e as duas cesarianas feitas anteriormente pela mãe seriam os motivos que a fizeram questionar a segurança de um parto natural. A profissional, então, procurou o Ministério Público para fazer valer as suas orientações.

A juíza aceitou os argumentos da médica e, ao voltar para casa, Adelir foi levada de volta ao hospital por um oficial de Justiça, escoltada por policiais. “Me sinto frustrada, muito chateada. Na hora em que eu já estava de 5 em 5 minutos com contrações, chegou a polícia, chegou o oficial de Justiça, com viatura e ambulância, me aterrorizando, dizendo que, se não eu não cumprisse o mandado, meu marido ia ser preso”, informou à época do conturbado nascimento de sua filha, Yuja.

No caso de Adelir, os exames acusavam boa saúde do bebê e a gestação havia sido acompanhada por uma doula. Mesmo assim, a vontade da gestante não foi considerada e o marido, inclusive, foi impedido de assistir ao parto, contrariando uma lei federal. “Meu parto foi roubado”, lamentou a mãe.

A situação chamou a atenção de vários movimentos feministas, que se solidarizam com a história da dona-de-casa gaúcha. A campanha “Somos Todas Adelir” foi criada pelo direito de as mulheres terem mais autonomia sobre seus corpos e serem responsáveis por todas as decisões que envolvem uma gravidez.

Foto: Flickr/Ramezn
Foto: Flickr/Ramezn

Mitos, fatos e riscos

De acordo com o livro Parto normal ou cesárea? O que toda mulher deve saber (e homem também), escrito por Ana Cristina Duarte e Simone Grilo Diniz, diversas situações exigem cesáreas. Estas podem acontecer conforme três tipos de indicação: absolutas (quando, sem a intervenção, a mãe ou o bebê correm risco de morrer ou sofrer complicações sérias), relativas (quando “existe algum risco na insistência pelo parto normal, mas é discutível” – nesse caso, a mulher deve decidir com o médico) e discutíveis (“quando o médico acredita, embora não haja evidências de que a mulher ou bebê correm risco, ou quando faz a mulher acreditar que ela e o bebê necessitam de cesárea, superestimando os riscos para justificar a cirurgia”).

A cesariana, quando não tem indicação médica, aumenta em 120 vezes a probabilidade de problemas respiratórios para o recém-nascido e triplica o risco de morte da mãe (Foto: Reprodução/Facebook)
A cesariana, quando não tem indicação médica, aumenta em 120 vezes a probabilidade de problemas respiratórios para o recém-nascido e triplica o risco de morte da mãe (Foto: Reprodução/Facebook)

Bacia estreita, bebê grande, pouco ou muito liquido aminiótico, cordão enrolado no pescoço (ou circular de cordão), “passou de 40 semanas”, falta de dilatação, cesárea anterior: estes são alguns dos argumentos mais utilizados pelos obstetras para realizar a cesárea. Todos eles, entretanto, são indicações discutíveis. Ou seja: em grande parte das vezes, a cirurgia acontece sem necessidade. “São indicações que fazem a mulher achar que é justificável uma cesárea, mas, na verdade, em nenhum livro-texto médico ou obstétrico, de uma maneira geral, são apontados como indicações reais”, observa Jorge Kuhn.

Além de contrariar a ideia de que a mulher é protagonista do momento do parto, e, por isso, deve participar ativamente das decisões e ter acesso sempre às informações corretas, a realização de cesarianas desnecessárias pode trazer riscos à saúde da mãe e do bebê. “Uma cesariana indesejada pode trazer à mulher traumas e depressão, coisas bem sérias”, coloca Duarte. “Além disso, envolve aumento de vários riscos para a criança que está nascendo: [maior probabilidade de] doenças respiratórias, auto-imunes, obesidade, diabetes.” (Ver o box)

O quadro mencionado pela obstetriz é comprovado por pesquisas científicas. Uma delas, realizada pelo Department of Chronic Diseases at the Norwegian Institute of Public Health, na Noruega, sugere que crianças nascidas por meio de cesarianas têm maior chance de apresentar asma aos três anos de idade. O fenômeno foi observado sobretudo naquelas com tendências hereditárias a asma e alergias. Os resultados foram publicados no American Journal of Epidemiology. Já outro, feito por estudiosos da Queen’s Univesity, na Irlanda do Norte, aponta que gestantes que dão à luz por meio de cesáreas oferecem a seu filho 20% mais chances de desenvolver diabetes tipo 1. O levantamento foi divulgado pela revista científicaPubMed.

