EUA: Eduardo Graça: O movimento negro desperta

Marchas em Los Angeles. Vigílias em Atlanta. Milhares de manifestantes na Union Square, em Manhattan. Passeatas no South Side de Chicago. Punhos cerrados em Houston, Texas. Líderes religiosos à frente de uma celebração ecumênica em Baltimore, faixas com os dizeres “Nós somos Trayvon”. Um emocionado e revoltado Stevie Wonder interrompe seu espetáculo em Québec para anunciar o início de um boicote artístico à Flórida.

Por Eduardo Graça

O que mais se ouviu nas ruas da América do Norte no domingo 14 foram os gritos, repetidos, de “Se não há Justiça, não haverá paz”. Parece ameaça. E é. A absolvição do segurança George Zimmerman, de 28 anos, caucasiano, no julgamento do assassinato de Trayvon Martin, negro de 17 anos, em fevereiro do ano passado, em uma pequena cidade do estado sulista, foi a gota d’água para o renascimento do movimento de direitos civis dos negros.

Cinco décadas depois das históricas marchas no Sul do país, e apesar da eleição do primeiro presidente negro em 2008 e da narrativa da sociedade pós-racial da era Obama, os negros continuam a ser não só o grupo étnico mais pobre, com menor mobilidade social e índice desproporcionalmente alto de população carcerária dos EUA, mas também aquele com interesses menos validados nas votações da Suprema Corte.

Na mesma semana em que os juízes decidiam pela inconstitucionalidade da Lei de Defesa do Casamento (ou Doma, em inglês), em benefício de milhares de casais homoafetivos, foi aposentada a Lei do Direito ao Voto, de 1965, que determinava rigorosa investigação do Congresso (nos EUA não há Justiça Eleitoral) em distritos notórios pela discriminação contra a população negra. Apesar das seguidas denúncias de tentativa de obstrução do voto das minorias nos estados sulistas, com leis instituindo a obrigação de prova de identidade com foto e não apenas o número de cadastro da Previdência Social, em um país onde carteira de identidade nacional e título de eleitor inexistem, os magistrados concluíram que os tempos são outros.

Cabeça baixa, semblante sério, muito aplaudido pelo público da cidade canadense de Québec, Stevie Wonder também acha que os tempos mudaram. Um dos maiores nomes da arte popular americana anunciou a suspensão imediata de todas as suas apresentações profissionais na Flórida por causa de uma legislação aprovada em 2005, a Stand Your Ground. A lei justifica o uso imediato de arma de fogo como defesa, antes mesmo da tentativa de fuga, em caso de ameaça. Cabe ao próprio indivíduo discernir se no tal ataque há risco de vida. Apoiada pelo lobby dos fabricantes de armas e apelidada por seus opositores de “lei do atire antes, pergunte depois”, ela foi o pilar da defesa de Zimmerman, segurança voluntário do bairro.

Trayvon Martin saíra da casa do pai para comprar balas em uma loja de conveniência. Estava desarmado. Vestia um gorro e teria corrido ao ser abordado por Zimmerman e, em seguida, ter atingido violentamente o vigia com uma pedra. Como não há registros ou testemunhas do confronto, a única narrativa é a do atirador. Com base justamente na Stand Your Ground, ele nem sequer chegou a ser detido na noite da morte de Martin. Só respondeu a processo criminal depois da pressão da população local e de um movimento popular que levou milhares de americanos a saírem às ruas com gorros e exigindo justiça.

“Decidi que só voltarei a me apresentar na Flórida quando a Stand Your Ground for abolida. Em meu coração há amor para todos. Mas não se pode apenas falar, você precisa viver suas verdades. Acredito que podemos, unidos, mudar o estado das coisas, mas não de um modo destrutivo, e sim em busca da perpetuação da vida humana”, disse Wonder.

Em incisivo editorial, a revista The Nation seguiu na mesma linha de raciocínio. E afirmou não questionar a presunção de inocência em relação ao assassino, mas o fato de o mesmo direito não ter sido estendido ao morto. “A absolvição de Zimmerman reafirma a ideia de que todo o Judiciário dos EUA, da polícia às prisões, não apenas falha em oferecer justiça a pessoas de cor, como as classifica como criminosas, mesmo quando elas são vítimas de um crime violento.”

Em entrevista à CNN, uma das participantes do júri, mulher caucasiana, disse que via Zimmerman como “um homem cujo coração está no lugar certo, que tentava proteger seus vizinhos daquela gente”. Além da expressão de sentido dúbio, ela fez questão de dizer que se sentiria segura em empregar o vigia para cuidar da segurança do condomínio onde vive.

Na Union Square, um dia depois da absolvição de Zimmerman, o vereador democrata Jumaane Williams, cientista político e líder da comunidade afro-americana do Brooklyn, gorro negro, camisa com os dizeres “cidadão desarmado”, puxa um discurso repetido, palavra a palavra, com atenção, pela multidão: “Ao contrário do que se pensa, é muito difícil ser um homem negro nos EUA em 2013. Quando penso nas manchetes ‘jovem negro desarmado assassinado’, sei que ela poderia estar nos jornais em qualquer dia do ano, em qualquer cidade do meu país. Se você continuar repetindo que vivemos em uma sociedade pós-racial, está nos impedindo de um dia ter de fato uma América sem racismo. Um menino de 17 anos foi assassinado. Há quem argumente que a morte dele não teve relação alguma com questões étnicas. Mas é impossível dizer o mesmo sobre o veredicto. Não acredito que um negro ou mestiço possa matar um homem desarmado nos EUA dos dias de hoje e ganhar a liberdade. Parem de acreditar na ilusão que vocês mesmos criaram”.

Da Casa Branca, o presidente Barack Obama pediu respeito à Justiça e conclamou os americanos a honrar a memória de Trayvon Martin. “Estamos fazendo de fato tudo o que podemos para combater a violência causada pelas armas de fogo?”, perguntou.

*Eduardo Graça é jornalista.

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Fonte: Vermelho 

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