“Eu sou negra e sou bela”: mulheres contando a própria história

Há 15 anos, a IPIB abriu as portas para a ordenação feminina. Somos gratos a Deus por esse grande avanço. Com isso, abriu-nos, também, outras possibilidades de configurar o ministério pastoral na instituição. Para nós mulheres -precursoras neste caminho- restam o desafio de exercer o ministério a partir da própria mulher, ou seja, de abdicar do patriarcalismo que está impregnado em nossas mentes, corpo e alma. Esse patriarcalismo impõe um padrão de pastorado pautado na figura do varão/homem. Temos de buscar estabelecer outro paradigma de pastoreio. Isso porque a vocação masculina é uma e outra deve ser a nossa vocação enquanto mulheres. Ainda estamos em fase de solidificação do ministério feminino; para muitas pessoas, é algo relativamente novo. Porém, ao analisarmos os textos bíblicos, é possível perceber, em todas as fases da formação do povo de Deus, que a mulher sempre exerceu um papel primordial na liderança da comunidade. Assim, encontramos Zípora, a juíza Débora, Rute, Ester, a rainha de Sabá, entre outras. É nessas mulheres – e outras na história da igreja – que devemos nos inspirar para a prática do nosso ministério. E é a teologia feminista que nos fornece ferramentas para nos apropriarmos dessas histórias como sendo a nossa própria história.  Se hoje nós, mulheres, somos ordenadas ou ocupamos posição social de destaque, foi porque essa sociedade foi questionada pela teoria feminista. Somos todas, conscientes ou não, devedoras do feminismo. Assim, interpreto o famoso relato da Mulher Negra do Cântico dos Cânticos 1.5:“Eu sou negra e sou bela” a partir da Hermenêutica Negra Feminista; pois eu sou pastora negra.

A interpretação oficial: ser negro é uma maldição

Uma das raízes da ideologia racista, que se disseminou por todo o Ocidente, inviabilizando a conjugação de negritude e beleza, está na exegese patrística de cunho alegórico. Nessas leituras, a negritude e beleza são sempre contrapostas. Assim, para Ambrósio (340-397), ela é “negra pela fragilidade humana, mas bela pelo sacramento da fé”, ou, como afirma Cassiodoro (485-551), “negra no corpo, mas bela no mérito”. Também, como enfatizou Gregório de Nissa (330-395), “negra por causa do pecado, mas bela por meio do amor”. A questão que está por trás dessas afirmações é: “Como pode qualquer coisa negra ser bela ou qualquer coisa bela ser negra?” (Gregório de Elvira, 300/350-392). Mas foi Orígenes (185-254 dC) o que mais influenciou o pensamento ocidental sobre a contraposição de negritude e beleza e, consequentemente, espalhou o racismo. Ele disse: “Negra pela ignomínia da raça, mas formosa pela penitência e pela fé […] Negra pelo pecado, mas formosa pela penitência e fé […] Sou negra, mas formosa: pois não fico até o fim na negridão, mas subo branqueada […] Ela que é negra não é assim pela natureza, nem criada assim pelo Criador, mas sofreu essa situação acidentalmente […] Assim é a situação dessa gente etíope, que tem uma natural negridão proveniente da sucessão carnal, pois nessas paragens o sol arde com mais fervor e os corpos já queimados permanecem do mesmo jeito pela sucessão do vício […] Do contrário com a negridão da alma, esta não se adquire pelo nascimento, mas pela negligência. A alma se tornou negra porque desceu. Mas, quando começa a subir, ela se torna branca e cândida: rejeitando a negridão, ela começa a irradiar a verdadeira luz”.

A mulher negra, nessa perspectiva, não pode ser bonita devido à sua cor e sua beleza só é possível por meio da penitência e da fé. A negritude está ligada à ideia de pecado: ser negro é uma maldição. Infelizmente, não é difícil encontrar pessoas que continuam pensando como Orígenes em relação ao povo negro. Recentemente, o presidente da Comissão de Direitos humanos foi duramente criticado pela comunidade negra por fazer esse tipo de afirmação de cunho racista.

A mulher de Cântico dos Cânticos se autorreconhece como uma mulher negra. No entanto, ser negra não é somente ter a cor da pele preta. É assumir-se como sujeito de seu próprio destino; é ter consciência da história de negação a que foi submetido o povo negro; é identificar-se e engajar-se politicamente na busca de transformação social; é gostar do próprio corpo e de sua própria história.

A mulher negra e o seu papel social

Perguntamos: quem é essa mulher? Por que ela se autorreconhece como uma mulher negra como as tendas de Quedar e Salma?

Quedar e Salma são duas tribos árabes, mas o sentido delas no poema é pouco discutido nos comentários. Sabe-se que as populações nômades ou seminômades de beduínos faziam uso da pele de cabra preta para confeccionar suas tendas. Assim, a primeira identificação com Quedar e Salma está na imagem evocada da cor preta da pele de cabra. “Eu sou negra eu e bela como as tendas de Quedar, como as tendas de Salma”.

A outra identificação tem a ver com a genealogia a que remete Quedar e Salma. Segundo a tradição bíblica, Quedar é o nome do filho de Ismael, que era filho de Hagar, a egípcia, com Abraão (Gn 25.28). A teologia negra constata que não existe problema para a tradição oficial aceitar que o oriente – a Assíria e a Babilônia – influenciou a constituição e a autocompreensão do antigo Israel. Mas há uma tendência de se ignorar a influência dos egípcios, cananeus e cuchitas no processo de formação do povo israelita. O que têm em comum esses povos? Não causa estranheza que um lugar onde o antigo Israel viveu por mais de 400 anos não tenha interferido em nada em sua autocompreensão?

É possível (e a teologia Afro-Americana tem feito isso) reconhecer, por meio de relatos bíblicos, memórias que evocam a África como o criadouro literal e cultural da identidade israelita em seu começo. Quedar e Salma são uma forte evidência dessa participação ativa e constante de povos afro-asiáticos na formação e autocompreensão do antigo Israel, pois Quedar e Salma descendem de Ismael, o pai de uma grande nação, os povos árabes (segundo a tradição).  Tanto Salma quanto Quedar remontam a uma mesma genealogia, ou seja, descendem de Ismael que, por sua vez, descende de Hagar. Resgatar a memória de Hagar, que foi exilada com seu filho Ismael, é resgatar o poder visionário dessa mulher sobretudo porque situamos o poema da mulher negra do Cântico dos Cânticos em um contexto muito semelhante ao relato de Hagar, a saber, quando mulheres foram expulsas, com seus filhos, do seio da comunidade.

Declamar o poema da mulher negra é evocar, também, o poder feminino de Hagar diante de toda tentativa de excluir alguém da comunidade. Para nós mulheres dotadas de grande poder espiritual, fica a interpelação da Divina Sabedoria de assumirmos o ministério feminino fazendo a explicita opção pelos excluídos. Um ministério feminino coerente com a “grande nuvem de testemunhas” femininas deve necessariamente se colocar contra todo tipo de violência.  Nós mulheres precisamos alargar nosso “ventre espiritual” e assumirmos a todos, sem distinção. Esta é nossa vocação. Não é uma tarefa fácil, mas deve ser um exercício contínuo, até darmos à luz a um mundo melhor.

Reva. Cleusa Caldeira, ministra da IPIB

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