Indicações de cesáreas: entenda

Absolutas:

– Placenta prévia: “Quando a placentarecobre o canal do colo do útero. Não é adequado o bebê passar por ali, pois vai ocorrer uma hemorragia muito intensa, colocando em risco a sua vida e a de sua mãe”, explica o Dr. Jorge Kuhn. Ele adiciona que essa indicação é feita somente ao fim do pré-natal, no terceiro trimestre da gravidez.

– Bebê em situação transversa: “Não está sentado, nem de cabeça para baixo”.

– Herpes genital com lesão ativa no final da gestação: Segundo Kuhn, “o bebê pode se contaminar por esse vírus, que tem um predileção pelo sistema nervoso central do bebê.”

– Descolamento prematuro da placenta: “durante o trabalho de parto, a placenta separa-se da parede uterina, provocando hemorragia intensa”.

– Prolapso de cordão: “O cordão umbilical aparece antes da cabeça do bebê”.

Relativas:

– Bebê sentado ou pélvico: “Não é uma contra-indicação absoluta de parto normal, porém, hoje, os profissionais de saúde têm muito medo desse tipo de parto”, afirma o médico.

– Gestação gemelar: “É uma indicação relativa porque depende muito da experiência do obstetra em acompanhar a gestação”, completa.

Discutíveis:

– Circular de cordão ou cordão enrolado;

– Bacia estreita;

– Pouco ou muito líquido aminiótico:

– Placenta velha;

– Sofrimento fetal: “Essa é uma indicação muito discutível, pois não basta apenas o batimento cardíaco do bebê diminuir durante o trabalho de parto, é importante que essa diminuição aconteça de uma maneira que nos diga que ele pode estar de fato em sofrimento”, ressalta o Dr. Kuhn.

– Dificuldade do útero contrair de maneira adequada: “Também é bastante discutível, que na grande maioria das vezes é uma falha no atendimento e não uma indicação mesmo”, declara o obstetra.

– Falta de dilatação: “Um termo utilizado popularmente, mas inexiste na literatura médica. O que existe com frequência é o profissional não ter paciência de aguardar o processo normal”.

– Passou de 40 semanas: “Definitivamente, isso não quer dizer nada. A gestação humana vai de 37 a 42 semanas”.

– Bebê muito grande: “Não existe limite de peso, desde que a evolução do parto seja boa”.

– Cesárea prévia (o parto normal é sim possível depois que a mulher já teve uma cesárea).

*As passagens contidas entre aspas sem indicação de autoria foram retiradas do livro
“Parto Normal ou Cesárea? O que toda mulher deve saber (e homem também)“, escrito por Ana Cristina Duarte e Simone Diniz.

Como virar a mesa?

Recentemente, o debate acerca da realização de cesáreas eletivas sem indicação vem ganhando corpo no Brasil. Desde o início de janeiro, o tema tem povoado as manchetes dos maiores portais do país. Um dos motivos – além, claro, do empenho de militantes e ativistas que lutam para colocar a questão em pauta – são as novas resoluções, divulgadas no último dia 7, pelo Ministério da Saúde e Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) no intuito de estimular o parto normal e reduzir, consequentemente, o número de operações desnecessárias.

As novas normas determinam que os planos de saúde têm prazo máximo de 15 dias para fornecer os percentuais de cirurgias cesáreas e de partos normais por estabelecimento de saúde, médico e operadora à consumidora que os solicitar. Ficam obrigados também a oferecer o cartão da gestante, de acordo com padrão definido pelo Ministério da Saúde, no qual deverá constar o registro de todo o pré-natal (com o cartão, qualquer profissional de saúde terá conhecimento de como se deu a gestação, facilitando um melhor atendimento à mulher quando ela entrar em trabalho de parto). Devem, ainda, orientar seus obstetras para que utilizem o partograma, documento gráfico onde são feitos registros de tudo o que acontece durante o trabalho de parto. Nos casos em que houver justificativa clínica para a não utilização do partograma, deverá ser apresentado um relatório médico detalhado.

O debate acerca do parto humanizado tem ganhado força no Brasil. A internet contribuiu para que isso acontecesse (Foto: Tânia Rêgo/ABr)
O debate acerca do parto humanizado tem ganhado força no Brasil. A internet contribuiu para que isso acontecesse (Foto: Tânia Rêgo/ABr)

“Não podemos aceitar que as cesarianas sejam realizadas em função do poder econômico ou por comodidade. O normal é o parto normal. Não há justificativa de nenhuma ordem, financeira, técnica, científica, que possa continuar dando validade a essa taxa alta de cesáreas na saúde suplementar. Temos que reverter essa situação que se instalou no país”, afirmou o ministro da Saúde, Arthur Chioro, no dia da publicação das resoluções.

Para Jorge Kuhn, as medidas são um sinal de que o poder público está preocupado com a situação, mas estão longe de ser suficientes para sanar o problema. Ele salienta que o cartão de gestante não reduzirá a incidência de cesáreas, e que a maioria dos profissionais de saúde não sabe preencher um partograma. “É um instrumento difícil e pouco utilizado. Sem uma educação continuada do médico, acho que não surtirá efeito. Se bem preenchido, ele realmente reduz a incidência”, acredita. O obstetra afirma, ainda, que a divulgação das taxas de parto cirúrgico só seria eficaz se fosse realizada pela internet. Assim, o tempo da gestante seria poupado, e ela não precisaria, a cada solicitação, aguardar dias pela resposta, sem a garantia de que o médico cujos índices foram pedidos corresponde às suas expectativas para o parto.

Na avaliação de Ana Cristina Duarte, para que a cesárea – uma cirurgia que, segundo ela, “salva vidas” quando realizada corretamente – volte a ser um procedimento apenas de emergência, é necessária uma mudança cultural. “A gente precisa de campanhas. Da mesma maneira que tivemos campanhas de amamentação pagas pelo governo, precisamos ter de parto natural. É necessário investir em propaganda”, argumenta.

A alternativa

Na contramão das cesáreas eletivas sem indicação e dos partos medicalizados e repletos de intervenções, está o conceito de parto ativo, ou “humanizado”, como foi popularizado.

Cinthia, grávida de Raul, com o filho Davi (Foto: Arquivo pessoal)
Cinthia, grávida de Raul, com o filho Davi (Foto: Arquivo pessoal)

“O parto humanizado nada mais é do que o parto que respeita o protagonismo e as escolhas da mulher em relação à forma como ela deseja viver essa experiência”, explica a psicóloga Érica de Paula, uma das diretoras do documentário O Renascimento do Parto.“Ela pode então escolher quem vai acompanhá-la, ter uma doula, ter liberdade de movimento e de poder escolher a posição que se sentir mais confortável para parir, podendo se alimentar durante o processo, ter acesso aos recursos farmacológicos e não farmacológicos de alívio da dor e só sofrer intervenções ou uma cesárea se realmente houver necessidade, para que a experiência de parto seja boa, e não traumatizante”, complementa.

O parto humanizado é um processo. Não necessariamente precisa ser normal ou natural (aquele realizado sem nenhuma intervenção médica, como analgesia ou manobras) – se a cesárea for justificável, pode acontecer, e caso seja interessante para a gestante, pode haver uso de anestesias. O que é levado em consideração a todo momento é o protagonismo da mulher em escolher o que é melhor para si e para seu bebê, levando em conta a opinião dos profissionais que cuidam dela durante o período pré-natal. As chamadas doulas – acompanhantes de parto profissionais, responsáveis pelo conforto físico e emocional da parturiente durante o pré-parto, nascimento e pós-parto – são muito procuradas por gestantes que escolhem parir de forma mais natural.

“O conceito de parto humanizado se sustenta sobre um tripé: protagonismo da mãe, respeito ao tempo e à fisiologia da mãe e do bebê e o uso de evidências científicas”, esclarece Ana Cristina Duarte, que já acompanhou diversas mulheres em busca de um parto menos frio e mecânico. Para ela, a escolha deste caminho também contesta o sistema machista e patriarcal que pauta a sociedade e quer, a todo custo, subjugar a figura feminina. “Faz parte de um pacote que entende que a mulher é incompetente para fazer suas coisas, tão logo, precisa de ajuda”, coloca.

A obstetriz destaca ainda que uma das maiores dificuldades do processo é encontrar um lugar onde a parturiente possa dar à luz, já que nos hospitais privados e públicos ela dificilmente tem suas vontades respeitadas. Cinthia Pinto de Souza é exemplo disso. Conseguiu parir seu segundo filho, Raul, de dois meses, às 42 semanas de gestação, no mesmo hospital particular onde foi forçada a fazer uma cesárea anos antes, durante o nascimento de seu primogênito, Davi. Para que isso acontecesse, entretanto, precisou se impor desde o momento em que chegou ao local. “Minha doula entregou o plano de parto, deu um grito com ela [médica] e disse: ‘tem tudo aqui. Se fizerem alguma coisa com ela, vão responder’. Meu marido também chegou a avisou: ‘aqui está nosso plano de parto, respeita, segue, a gente não aceita nenhuma intervenção’”, conta.

Para além dos hospitais, há a opção do parto domiciliar, que nem todas as gestantes podem pagar. Existem, ainda, as casas de parto, onde o serviço é gratuito e prestado apenas por enfermeiros obstetras. Em São Paulo, a Casa de Parto de Sapopemba, na zona leste, atende pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e realiza cerca de 20 partos por mês.

Gestante dando à luz na Casa de Parto de Sapopemba, zona leste de São Paulo (Foto: Reprodução/Facebook)
Gestante dando à luz na Casa de Parto de Sapopemba, zona leste de São Paulo (Foto: Reprodução/Facebook)

“Há uma lista de critérios para ter o bebê aqui. A gestante precisa ser de baixo risco, não pode ter doenças preexistentes – diabetes, pressão alta – e nem as desenvolver na gestação”, explica a enfermeira obstétra Thais Talarico, uma das funcionárias da Casa. “A gestante é atendida a partir da 37ª semana, em um acompanhamento pré-natal. De 37 a 40 semanas, o acompanhamento é feito uma vez por semana; depois, uma vez a cada três dias, até completar as 41 semanas, quando deixa de ser gestante de baixo risco”. A mulher ainda retorna ao centro durante um período de 30 dias após o nascimento do bebê.

Embora a gestação de baixo risco seja pré-requisito para se utilizar os serviços da Casa, o local conta com uma ambulância 24 horas por dia. Durante os partos, o hospital mais próximo, também do SUS, fica de sobreaviso, caso ocorram complicações com a mãe ou com o recém-nascido. “Quando há uma transferência, ligamos, fazemos o contato com o médico e vamos juntos com a gestante”, relata Talarico.

A servidora pública Cariny Baleeiro Tadiotto Cielo, de 34 anos, vive em Cacoal, estado de Rondônia, e é mãe de três filhos. O primeiro nasceu por meio de cesárea, porque, segundo o médico, entrou em “sofrimento fetal”. “Meu primeiro filho nasceu de cirurgia por sofrimento fetal após algumas horas de trabalho de parto e aquilo me confundiu muito. A pergunta era: o que eu fiz de errado? O que deveria ter sido diferente?”, narra.

Depois de alguns anos, Cariny engravidou novamente e, com a primeira experiência desagradável ainda fresca na memória, foi atrás de informações. Empoderada, lutou por um parto normal. “Qual a diferença? Simples: O parto foi mais focado na minha segurança e do bebê e nas minhas necessidades e conveniências e não nas do médico. Tive a presença constante de minha família, uma doula e a oportunidade de transformar o ambiente em um local acolhedor, com música, por exemplo”, relata.

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“Meu terceiro filho também nasceu de parto normal e tudo foi muito mais tranquilo, porque eu já sabia exatamente o que me era favorável e o que prejudicava o processo. Foi um parto maravilhoso, sem dor, que, sem dúvida alguma, transformou-se na maior experiência de fé que tive na vida”, afirma Cariny, que hoje milita pelo direito da mulher a um parto humanizado e ativo.

Na visão de Ana Cristina Duarte, a educação é a grande responsável pelo despertar das mulheres para a questão. É, inclusive, a arma mais poderosa para que mulheres pobres, negras e periféricas, sempre em condição mais vulnerável que as demais, possam também escapar da “epidemia criminosa” de cesáreas e partos hospitalizados e medicalizados. “A questão do parto é como a da violência doméstica: existe em todos os setores da sociedade, mas sabemos que a mulher pobre e negra é a mais atingida. Ela sofre mais, demora mais para ter acesso aos serviços, para entender que é merecedora de um cuidado”, assinala. “É necessário investir em educação para que possam se considerar dignas de uma assistência adequada e para que possam exigir seus direitos.”

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